Índice de Capítulo

    — Não, desculpe, não quero — Julia recusou mais uma vez o vinho.

    — Mas é o vinho de Ellday. Todos devem bebê-lo na celebração das luzes — protestou Debret, oferecendo sua jarra para que Julia a bebesse.

    Ainda que constrangida pela insistência, ela tornou a recusar. Nunca havia provado vinho ou qualquer bebida com álcool, e preferia se afastar de quem o estivesse bebendo. Mas por algum motivo continuava sentada ali.

    Podia ser porque seus amigos também estavam. Porque não queria voltar sozinha para casa. Por se sentir letárgica devido a cerimônia auspiciosa. Por muitas razões.

    Ouviu a risada de Debret – alta e desinibida. A risada de um bêbado.

    Todos eles parecem ter a mesma risada, pensou, lembrando-se de seu pai. Ele sempre bebia após as discussões com sua mãe. Talvez para esquecer do que ouvira e dissera. Talvez para esquecer o assunto discutido. Talvez para lembrar do que o levava a fazer as pazes. Talvez apenas bebesse.

    Julia pediu leite mais uma vez, e Eduardo a serviu.

    Curiosa, perguntou a Núrya porque Thierry havia entregado a jarra a Eduardo e por que apenas os dois serviam.

    Núrya, cujas ideias pareciam afetadas pelo vinho, respondeu-lhe:

    — Os mais importantes servem na partilha. É dever dos pais repartir para os filhos. É dever dos nobres repartir para os pobres, assim como eles também são repartidos pelos reis e esses por Ellday. Os mais importantes sempre partilham.

    — Não sei se isso é bem verdade — retorquiu Julia com um sorriso confuso.

    — É, na celebração das luzes ela é, pois na primeira noite após a guerra da insônia, à luz da primeira fogueira livre, Ellday repartiu entre os sete que sobreviveram, uma jarra de vinho que guardava em meio a batalha — Núrya bebeu o que restava em seu copo e se aproximou mais do rosto de Julia, de forma que era possível sentir o forte aroma frutoso em seu hálito — Seu segundo em comando deu aos homens leite. Um terceiro, tocado pelo gesto dos dois líderes, deu algo de si, assim como o quarto, o quinto e o sexto. Até que o sétimo nada tinha a oferecer a não ser a única coisa que todo homem pode dar a um benfeitor. A sua eterna gratidão — Ela abriu os braços e os levantou, erguendo a voz — Assim, todos os anos desde então, essa noite é celebrada. Os dois mais importantes repartem o que há na fogueira para os demais. O leite e o vinho primeiro, então as demais coisas.

    Uma salva de palmas seguiu a explicação, fazendo Julia sentir-se uma criança sendo ensinada pelos pais.

    — Os dois mais importantes em meio ao fogo servem nessa noite — continuou ela —, sejam eles reis, nobres, cavaleiros, pais ou anciãos.

    Julia olhou para Eduardo segurando a jarra de leite.

    Os mais importantes, pensou com orgulho, pedindo-lhe outro copo de leite.

    A noite que parecia não ter fim continuou.

    Três músicas haviam começado e terminado desde que Thierry os deixara. Nesse meio tempo, ao menos uma dúzia de pessoas sentaram e levantaram-se da roda. Alguns conhecidos.

    Um homem sem um dos braços que cumprimentou Eduardo e Caio. Uma educada mulher de meia idade usando um vestido bem ornamentado que trabalhava com Carmen. Uma anciã, cuja feição era tomada por rugas e manchas de sol e os braços pareciam feitos de palha seca, a qual Carmen também pareceu reconhecer. E Jane, a antiga companheira lavadeira com quem Julia e Letícia dividiam a companhia junto ao poço.

    Sentou-se pela metade do tempo de uma música. Pouco falou. Bebeu o leite, misturou-o com o vinho, chorou e foi embora.

    Julia a observou partir.

    Ela havia perdido alguém no primeiro ataque dos ursos carmins, sabia – seu esposo – e, como o velho Darden, vivia como um fantasma daquele que partira.

    Julia olhou ao redor. Para as pessoas rindo, cantando e comendo. Todos haviam perdido alguém nos últimos dias, mas naquele momento, muitos pareciam esquecer, e poucos se atreviam a lembrar.

    Pensou em ambos, e sentiu-se lembrando novamente da quadra, de uma forma que não fazia há muito tempo. As memórias dos mortos à sua frente. O estrondoso som que ensurdecia sua última lembrança daquele mundo. De seu tão distante mundo.

