Índice de Capítulo

    Chegando ao antigo lar de Bruno, todos desceram do carro em silêncio. Pedro deu uma olhada ao redor. Diferente da última vez, quando saíram dali sendo perseguidos por um bando de infectados, o lugar parecia ter se esvaziado. Apenas alguns cachorros magros e sujos vagavam pela rua, farejando restos de comida.

    — Aê, Bruno. — chamou Pedro, escorando-se no capô do carro. — Eu e o Gui somos mais rápidos que o Jão. Vamos dar uma volta pra ver se encontramos alguma coisa, beleza? — Ele abriu uma garrafa de água mineral, tomando um longo gole antes de esperar pela resposta.

    Bruno desceu do carro com um peso estranho nos ombros. Sentia a cabeça leve e o corpo quente, como se estivesse queimando por dentro. O sol implacável fazia tudo girar ainda mais. Ele apenas assentiu, murmurando um “vai lá” antes de seguir em direção à casa. Pedro e Gui partiram a passos lentos para economizar energia sob o calor escaldante.

    Alicia foi a última a sair do carro. Assim que colocou os pés no asfalto, notou João parado, pálido como uma folha, os olhos fixos na casa de Bruno. Ele parecia estar revivendo algum tipo de pesadelo.

    Bruno, por outro lado, caminhava para dentro como se estivesse em transe. O mundo ao seu redor parecia irreal, como se ele estivesse vendo tudo através de uma câmera distante.

    — Minha cabeça… tá girando. — murmurou para si mesmo, a voz baixa, quase engolida pelo silêncio da rua.

    Ao entrar na casa, o cheiro de morte o atingiu como um soco. Os corpos da sua família estavam exatamente onde ele os havia deixado no dia anterior. Moscas zumbiam freneticamente em torno da carne que já começava a apodrecer. O odor era pútrido, denso, mas, estranhamente, não o incomodava como deveria.

    — Por que eu não sinto nada? — perguntou a si mesmo, com uma frieza que quase o assustava.

    Ele se aproximou dos corpos e começou a puxá-los para fora, guiado apenas pelo incômodo do cheiro invadindo o espaço. Quando arrastava o corpo mutilado de sua irmã Hanne, Alicia e João Paulo se aproximaram da porta.

    Alicia congelou ao ver o cadáver. A cabeça de Hanne estava quase separada do corpo, conectada apenas por fragmentos de osso e tiras de pele ensanguentada. Alicia não conseguiu segurar. Virou-se imediatamente e começou a vomitar, tropeçando até o carro em pânico.

    João Paulo sentiu o estômago revirar, mas se forçou a ficar onde estava. Um nó na garganta o sufocava, e ele lutava contra a ânsia. Quando Bruno ergueu o olhar, João deu um passo involuntário para trás. Os olhos de Bruno, antes castanhos, agora eram de um vermelho escuro, profundo e vazio, como se toda a vida tivesse sido drenada dele. Sua expressão era inumana, um rosto sem emoção, uma máscara fria e apática.

    — Para! — implorou João, com a mão cobrindo a boca enquanto lutava contra a náusea.

    Bruno largou o corpo sem dizer nada, os movimentos precisos, quase automáticos. Ele começou a voltar para dentro da casa, ignorando os olhares assustados.

    — O que… cê vai fazer agora? — perguntou João, a voz fraca, mal reconhecendo o amigo.

    — Pegar uma roupa. Vou tomar banho. — respondeu Bruno, sem se virar, já com um pé dentro da casa.

    João Paulo seguiu em frente, deixando para trás a casa onde Bruno havia entrado. Ele andava na direção de Alicia, que estava encolhida, inclinada com a cabeça baixa, claramente sufocada pela atmosfera daquele lugar. Os corpos mutilados lá dentro tornavam impossível permanecer ali por muito tempo.

    — Cê tá melhor, Alicia? — perguntou João, pousando a mão no ombro dela com um gesto hesitante.

    Alicia ergueu o rosto. A palidez dela contrastava com as lágrimas que ameaçavam cair, mas o que mais chamou sua atenção foi o olhar de João Paulo. Ele também estava arrasado. Não precisava dizer nada para que ela entendesse que ele mal conseguia lidar com aquilo.

    — Então foi isso que aconteceu quando vocês chegaram aqui? — disse Alicia, a voz embargada. Uma lágrima rolou antes que ela continuasse, agora mais alto, embora lutasse para conter o tom. — Todas elas estavam infectadas… e vocês tiveram que matar elas!

    A garota engoliu seco, o peito subindo e descendo rápido enquanto tentava não chamar atenção de qualquer coisa que pudesse estar escondida por ali.

    João Paulo deu um passo para trás, nervoso. As mãos dele tremiam como se tentassem segurar algo invisível.

