Índice de Capítulo

    Samira acordou sobre um palete coberto por pacotes de arroz que serviam como cama improvisada. Ao redor, o armazém estava silencioso, com a maioria das pessoas dormindo espalhadas pelo lugar, ocupando os colchões que João Paulo e Bruno haviam trazido. Felizmente, ela tinha um dos poucos cobertores que haviam conseguido, o que a ajudava a se proteger do frio.

    Levantando-se, ela olhou em volta enquanto caminhava na direção de João Paulo, que estava de guarda, mexendo no celular. Ele era o único acordado, além dela. No caminho, ela procurou pelo irmão, mas percebeu que ele não estava ali. Isso a deixou preocupada.

    — Jão, cadê o meu irmão? — perguntou, a voz carregada de preocupação.

    João Paulo hesitou, claramente desconfortável. No celular, ele havia pausado um vídeo que mostrava algo sobre um novo tipo de infectado mutante. Ele respirou fundo antes de responder.

    — Escuta, Samira… Eu não sei bem como te dizer isso, mas… o teu irmão foi um herói. — Ele falou de forma cuidadosa, colocando uma mão no ombro dela.

    — Ele morreu? — perguntou Samira, com os olhos cheios de lágrimas e a voz tremula.

    João Paulo desviou o olhar por um instante, parecendo buscar as palavras certas.

    — Antes de você desmaiar, lembra daquela horda de infectados que estava invadindo aqui? Querendo pegar vocês? — Ele fez uma pausa. — Quem afastou todos eles daqui, sozinho, foi ele. Mas ele ainda não voltou, então… acho que ele não conseguiu.

    Samira ficou em silêncio por alguns instantes, absorvendo o que tinha ouvido.

    — Ele… fez isso pra salvar a gente? — perguntou, quase sussurrando.

    João Paulo assentiu, visivelmente abalado.

    — Sinto muito, Samira. De verdade.

    Os dois permaneceram em silêncio por algum tempo. A noite seguia lenta, e João Paulo ficou ao lado dela até que o amanhecer trouxesse um pouco de luz ao ambiente e um novo começo, mesmo que incerto.

    ***

    Pouco antes do amanhecer, depois de terminar de comer, Bruno olhou pela janela. Seus olhos se estreitaram ao ver a rua ainda lotada de infectados. O cansaço e a frustração o corroíam. Ele gritou, socando a parede com raiva.
    — Mas que droga! Falta uma hora pro dia amanhecer, e essas pragas continuam infestando essa porra de rua! CARALHO MEU, PORRA!

    Sem pensar, ele pegou uma panela vazia que estava na pia e a arremessou com toda a força. A panela voou pela janela, acertando as costas de um infectado.
    — VAI TOMAR NO CU, SEUS FILHOS DA PUTA! — berrou ele, os olhos começando a assumir aquele tom estranho novamente.

    Uma dor latejou em sua cabeça, aguda, mas suportável. Ele ignorou, focando na cena lá fora. Ao cair no chão, a panela fez barulho, mas nada mudou. Só o infectado atingido reagiu. Nenhum dos outros sequer se mexeu. Bruno franziu o cenho, confuso. Pegou mais duas panelas: arremessou uma em outro infectado e jogou a outra no chão. O padrão se repetiu. Apenas o atingido reagiu.

    Ele murmurou para si mesmo, pensativo:
    — Não é possível… Eles só reagem se tocar neles à noite? Caralho, eu preciso testar isso.

    Sem hesitar, ele pegou uma faca de lâmina lisa, não muito grande nem pequena demais, e desceu as escadas. Passou por cima da porta derrubada pelos infectados mortos na casa, os corpos agora rígidos e fétidos. Ainda era um mistério o que os havia matado enquanto ele estava desacordado. Ao pisar na madeira, ela rangeu alto. Ele parou, segurando a respiração. Olhou para fora. Nenhuma reação.

    Um sorriso de alívio surgiu em seu rosto, mas logo foi substituído por algo mais… insano. Ele abriu a porta e gritou para a rua:
    — AÍ, SEUS PUTOS! VEM CÁ PEGAR ESSE MARAVILHOSO E SEDOSO SACO DE CARNE AQUI, MAS NÃO SE ESQUEÇAM DE PEGAR NA LINGUIÇA TAMBEM SAIBA A CARNE DE QUALIDADE!