    Percebeu então a verdade do que a incomodava naquilo tudo. Ela não lamentava por um morto, como faziam Darden e Jane. Ela era o próprio morto, vagando naquele mundo como um espectro de carne e osso, enlutada por si mesma, sabendo que seus verdadeiros olhos já haviam se fechado havia muito tempo.

    Ela teve tal noção e percebeu que era assustadora. Desejava não pensar naquilo, afastar sua mente dessa verdade indesejada de qualquer maneira.

    Debret tornou a oferecer a jarra, e Julia a aceitou, ansiando pelo álcool contido lá.

    Emborcou o copo cheio, tomaria tudo se pudesse, mas parou quando sentiu o gosto do vinho em sua garganta. Perguntou-se se deveria queimar tanto assim.

    — Amiga, tudo bem? — Ouviu Letícia perguntar. Ao que balançou a cabeça afirmativamente e voltou a beber outro gole, de forma mais calma, sentindo o líquido doce descer mais suavemente por sua garganta.

    Sentiu o copo esvaziar-se em sua mão à medida que seu corpo enchia de calor que não vinha da fogueira, então olhou ao seu redor. Sentia a mente leve, e os membros dormentes, mas estranhamente ágeis. Os movimentos de todos pareciam mais lentos do que o normal, as vozes mais altas.

    Um riso de vivas ecoou pela roda.

    — Enfim ela tomou o vinho de Ellday — disse um.

    Sentiu alguém abraçar-lhe e rir em seu ouvido. Era Núrya. A barriga inchada fazia pressão contra seu braço.

    — Que o sumo sagrado traga calor a noite, e a luz alva clareie a escuridão da madrugada — gritou a grávida, ainda abraçada em Julia enquanto estendia um copo acima de sua cabeça.

    Julia girou a cabeça, sentindo como se seu cérebro chacoalhasse como gelatina.

    Percebeu o copo ganhando peso de repente, e viu um homem o enchendo novamente com um líquido escuro.

    — Já está bom — disse com a voz mais alta do que desejava. Ainda assim, o homem o encheu até a borda.

    Julia encarou o líquido, a mente turva reparando o balançar causado por sua mão trêmula.

    Ouviu os risos e vivas que pareciam os mesmos que escutava desde a tarde, ecoando pelo tempo até que fosse noite.

    Alegria. Alegria que ela não sentia. Vida que ela não compartilhava, mas desejava.

    Algo a se lembrar, algo a se esquecer.

    Bebeu.

    O restante da noite foi como um quadro aquarela em constante movimento. As pessoas se misturavam, e se dividiam. O fogo parecia um enxame de abelhas sobrevoando a colmeia, subindo aos céus e desaparecendo.

    Ria quando lhe diziam algo. Chorava quando pensava em algo. Dizia algo sem pensar. E bebia algo sem saber olhar para o copo.

    Viu duas pequenas sombras saírem da escuridão e pularem sobre Letícia, roubarem o queijo de Théo e o leite de Carmen antes de fugirem com Caio em seu encalço. Viu Carmen levantar e discutir com Théo sobre onde os olhos dele não deveriam estar. Ouviu o esposo de Núrya cantar uma canção obscena junto a Debret e Caio cujas únicas palavras que se lembrava não se atrevia a dizer. Sentiu o nariz encher se com o cheiro da carne no fogo, que derreteu em sua língua ao ser mastigada. Abraçou Núrya, beijou Eduardo e estapeou alguém.

    Então uma mão a agarrou pelo braço. Ela lutou e negou até perceber que o rosto era o seu favorito. Teve vontade de dar-lhe mais um beijo, mas foi puxada e arrastada para longe da roda, atravessando as demais fogueiras para um lugar longe do riso e da luz.

    A música cessou. As chamas se distanciaram. E todo aquele mundo quente e animado parecia uma memória distante à medida em que caminhavam aos tropeços pela escura estrada.

    Eduardo segurava sua mão de forma firme. Era tão forte, percebeu.

    Lhe ocorreu que isso já aconteceu outras vezes. Na quadra e no templo. No entanto, nenhuma fora tão pacífica como aquela. Em nenhuma ela se percebia tão leve. Seus pés não pareciam sentir o chão. Em que estava pisando?

    Desejava parar e conferir, mas o passo de Eduardo era constante, de forma que era puxada e desequilibrada por ele.