    — Respondendo a sua pergunta, Alicia… quem matou elas foi o Bruno. Ele matou todas elas sozinho. Eu… eu só consegui ficar parado, travado, olhando tudo. — A voz dele saiu fraca, quase um sussurro, mas os olhos brilhavam com lágrimas acumuladas.

    Alicia piscou, como se as palavras tivessem socado seu peito. Sua mente correu, montando as cenas que ele descrevia. Endireitou o corpo e se encostou no carro, como se o peso daquelas revelações a tivesse atingido fisicamente.

    “Então é por isso que ele mentiu pra Samira”, pensou, com um nó na garganta. Ele teve que matar a própria mãe. As próprias irmãs.

    ***

    Enquanto vasculhavam os matos dos lotes vazios e olhavam dentro de buracos, Pedro jogou um comentário no ar:

    — Ô Gui, acho que já tamo perdendo tempo aqui. Melhor os mete pé daqui. A gente ainda precisa pegar umas coisas lá em casa.

    Guilherme nem olhou para o irmão, a empolgação estampada no rosto.

    — Ô, Ph! Achei um grandão aqui pra gente! — respondeu, levantando um pacote de maconha todo enrolado em uma sacola preta. Um sorriso malandro surgiu enquanto ele balançava o achado. — Sorte grande, meu parceiro.

    Pedro bufou, mas não resistiu ao riso discreto. Guilherme parecia sempre transformar qualquer situação em uma espécie de “caça ao tesouro”.

    Sem perder mais tempo, os dois saíram do mato, concordando que era melhor voltar pra casa e pegar o que precisavam antes que algo ou alguém cruzasse o caminho deles.

    ***

    Dentro da casa, Bruno entrou no banheiro sem perder tempo, já puxando as roupas sujas de sangue do corpo. Ao tirar a blusa de frio, percebeu alguns arranhões no braço e no torso que ele nem lembrava de ter recebido durante os combates. Não se preocupou — apenas olhou com indiferença, como se fossem meras marcas de um dia comum. Continuou até remover toda a roupa, jogando as peças no chão com desdém.

    Antes de sequer pensar em ligar o chuveiro, ele pegou o celular do bolso da calça e abriu o aplicativo de músicas. Seus dedos navegaram rapidamente até a faixa que mais parecia traduzir o que ele sentia naquele momento: “Marcas”, da banda Petrichor, do álbum Casa de Pensamentos. Não era uma banda muito conhecida, mas Bruno valorizava o talento deles em misturar estilos e criar algo único em cada música.

    Quando os primeiros acordes começaram a ecoar no banheiro, ele se encarou. De frente para o espelho, estudou as feridas no corpo nu enquanto a melodia preenchia o silêncio pesado do ambiente. Havia cortes, hematomas, e… algo que fez o sangue dele gelar por um instante.

    No ombro esquerdo, na parte de trás, uma mordida. O sangue escuro ao redor era quase negro, impregnando a pele com um aspecto estranho. Ele inclinou o corpo para enxergar melhor e, no mesmo movimento, notou algo ainda mais perturbador: ao erguer os olhos para o espelho, o reflexo o encarava com algo que não era dele.

    Um olho. Vermelho. Intenso como uma chama recém-acesa, ocupando o lugar do castanho natural que ele carregava desde sempre. Ele ficou parado, estudando a nova coloração, sem pânico ou surpresa. Apenas uma sensação curiosa tomou conta dele.

    “Interessante”, pensou consigo mesmo, os lábios se curvando num sorriso quase imperceptível.

    Bruno se virou para ligar o chuveiro. A água começou a cair, e, mesmo com energia elétrica ainda funcionando na casa, ele optou pelo banho gelado. Seu corpo estava tão quente que, mesmo com a água em temperatura ambiente, vapor subia de sua pele, como se estivesse fervendo por dentro.

    Ele olhou para baixo e viu o sangue misturado à água, escorrendo em fios avermelhados pelo ralo. O silêncio era quebrado pela música que tocava em seu celular, mas um ruído branco começou a tomar conta. Era como se um chiado se formasse dentro de sua cabeça, abafando a melodia. O som crescia, pressionando, enquanto uma dor latejante surgia, intensa e pulsante.

    Antes que pudesse reagir, tudo mudou. Num piscar de olhos, Bruno não estava mais no banheiro. Ele estava diante da porta da casa de Alicia.

    — Como eu vim parar aqui? — murmurou, confuso. Mas, antes que pudesse pensar em outra coisa, seu corpo começou a se mover sozinho, como se não lhe pertencesse.

    — Mas que merda é essa?! Meu corpo não quer me obedecer! — gritou, mas sua voz ecoou apenas dentro de sua mente.