    Silêncio. Nenhum infectado se mexeu. Ele gargalhou, a risada ecoando pela rua vazia.
    — Nada… É isso mesmo. — murmurou, um sorriso maluco se espalhando pelo rosto.

    Ele se aproximou do infectado mais próximo, seus passos firmes. Parou diante da criatura, o coração batendo rápido. Sem tocá-lo, começou a provocar: fez caretas, mostrou o dedo do meio, riu na cara do infectado. Nada. A criatura permanecia imóvel, como uma estátua grotesca.

    Bruno tirou o celular do bolso e acendeu a lanterna, mirando diretamente nos olhos do infectado. No instante em que a luz tocou o rosto da criatura, ela rugiu e avançou, os dentes à mostra. Bruno deu um salto para trás, quase deixando o celular cair. Mas assim que a luz se afastou, o infectado parou, voltando ao estado imóvel.

    — Então é isso… Sem toque ou luz, vocês ficam aí parados, vegetando igual peixe morto. — Ele riu de novo, mas agora sua expressão era de pura euforia. — Bom saber.

    O ar parecia mais denso. Bruno começou a respirar pesado, os olhos brilhando com algo sombrio. Sua ansiedade explodiu, se misturando com uma excitação incontrolável. Ele levantou a faca, gritando:
    — Nó, cês tão fodidos na minha mão agora!

    Sem pensar, ele partiu para cima dos infectados. A lâmina rasgava carne, o sangue espirrava. Bruno esmagava crânios com objetos que encontrava pelo caminho. Cada golpe, cada jorro de sangue trazia uma satisfação que ele nunca havia sentido antes. Era como se toda a violência reprimida estivesse se libertando. Ele não lutava por sobrevivência. Agora, era puro prazer.

    Quando o dia começou a amanhecer, o céu tingido de laranja, Bruno parou. Estava coberto de sangue, os músculos cansados, mas sua mente… sua mente parecia mais viva do que nunca. Ele caminhou até um carro abandonado e, ao ver seu reflexo no vidro, parou.

    A pessoa que olhava de volta não era ele. O sangue no rosto, o sorriso descontrolado… Era um monstro. Por um momento, ele sentiu um arrepio, mas isso logo se dissipou. Em vez de medo, veio uma sensação de força. Ele sorriu de novo, ainda mais largo.

    Tirou o celular do bolso, conectou o fone de ouvido e procurou uma música. Quando Monster, da banda Skillet, começou a tocar, Bruno gargalhou.
    — Isso! Essa é pra vocês, seus desgraçados!

    Ele cantava e gritava pelas ruas, chamando qualquer infectado que ainda pudesse reagir. Mas ninguém vinha. O sol subia lentamente, iluminando a devastação ao redor. Bruno andava como um rei no meio do caos, a música gritando nos fones:
    “I feel it deep within, it’s just beneath the skin…”

    A cada verso, Bruno balançava a cabeça, sentindo o ritmo na alma. Ele não era mais o mesmo. E, no fundo, adorava isso.

    Após algum tempo caminhando, vendo que não surgia ninguém e sem querer chegar tão cedo ao mercado, Bruno começa a invadir as casas pelo caminho em busca de ação.
    — Mas que merda… O prazer e a satisfação que tô sentindo é estranho pra caralho. Antes, toda vez que acertava um infectado, me dava uma sensação estranha, mas agora… agora é como se uma felicidade imensa tomasse conta de mim. É como se o tempo parasse, como se tudo fosse em câmera lenta, e eu estivesse no controle de tudo só eu e meus demônios…

    Bruno entra em uma casa com dois infectados. Depois de tantas lutas em tão pouco tempo, sente como se estivesse se acostumando a enfrentar os infectados adultos. Antes, isso era uma dificuldade, mas agora era só empurrar o primeiro, acerta o segundo, uma, duas, três vezes e derruba. Acerta o primeiro, empurra de novo, mata o segundo e se diverte com o primeiro, rasgando-o todinho. Depois de derrubar os dois infectados, Bruno ouve um barulho, algo caindo. Sem perder tempo, ele verifica…

    Bruno olha para os lados, mas não vê nada. No entanto, o cheiro forte de xixi invade suas narinas. Ele olha para baixo e percebe algo molhado saindo de debaixo da cama. Vê um jarro de porcelana branca, com vários detalhes de flores quebrados do outro lado da cama. Desconfiado, sai do quarto e volta com uma vassoura. Ao voltar, tenta acertar o que está debaixo da cama.