    — Pera, os pés, os pés — disse, olhando para baixo.

    Eduardo parou, virando-se para ela.

    — O que tem os pés, machucou eles?

    — Eles flutuam, veja — deu um pulo, e caiu de bunda quando retornou ao chão.

    Ele riu. Por quê ele riu?

    — É, você flutuou por meio segundo — disse, tomando-a pelo braço para que ficasse em pé.

    Julia se agarrou em sua camisa.

    — Pare, pare — pediu aos gritos —, é muito alto, vou cair de novo.

    Sentiu um pesado sopro de ar quente saindo pelo nariz e boca de Eduardo.

    — Relaxa, tô te segurando, você não vai cair.

    — Me leva, por favor — implorou ainda agarrada a ele.

    Eduardo resistiu por um tempo, mas logo a ergueu em seus braços.

    Contornaram um bosque junto ao caminho. As árvores balançavam ao vento, como anêmonas do mar se movendo junto à correnteza.

    Julia imaginou se haveria algum peixe ali também. Sempre havia peixes laranjas em anêmonas. Ao invés disso ouviu o piar de uma coruja e agarrou-se em Eduardo com mais força.

    Ela olhava para o mundo apagado pela penumbra, balançando os pés e tremendo pelo frio enquanto balançava ao passo cada vez mais lento de Eduardo, até que ele parasse.

    — Tá bom, já deu — disse, pondo os pés dela no chão, e sentando-se na beira da estrada.

    Julia sentiu a terra entre seus dedos, percebendo que algo ali faltava. Agachou-se tocando-os.

    — Meus pés — disse, pensativa.

    — O que foi, eles estão flutuando de novo? — perguntou Eduardo ofegante.

    — Não, estão sem sapatos.

    Eduardo levantou-se e se aproximou dela. Os olhos em seus pés desnudos.

    — E cadê eles?

    Julia pensou por um momento. Estava com eles quando deixaram a fogueira. Estava com eles quando caiu. Estava com eles quando Eduardo a pôs nos braços. E sem eles quando ele a pôs de volta no chão.

    — Você os pegou — acusou.

    — Não, eu não os peguei.

    Ela pôs a mão no queixo, desconfiada.

    — A-cre-di-to — deu um soco no ombro dele, se desequilibrando.

    Eduardo a segurou e ela saltou em seus braços, balançando os pés. Ele a agarrou, e a segurou da mesma forma que a segurara antes.

    — Quero meus sapatos, meus sapatos — Julia gritou.

    Eduardo olhou para suas pernas, então disse:

    — Já sei o que houve.

    Momentos depois, eles caminhavam em meio às árvores do bosque. Eduardo ia a frente, Julia o seguia.

    “Cuidado”, ele pedia. “Eu sei”, ela respondeu após tropeçar pela quinta vez, ou seria a terceira?

    — Não devem ter caído longe — observava Eduardo, procurando pelo chão, quando Julia caiu sobre ele.

    Os dois tombaram na relva. Julia sentiu o impacto sendo amortecido pelo braço dele. As coisas pareceram se misturar dentro de seu corpo e sua mente via o mundo rodar em meio a queda.

    Rolou um pouco pela relva sentindo as folhas e a terra em seu rosto e cabelos.

    Tão frias.

    Tornou a rolar na direção contrária, batendo no corpo de Eduardo e interrompendo o movimento.

    — Você também — O ouviu perguntar.

    Os olhos pareciam brilhar no escuro – o contorno escuro de seu rosto sobre o escuro mais profundo da floresta. Tocou-o com os dedos, sentindo o seu rosto. A bochecha, o nariz, os lábios e o queixo quadrado.

    Sabia exatamente como era, mas senti-lo daquela forma era algo que a instigava. Embora não soubesse a que.

    — Você tem orelhas grandes — disse.

    — E você que tem um nariz pequeno — retrucou Eduardo.

    — Dumbo — riu ela.

    — É mesmo? — Ele avançou as mão por sua barriga em um ataque de cócegas.

    Julia se debateu, rindo. Retrucou lutando com pequenos socos sem força e rolando sobre ele, que a segurava com um braço limitando seus movimentos. Seus corpos se tocavam, mais que o habitual. Em dado momento, Julia percebeu que a claridade havia aumentado. Olhou para cima, vendo um céu sem nuvens sobre as árvores magras, e a lua azul completamente cheia descendo pelo céu.