    Sem controle, ele abriu a porta lentamente e entrou. A casa estava escura, com uma atmosfera pesada, como se os moradores ainda estivessem dormindo quando o vírus chegou pelo ar. Bruno lutava para retomar o controle, mas era como se ele fosse apenas um espectador preso dentro de si mesmo.

    “Será que estou possuído? Merda!” Ele gritava e debatia em sua mente, mas seu corpo continuava avançando pelos cômodos, ignorando os detalhes ao redor. De repente, algo o atacou pelas costas. A mãe de Alicia, infectada, mordeu seu ombro, afundando os dentes.

    Antes que ela pudesse cravar ainda mais fundo, Bruno, com reflexos frios e automáticos, inclinou-se para baixo e juntou as mãos: uma fechada e outra aberta, impulsionando seu punho numa cotovelada certeira no estômago dela. A mulher recuou, mas o sangue negro e quente escorria de seu ombro.

    “Fui mordido! Que droga! Por que caralhos eu tô desarmado?!”

    Seu corpo agiu novamente, pegando a mulher pelos cabelos e jogando-a contra a parede. Ele percebeu, com horror, que sua boca se abria involuntariamente, avançando em direção ao pescoço dela.

    — Não! — gritou Bruno, sua voz desesperada ecoando dentro de sua mente.

    Mas era inútil. Ele estava escorregando no chão molhado do banheiro, sem ar, enquanto seus olhos ardiam e sua boca começava a salivar. No celular, a música Monster da banda Skillet tocava ao fundo, como uma trilha sonora macabra.

    De repente, ele estava de volta à casa. Seu corpo, possuído por algo que ele não compreendia, mordia o pescoço da infectada, rasgando a pele com os dentes. O gosto do sangue preencheu sua boca, e uma sensação terrível o invadiu: prazer misturado a um horror indescritível. Ele sugou o sangue, e a ferida no seu ombro começou a fechar, como se estivesse se regenerando.

    Seus olhos brilhavam em um vermelho intenso, pulsando com cada gota de sangue derramado. Possuído por algo monstruoso, Bruno pegou uma faca da cintura — sua marreta havia ficado no carro — e cortou os tendões dos pés da mulher, impedindo que ela se levantasse.

    Mesmo enquanto ela se debatia no chão, ele avançou. Cravou a faca fundo em suas pernas, puxando para baixo, rasgando a carne sem hesitar. Ela gritou, mas ele não parou. Pisou no pescoço dela, quebrando qualquer tentativa de resistência, e começou a cortar os tendões das mãos, repetindo o processo na outra.

    “Eu bebi sangue infectado…” Bruno repetia dentro de sua mente, incapaz de desviar o olhar do que seu corpo fazia. Ele a arrastou pelos cabelos até a cozinha, deixando um rastro de sangue pelos corredores. Lá, com brutalidade, esmurrou o rosto dela contra o chão e começou a mutilá-la com a faca. Órgãos, sangue e tripas se espalharam pelo chão, enquanto ele cortava sem piedade.

    Seus olhos, agora completamente vermelhos, brilhavam como brasas. Quanto mais sangue ele derramava, mais intenso ficava o brilho.

    De repente, Bruno abriu os olhos. Estava de volta ao banheiro, caído no chão, a água fria batendo em seu corpo. Rios de sangue escorriam de seu nariz. Ele respirava pesado, como se tivesse corrido uma maratona.

    A primeira coisa que passou por sua mente foi a mais reconfortante possível:

    “Nada disso foi real. Era só uma alucinação. Só isso.”

    Mas o gosto de sangue ainda estava em sua boca.

    Bruno secou as mãos na toalha e pegou o celular, buscando algo que distraísse sua mente. A música “Endorfina também da banda Petrichor” começou a tocar, enchendo o banheiro com sua batida pulsante. Ele começou a cantar baixo, mas cada verso parecia trazer de volta flashes das memórias que queria esquecer. Quanto mais as imagens se repetiam, mais ele aumentava o volume da voz, quase como se quisesse afogar o caos na melodia enquanto a água quente escorria pelo seu corpo.

    Ao terminar, desligou o chuveiro e ficou parado, braços apoiados na parede fria. Sem motivo aparente, soltou uma risada nervosa, quase histérica, enquanto seus olhos fixavam a mordida em seu ombro. As marcas eram feias, mas algo pior estava surgindo: veias negras e finas, como raios, começaram a se espalhar sob sua pele, partindo da ferida. Ele não sentia dor, apenas uma sensação estranha, como se aquilo fosse parte dele agora. “Meu corpo tá combatendo essa porra”, murmurou, tentando acreditar na mentira.