    — Aí!

    Bruno ouve um grito fino de mulher:

    — Espera aí, infectados não gritam “aí!”

    Bruno levanta o colchão da cama e, ao olhar para baixo, vê uma jovem muito bonita, de cabelos ruivos. Ele fica sem palavras… Ela era tão linda, parecia saída de um sonho. Era como se ele olhasse para uma ilustração, alguém tão perfeita que ele mal acreditava que poderia existir. Olhos claros, cintura de violão, curvas impecáveis, e a musculatura bem definida, mostrando que ela fazia academia. A jovem estava completamente apavorada, deitada em uma poça de xixi que parecia estar a algum tempo.

    Ela congela ao ver Bruno. O medo é tão grande que, mesmo querendo gritar, sua voz não sai. Não era para menos. Tudo o que ela vê é um jovem coberto de sangue, com uma faca ensanguentada na mão.

    Bruno levanta a grade da cama e a joga para o lado. Ele vê que a garota está em pânico. Estende a mão e diz:

    — Consegue se levantar? Fica tranquila… eu não vou fazer nada que você não queira.

    A garota não diz nada, mas pega a mão de Bruno para se levantar. Ele sente um cheiro insuportável de sujeira e, sem querer ofender a garota, comenta:

    — Por enquanto, aqui tá seguro… Mas eu recomendo que você tire essa roupa e tome um banho antes de sair. E, se possível, evite olhar os corpos pela casa.

    A jovem, até então desconhecida, não sabia se confiava em Bruno ou se tentava sair dali sozinha. No fim, ela decide acompanhá-lo. Afinal, ela estava tão apavorada que não saía de debaixo da cama desde que tudo começou. Logo, percebeu que precisaria de ajuda e obedeceu ao pedido de Bruno.

    Enquanto esperava, Bruno tenta puxar conversa:

    — Aliás, qual seu nome?

    Ainda sem olhar para Bruno e intimidada pela sua aparência assustadora, indiferente aos corpos espalhados pela casa, ela responde:

    — Íris. Íris Miranda.

    Bruno estende a mão direita, tentando ser cordial:

    — Prazer, Bruno Mohammad.

    Íris cumprimentou Bruno com uma certa insegurança, virando-se logo em seguida para procurar roupas e tomar um banho. Bruno, por sua vez, foi trancar a porta da casa e preparar algo para os dois comerem.

    Íris entra no banheiro e começa a se perder em seus pensamentos, ainda tentando entender se pode confiar em Bruno. Sua aparência era horrível, mas seu tom de voz era calmo e suave, assim como a expressão de seu rosto.

    Debaixo do chuveiro, ela reflete:

    — Esse cara é assustador… Ele tá normal depois de matar duas pessoas, e com o tanto de sangue na roupa dele, com certeza já deve ter matado muito mais. Minha mãe… minhas tias… merda!

    Íris começa a chorar, enquanto seus pensamentos se aceleram:

    — Por que tudo isso tá acontecendo? Será castigo de Deus ou intervenção do homem com aquele tal de vírus do cervo zumbi que tava bombando naquele ano?

    De repente, Bruno bate na porta, e Íris se assusta. Ele pergunta:

    — Íris, cê tá legal? Não demora muito aí não, beleza?

    Ela tenta focar no banho e responde, tentando se recompor:

    — Já vou sair!

    Bruno, enquanto espera, enche a mesa com comida e vai até a janela da cozinha para observar a rua. Vê um infectado vagando no meio da rua.

    Ele reflete, pensativo:

    — Eu não esperava encontrar alguém vivo aqui dentro. Pode ser que haja mais sobreviventes por aqui… As ruas estavam meio desertas nos primeiros dias, mas agora, aos poucos, esses desgraçados estão aparecendo cada vez mais. Mas… por que diabos eu tô adorando essa ideia, mesmo depois de ter matado minha mãe e irmãs?