    Dava-lhes pouca luz, sim, mas o suficiente para que visse a Eduardo, e ele a ela.

    Um momento de lucidez se seguiu.

    Julia se viu em cima de Eduardo. O vestido em frangalhos com um dos ombros completamente exposto. Sentiu um frio em suas pernas, o que indicava que estavam descobertas.

    Ele não parecia melhor. A camisa rasgada no peito. O cabelo desarrumado, e a cicatriz cortando a lateral do rosto rubro.

    Ambos arfavam, parados com os braços grudados um no outro.

    Eduardo ergueu sua mão, levando-a até o rosto de Julia. Era quente.

    Julia tocou-lhe no peito. Ele sorriu.

    O que estavam fazendo?

    Eduardo disse-lhe três palavras. Palavras que toda garota sonha em ouvir do homem de seus sonhos. E Julia as ouviu do dela.

    Julia ia responder. Mexeu a boca, mas ouviu de suas próprias palavras morrerem quando outro som reverberou pelo silencioso bosque.

    Um estilhaçar de madeira, uma voz alta e passos.

    Ela se levantou vendo duas silhuetas se aproximarem.

    Um rapaz e uma garota, cambaleando com passos incertos em sua direção. Ambos arrumavam suas roupas.

    — Ah, desculpem-me, não pensei que houvesse mais alguém por estas bandas — disse o rapaz.

    Era loiro, de atitude arrogante e voz altiva. Julia demorou um tempo para se lembrar de seu nome.

    — Lohan? — Eduardo perguntou, também se levantando.

    — Ah, caro matador de ursos. Que grata sorte encontrar-te, ou talvez não, dado o momento — comentou o rapaz com um olhar sugestivo.

    — Não é nada disso — Julia se apressou a dizer afoita

    — Ora, não precisa de vergonha, não é mesmo Natty?

    A garota que o acompanhava enrubesceu.

    Julia lembrou-se de já tê-la visto. Era a corista principal que cantara na cerimônia das luzes. A garota de quem Carmen reclamava a todo momento.

    — Não, você realmente entendeu errado, estávamos procurando um sapato — explicou Eduardo.

    — Estranho, geralmente faz-se isso depois que acaba, não antes — observou Logan em sonoro tom de ironia.

    — Ah, chega, pra mim já deu — Eduardo deu um passo rápido em direção a Lohan, mas antes de dar outro, Julia o agarrou pelo braço.

    — Deixa pra lá, não é hora disso — disse ela, sendo arrastada por ele, que parou, olhando para trás.

    — Sua garota tem razão, Edwardo. Embora eu também queria duelar contigo, prefiro que ambos tenhamos armas em mãos e não estejamos ambos bêbados. Além do mais, traz má sorte brigar na noite das luzes.

    — Por que? — Natalie perguntou.

    — Por coisas que não importam. Vamos? — Lohan lhe estendeu o braço, Natalie enroscou-se nele e os dois se afastaram.

    — Até a partida, matador — Lohan despediu-se.

    Eduardo suspirou e caiu no chão.

    — Que filho da puta — murmurou.

    Julia observou-o, então procurou pelos arredores.

    O que eles faziam ali mesmo? O que estavam prestes a fazer antes?

    Algo se misturou no fundo de seu estômago.

    Nauseada, ela sentou-se ao lado de Eduardo e enlaçou seus dedos nos dele. Ambos se olharam nos olhos e ele falou algo.

    A sensação se espalhou pela barriga.

    As três palavras.

    Ela desejou responder. Abriu a boca, mas sentiu algo subir de seu estômago pela sua garganta até sua boca. Virou o rosto e espremeu o abdômen expulsando o gosto amargo da bílis de seu corpo.

    Uma mão batia de leve em suas costas.

    Quando se levantaram para ir embora, uma luz já se fazia presente no horizonte. Eduardo lhe deu seus sapatos e lhe ajudou a caminhar sem tropeçar.

    Chegaram em casa quando a manhã já se fazia completamente. Os gatos os saudaram enroscando-se em suas pernas e miando. Restos de queijo jaziam junto ao muro, assim como um pedaço de carne do tamanho de sua mão. O que a fez se perguntar quem havia deixado aquilo ali.

    Roque abriu a porta para eles e Eduardo deixou Julia no quarto e foi para o seu.

    Ela se deitou, fechou os olhos, e – para sua infelicidade – sonhou.

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