    Pouco depois, saiu do banheiro. Vestia uma camisa verde-escura sem mangas, com capuz, uma calça jeans azul e tênis pretos. Seu olhar parecia mais limpo, os olhos recuperando a cor natural, e os cabelos cacheados foram ajeitados para trás com as mãos ainda molhadas. Ele se sentia diferente, como se estivesse olhando o mundo de uma nova perspectiva. Ao sair da casa com sacolas de roupas, encontrou Alicia, que o observou se aproximando. Algo nele havia mudado. O semblante, a postura, até mesmo o jeito de caminhar… Ela gostou, mas guardou o pensamento para si.

    Mais à frente, João Paulo avistou os dois voltando.
    — Aê, o Tico e o Teco tão chegando. Fora os colchões, cês acham que falta mais alguma coisa?

    Bruno analisou a situação rapidamente antes de responder:
    — Um fogão. Vai ser bom levar enquanto a gente tá aqui.

    Sem esperar, ele voltou para dentro da casa. João Paulo olhou para Alicia, que agora estava sentada na traseira da Fiorino.
    — Tô vendo que não vai caber tudo nesse carro.

    — Concordo. — Ela respondeu, enquanto Pedro e Guilherme se aproximavam.

    Pedro sorriu para João Paulo.
    — Deu certo, meu truta!

    — O que deu certo? — Alicia perguntou, curiosa.

    Antes que Pedro pudesse responder, Guilherme se adiantou, com um sorriso malicioso.
    — O nonte.

    — O quê? — Alicia insistiu, franzindo a testa.

    — Não te interessa, porra! — Guilherme riu, se divertindo com a irritação dela.

    Sem paciência para as provocações, Alicia tentou imitar Bruno e deu um tapa em Guilherme. Ele, no entanto, esquivou com facilidade, deixando-a ainda mais irritada. Pedro gargalhou, zombando dela. João Paulo suspirou, pensando: “Essa infantilidade de quinta série tá no sangue da família.” Ele se lembrou das brincadeiras sem fim de Bruno.

    Bruno, por sua vez, retornou carregando dois colchões de solteiro. Seu olhar estava vazio, quase frio. Observou a descontração ao redor, mas na cabeça dele, a única cena que se repetia era de corpos mortos e sangue por toda parte.

    — Vamos precisar de cordas pra amarrar os colchões no carro. — Ele comentou, chamando a atenção de todos.

    — Cê tem aí na sua casa? — João Paulo perguntou.

    — Não. Mas na casa do Patati e Patatá tem. Tá na varanda, em cima do sofá lá atrás.

    — Eu e o Gui vamos pegar. — Disse Pedro, caminhando para a casa.

    — Eu não vou lá não, fi! — Guilherme respondeu, voltando a provocar Alicia com caretas idiotas.

    — Eu não vou pegar nada pra você, vacilão! — Pedro gritou do portão.

    Alicia cruzou os braços e perguntou para Guilherme:
    — Por que você não vai pegar suas coisas?

    O sorriso sumiu do rosto dele.
    — Minha mãe tá morta lá dentro. Não quero ver o corpo dela.

    O silêncio tomou conta por um momento. Bruno, sem dizer nada, subiu os colchões no carro e retirou os que estavam dentro para amarrar todos juntos. Ele suspirou fundo, enquanto João Paulo dizia:
    — Eu vou com ele… Assim a gente termina isso logo.

    — Beleza. Eu vou pegar o fogão. — Bruno respondeu, ainda distante.

    Enquanto Bruno amarrava os colchões no carro, João Paulo observava em silêncio. Foi então que notou a marca no ombro de Bruno: uma mordida clara, os dentes marcados como cicatrizes irregulares na pele. Por um momento, seus olhos se estreitaram, e ele prendeu a respiração. Aquele tipo de ferimento normalmente significava um fim rápido para qualquer pessoa.

    Mas Bruno parecia… normal. Nenhum tremor, nenhum olhar perdido ou movimentos estranhos. João Paulo engoliu seco. Ele sabia que deveria perguntar, confrontá-lo, mas não naquele momento. Não agora. Havia pressa em sair dali, e o comportamento de Bruno, até aquele ponto, não dava motivos para alarme imediato.

    “Se ele começar a mudar, eu lido com isso depois.”

    Com essa decisão na cabeça, João Paulo afastou qualquer pensamento de confronto. Sem dizer mais nada, ele virou as costas e seguiu com passos rápidos para a casa de Pedro, tentando manter o foco no que realmente importava: sair daquele lugar antes que algo desse errado.

    Pouco tempo depois, todos estavam prontos para partir de volta ao mercado. No entanto, as imagens na mente de Bruno continuavam: corpos mortos, sangue e caos. Ele sabia que aquilo não iria embora tão cedo.

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