    Ele balança a cabeça, cético:

    — Isso é perigoso. Não tá mais parecendo que sou eu no controle das minhas ações… Como eu cheguei a esse ponto? Em pensar que eu já quase morri várias vezes nos últimos dias… E o pior de tudo: eu tô tão tranquilo com isso. Não sinto mais nada em relação a nada. É como se tudo fosse uma cena de filme, e eu só estivesse assistindo através dos olhos de outra pessoa. E, por mais que seja vazio, distanciado, eu gosto dessa sensação.

    Íris chega na cozinha e, ao olhar para a mesa, percebe a comida farta, e uma sensação de surpresa a invade.

    Bruno a olha e se surpreende ao ver como ela ficou ainda mais bonita depois do banho.

    — Você demorou.

    Íris olha para a mesa e, surpresa pela comida, ela coloca uma colher na boca.

    — Isso tá delicioso. — comentou sendo muito grata pelo que comia, mas curiosa do por que dele está sendo tão amigável com uma estranha pergunta. — mas por que você fez isso pra mim?

    Bruno, pensativo, demora a responder, mas finalmente diz:

    — Tá na cara que você não come e nem bebe há algum tempo, e eu não vou carregar peso morto, disso você pode ter certeza.

    Íris não se incomoda com a maneira direta e meio grossa de Bruno falar. Ela decide estender a conversa, tentando se sentir mais à vontade e, ao mesmo tempo, aprender mais sobre ele e sobre o que acontece lá fora.

    — Fiquei escondida embaixo da cama o tempo todo… ou melhor, desde quando tudo começou. E eu queria saber… Por que você está me ajudando?

    Bruno dá um leve sorriso, seus olhos se fixando no rosto e nos lindos cabelos de Íris.

    — É que você parecia uma gatinha assustada, então eu quis ser o seu salvador, tá ligada? — ele diz, olhando-a de cima a baixo, com um brilho de desafio nos olhos.

    Íris dá um leve sorriso, mas a visão da roupa dele, ainda ensanguentada, e o estrago que ele causou nos corpos dos infectados a fazem ficar alerta. Ela sabia que não era uma boa ideia ficar tranquila ao lado de alguém que podia ser um risco para ela.

    — Eu tô vendo que tem muito sangue na sua roupa ainda, e vou ser sincera com você… Eu ainda não tô me sentindo muito segura andando com o cara que sai por aí rasgando todo mundo como um psicopata maluco. — Ela fala com cuidado, tentando não ser evasiva demais, mas também sem querer ofendê-lo.

    Bruno percebe a insegurança de Íris e, com um sorriso sutil no canto da boca, sente um certo prazer por ela ter sido direta. Ele percebe que ela é inteligente e sabe escolher bem suas palavras, e isso o faz se proteger, não expondo seu lado mais sombrio, mas tentando se mostrar um cara misterioso, alguém em quem ela poderia confiar — afinal, a aparência dela o agradava bastante.

    — Só tenho corrido, lutado e matado tudo que aparecia na minha frente. — Ele responde de forma direta, tentando esconder a satisfação que sente ao ser sanguinário com os infectados.

    Íris percebe que Bruno tentava se manter no mesmo nível que ela. Então, ela resolve usar alguns truques psicológicos que aprendeu em seu curso de psicologia para entender melhor a mente dele. Ele não passava a impressão de ser totalmente humano, e em alguns momentos, o olhar dele fazia Íris sentir como se estivesse diante de um terrível predador.

    — Você sente alguma coisa quando mata esses “zumbis”?

    Bruno responde de maneira sincera, sua voz carregada de um toque de indiferença.

    — Sentia bastante no início, mas agora é meio que natural pra mim, mesmo que só tenha se passado três dias desde que tudo começou. Aliás, por que você disse “zumbi”?

    Ela coloca a última colherada de comida na boca, terminando de mastigar enquanto reflete sobre sua resposta.

    — Não é óbvio? Certamente é a doença do cervo zumbi… Eu só estou curiosa sobre o surto repentino nas pessoas, como todo mundo surtou aqui dentro de casa. — Ela respondeu, tentando mostrar segurança, embora soubesse que não a tinha.

    Bruno, impressionado com a perspicácia de Íris, sorri levemente.

    — Interessante… então você gosta de se manter antenada, parabéns. — Ele se levanta da cadeira, admirando a forma como ela se comporta.

    De repente, ele a encara profundamente nos olhos, como se tentasse enxergar algo mais.

    — Você acha que consegue reunir coragem o suficiente para matar, se necessário? — A voz de Bruno tem um tom de desafio, como se pudesse ver até o fundo da alma dela.

    Íris é pega de surpresa pela pergunta. Não sabe bem o que responder, mas algo na intensidade do olhar dele faz com que ela se sinta coagiada a responder. E então, os olhos de Bruno começam a mudar diante dela, seu castanho se tornando um vermelho intenso.

    — Meu Deus… seus olhos… O que é você? — Ela sussurra, completamente assustada.

    Bruno recua imediatamente, fechando os olhos com força, como se tentasse esconder algo. Íris, ainda assustada, observa a mudança de comportamento dele e, apesar do receio, sente sua curiosidade crescendo. Ela se levanta devagar, os movimentos cautelosos, mas não consegue evitar se aproximar, mesmo que algo dentro dela gritasse para ficar longe.

    — O que foi isso? — ela pergunta, quase num sussurro, tentando disfarçar o medo.

    Bruno se afasta, os passos pesados ecoando pela cozinha. Ele estende o braço, um gesto de afastamento, como se quisesse criar uma barreira invisível entre eles.

    — Não tem nada pra ver aqui. — Ele diz com a voz tensa, quase cortante, sem olhá-la nos olhos.

    Mas Íris não se dá por satisfeita. Seus olhos fixos nele tentam buscar uma resposta. Ela dá mais um passo, mesmo com o coração disparado.

    — Qual foi a pira com meus olhos, hein? — Bruno questiona de repente, virando o rosto para o outro lado, longe do olhar curioso dela. Sua voz está firme, mas tem um leve toque de irritação, talvez até de medo.

    Íris para, sentindo o ar ao redor pesar. A intensidade daquele momento fazia tudo parecer mais claustrofóbico. Ela hesita por um instante, mas percebe que há algo maior acontecendo. Algo que Bruno estava desesperado para esconder.

    — Seus olhos… Eles mudaram. — Íris finalmente solta, a voz baixa, mas carregada de nervosismo. — É como se… como se fossem… vermelhos. Isso não é normal.

    Bruno solta uma risada curta, quase forçada, balançando a cabeça em negação.

    — Ah, vai me dizer que nunca viu gente com olhos vermelhos? É só a luz, porra. Não viaja. — Ele tenta soar despreocupado, mas seu tom trai uma inquietação mal disfarçada.

    Íris não acredita. Algo dentro dela dizia que aquilo não era uma simples ilusão, mas ela decide não pressioná-lo mais… por enquanto.

    Íris se afasta, desviando o olhar para a mesa enquanto respira fundo, tentando organizar seus pensamentos. Depois de um longo silêncio, ela responde com a voz ainda trêmula:
    — Respondendo à sua pergunta… Eu acho que, no momento, não conseguiria. Sabe, eu sempre pensei em me cuidar, treinar, estudar, mas nunca imaginei que precisaria… matar alguém. Isso não me agrada nem um pouco. — Ela faz uma pausa, apoiando uma mão sobre a mesa enquanto seus olhos vagam pelo ambiente. — Mas eu sei que agora, mais do que nunca, é o que preciso fazer. O problema é que eu tenho plena certeza de que, pra isso, eu não estou pronta.

    Bruno a observa com atenção, os olhos fixos nela, mas sem emitir nenhum julgamento. Ele cruza os braços, inclinando levemente a cabeça para o lado, e responde com uma voz firme, carregada de uma frieza quase desumana:
    — A gente nunca tá pronto pra nada… até que faz. Não importa o quanto a gente simula na cabeça, porque, no final, tudo que resta é sangue, dor e sofrimento. Principalmente quando você é obrigado a matar quem mais ama.

    Houve um breve momento de silêncio. Bruno desviou o olhar, encarando a parede com uma expressão distante. A lembrança de sua mãe e irmã se esvaiu tão rápido quanto veio, deixando para trás apenas a sensação física da marreta esmagando os crânios delas. Ele não sabia se sentia mais ódio pela necessidade de tê-lo feito ou por não sentir nada ao lembrar.

    Tentando desviar o assunto, Bruno volta o olhar para Íris, desta vez focando no rosto dela.
    — Esse papo já ficou chato… muito rápido, por sinal. Então, quantos anos você tem, garota?

    Íris percebeu o desconforto nas palavras dele. Havia algo oculto, uma dor que ele não queria compartilhar. Decidindo não pressioná-lo, ela responde casualmente enquanto recolhe o prato da mesa:
    — Dezessete. E você?

    Bruno deu um leve sorriso.
    — É… você é alguns meses mais velha do que eu.

    Íris franziu o cenho ao notar algo que antes não havia percebido. Seus olhos se estreitaram enquanto ela examinava Bruno com cuidado.
    — Você tá com duas marcas de mordida. — Ela apontou, com uma pitada de ousadia na voz. — Uma no braço e outra no ombro. Como você ainda tá vivo e falando como uma pessoa normal?

    A pergunta fez Bruno soltar uma risada breve e seca. Ele balançou a cabeça, como se não fosse grande coisa, mas seus olhos brilhavam com algo indefinível.
    — Não sei… Acho que é porque eu tenho muito medo de morrer. — Ele respondeu, sua voz suave e quase hipnotizante. — Talvez seja esse medo que me mantém vivo. Ou talvez seja só a minha vontade absurda de continuar lutando.

    Íris não sabia o que pensar. Por um lado, Bruno era aterrorizante, quase impenetrável, mas havia algo intrigante nele. Algo que ela não conseguia ignorar.

    Ela cruzou os braços, tentando não demonstrar sua inquietação.
    — Medo, força de vontade… Sei. — Disse, com um leve tom de sarcasmo. — Mas é bom que isso seja verdade, porque você tá começando a parecer mais estranho do que essas coisas lá fora.

    Bruno apenas deu de ombros, um sorriso de canto surgindo em seu rosto, enquanto seus olhos castanhos, quase vermelhos, a encaravam mais uma vez.

    Bruno se aproximou da janela, os olhos atentos aos movimentos erráticos lá fora. Alguns infectados surgiram na rua, cambaleando como cães farejando carne fresca. Ele suspirou, sentindo o peso da decisão antes mesmo de tomá-la. Olhou para Íris, já sabendo que o melhor seria deixá-la ali – pelo menos por enquanto. Não fazia ideia do que encontraria no mercado depois da invasão.

    — Uma perguntinha… será que teria algum problema se você ficasse aqui por um tempo? — perguntou, sem desviar os olhos dos monstros do lado de fora.

    Íris franziu a testa, confusa. Aquele lugar? Sério? Os corpos mutilados da família dela ainda estavam espalhados pela casa, o cheiro de sangue impregnado nas paredes.

    — Posso saber o motivo? Porque, sinceramente, eu tô louca pra sair daqui. — A voz dela veio cortante, desafiadora.

    Bruno apenas acenou com a cabeça, chamando-a para se aproximar. Íris hesitou, mas a curiosidade foi mais forte. Foi até ele e espiou pela janela. Assim que viu o que ele queria mostrar, sentiu o coração acelerar. O corpo inteiro dela se arrepiou.

    Do lado de fora, os infectados perambulavam, olhos mortos e bocas sujas de sangue seco. Um deles arranhava o capô de um carro, deixando marcas de unha na lataria. Outro se arrastava, uma perna destruída, puxando a carne esfarelada pelo asfalto.

    — Vai ser mais seguro você ficar aqui por enquanto — disse Bruno, observando a reação dela. — O lugar pra onde eu vou foi invadido por essas pragas. Só quero conferir se encontro alguém e depois eu volto, ok?

    Íris desviou o olhar da rua, engolindo em seco.

    — E você acha que vai demorar muito lá fora? Ou melhor… esse lugar é longe? — A voz dela saiu com um leve tremor. Medo.

    Bruno girou o cabo da faca na mão, testando a pegada.

    — Não faço a menor ideia se vou demorar. Mas o lugar não é longe. É o mercado do bairro.

    Sem esperar mais perguntas, ele abriu a porta com a mão esquerda, pronto para sair.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota