Capítulo 44: Um Plano Improvável.
Eu observava os espinhos lá embaixo, longos, retorcidos, como dentes metálicos prontos para nos engolir. Entre eles, aquele gás esverdeado se erguia em névoas traiçoeiras. Qualquer tentativa de usar fogo ali embaixo, antes de neutralizar o gás, podia virar uma sentença de morte. A névoa era densa demais. A ideia do gelo parecia boa à primeira vista, mas não duraria tempo o suficiente contra o calor que precisaríamos. Precisávamos de algo mais resistente. Algo que pudesse moldar o caminho com firmeza… e suportar o fogo.
Foi aí que uma possibilidade cruzou minha mente. Me aproximei de Gigi.
— Você consegue criar uma rocha com bastante silicato de alumínio? — perguntei, esperançosa.
Ela franziu a testa.
— Eu… não sei o que é isso.
Certo, precisava ser mais simples.
— Consegue criar uma rocha esbranquiçada, com pequenas manchas pretas, meio áspera ao toque… daquelas que se encontra perto de rios, sabe?
Ela apertou os olhos, pensativa, até que um estalo brilhou em seu olhar.
— Ah! Aquela da beira do rio, sim! — Ela se concentrou, os olhos brilharam num tom âmbar por um segundo, e então abriu a mão. Uma pequena pedra surgiu em sua palma, pontilhada com os tons que eu esperava.
— É isso mesmo… — murmurei, fascinada. — Isso é granito.
— Granito? — ela repetiu, confusa.
— Sim, mas para saírmos daqui precisamos de uma maior.
— Consigo fazer uma algumas vezes maior que essa. Mas pra quê serve?
Eu respirei fundo antes de continuar.
— Essa rocha sozinha ainda não resolve. Vamos precisar de água… e calor.
Foi então que me virei para Selene.
— Preciso da sua ajuda. E de alguém que controle bem a água.
Ela me lançou um olhar curioso.
— Pra quê água?
— Planejo usar água para desgastar o granito em alta velocidade. Isso vai gerar uma substância que pode nos ajudar a bloquear a saída do gás.
Selene cruzou os braços, pensativa.
— Água em alta velocidade… o Redemoinho Celeste pode servir. Aqua é perfeita pra isso.
Poucos minutos depois, Gigi, Selene e Aqua estavam reunidas à minha frente. Eu expliquei a ideia, passo a passo.
— Gigi cria a maior rocha que conseguir. Aqua usa o redemoinho pra fragmentá-la, e a combinação da água com os minerais do granito vai gerar algo como…
— Argila — Sophia interrompeu atrás de mim, sua voz firme.
Aqua arqueou uma sobrancelha.
— Argila?
— Sim — disse Sophia, com um meio sorriso. — Você quer fazer argila simulando intemperismo com magia? Impressionante…
Assenti e continuei a explicar o plano.
— A argila, quando hidratada, é viscosa, se molda facilmente. Podemos usá-la para tapar as saídas do gás. Mas a melhor parte vem depois: quando for aquecida, ela endurece. E se endurecer nas saídas, impede o gás de escapar enquanto usamos o fogo pra derreter os espinhos.
Aqua parecia espantada, mas aos poucos um sorriso começou a surgir.
— Então é isso que vai nos tirar daqui… barro mágico.
Selene riu de leve, e Gigi apenas olhou a pequena pedra em sua mão com mais respeito.
Agora, só restava testar.
— Mas, e eu? — Selene perguntou com os braços cruzados.
— Ah quase ia me esquecendo, esse processo de desgastar a rocha pode ser muito lento, precisamos que alguém aqueca a água para acelerar o tempo dessa reação…
Selene me deu um olhar difícil de decifrar, em seguida estalou os dedos ascendendo uma chama entre eles.
— Vamos logo com isso, o forno já está aceso… — disse com certo deboche.
Gigi ficou em silêncio por um momento, depois assentiu com firmeza. Estendeu as duas mãos e começou a concentrar sua energia. O chão de cipós sob nós tremeu levemente quando fragmentos minerais começaram a se juntar ao redor da garota. Em poucos segundos, uma grande rocha de granito começou a se formar, sólida, pesada e irregular, como se tivesse sido retirada diretamente de uma encosta. O brilho nos olhos de Gigi desapareceu devagar, e ela se apoiou nos joelhos, ofegante.
— Está perfeita — eu disse, me aproximando.
Toquei a superfície: era fria, áspera e pontilhada como as rochas que vi no manual.
— Agora é com você, Aqua.
Aqua se adiantou imponente, seus olhos azuis brilharam como mar, e ela estendeu as mãos em direção à rocha. Um redemoinho começou a girar em alta velocidade, envolvendo o granito. Com o auxílio de Selene, aquela tarefa se tornou muito mais veloz, gotículas finas ricocheteavam para todos os lados enquanto a água girava com força cortante, desgastando lentamente a rocha. A cada minuto, o redemoinho arrancava partículas minúsculas do granito, até que, aos poucos, o redemoinho mudou de cor para um tom esbranquiçado e denso.
A substância suspensa na água começou a se acumular no centro, pastosa e viscosa.
— É isso… — murmurei, maravilhada. — Vocês estão criando argila.
Selene sorriu de lado.
— Tudo bem… e agora?
— Agora espalhamos isso nas válvulas.
Gigi e Aqua usaram magia para suspender porções da argila recém-formada. Ela ainda estava úmida, grossa e densa; perfeita para moldar. Começaram a aplicar com cuidado sobre as saídas do gás, tampando as principais aberturas visíveis entre os espetos.
Era um trabalho delicado. Elas seguiram guiando a argila para tapar a saída economizando o máximo possível. Quando a última saída foi coberta, respirei aliviada. Ainda não tínhamos vencido, mas pelo menos o gás estava sob controle por enquanto.
A névoa de gás começou a se dissipar aos poucos até que conseguissemos ver o piso com clareza.
Cratos se aproximou e falou em voz baixa.
— Agora vem a parte fácil, né? Só derreter um campo de espetos sem provocar o fim do mundo.
— Quase isso — respondi com um meio sorriso.
Selene ergueu a mão.
— Finalmente… deixa comigo. — Chamas dançaram ao redor de seus dedos. Ela se concentrou, e o calor começou a ser liberado com controle absoluto. — Turbilhão de Chamas!
O fogo tomou conta de tudo abaixo em questão de segundos, o calor era quase inssuportável, até que as primeiras pontas dos espinhos começaram a brilhar em tons de vermelho e laranja. O metal arqueava sob o calor, aos poucos amolecendo. O cheiro de ferro queimado começou a subir, misturado ao vapor da argila secando e endurecendo nas válvulas. As criaturas que estavam lá não tiveram tempo de reagir e foram engolfadas pelas chamas.
Todos esperavam em silêncio suportando o calor da melhor forma possível, alguns usávam água para se refrescar, outros procuravam manter distância de Selene, mas com olhos atentos ao menor sinal de falha.
Mas o plano estava funcionando.
As estruturas de argila não cederam. O gás permaneceu preso. E os espinhos, antes ameaçadores, começaram a dobrar e encolher como velas derretendo ao sol.
— Funcionou… — murmurou Aqua, quase sem acreditar.
Olhei ao redor. Pela primeira vez em horas, todos pareciam respirar com esperança.
— Realmente não derreteu… onde aprendeu isso garota? — Aqua me perguntou impressionada.
— Eu sempre gostei de ler no meu tempo livre, acontece que tinha um livro que mostrava como criar várias substâncias a partir de combinações de elementos — levei a mão sob o queixo antes de continuar. — Se não me engano, o nome desse livro era Manual de Introdução a Alquimia Elemental.
— Eu sabia que já tinha visto algo parecido — Sophia exclamou.
— Então quer dizer que você aprendeu isso em um livro… realmente impressionante.
Antes de descermos Aqua e alguns membros da guilda permaneceram por mais alguns minutos utilizando seus poderes de água para resfriar o metal ainda incandescente. O vapor subia aos poucos, se dissipando na atmosfera pesada do nono andar. Finalmente, o caminho estava limpo.
Foi quando Rose se aproximou de mim. Seu olhar já não carregava o vazio desesperançoso de antes. Ela parou ao meu lado e, com um meio sorriso, disse:
— Realmente saímos dessa situação… Aquilo que você disse enquanto esperávamos Selene antes, você pode ser mais forte do que pensava.
Desviei os olhos, ainda um pouco surpresa por ouvir isso vindo dela.
— Eu só… não imaginava que coisas aleatórias que aprendi em livros poderiam me ajudar em uma situação real.
Rose sorriu de canto e deu um breve aceno de cabeça, como quem reconhece algo que não precisa ser dito em voz alta.
— Ashley — chamou Aqua — avisa o Hernán que vamos começar a descer com os outros.
Ela então saltou, e de suas mãos partiram jatos de água que desaceleraram sua queda com leveza e precisão. Logo atrás dela, Selene abriu suas asas ígneas e desceu em espirais suaves como uma pena ao vento.
Aqua olhou para ela com uma sobrancelha arqueada.
— Tsk, que exibida.
— Olha só quem fala — respondeu Selene com um sorriso zombeteiro.
Enquanto isso, Hernán descia por uma escada improvisada feita com vinhas entrelaçadas. Ao chegar ao chão seguro, virou-se para Rose e disse:
— Não é tão grandioso quanto o que você fez, mas deve dar pro gasto.
— Não há nada de grandioso no meu poder — ela respondeu, desviando o olhar, mas algo em seu tom parecia um pouco mais leve do que antes.
Sophia veio até mim e me encarou com um ar de curiosidade e admiração.
— Você me surpreendeu, Ashley. Pensar em usar intemperismo mágico… foi genial.
— Na verdade, — disse, rindo um pouco — tivemos sorte de ter alguém com um poder tão versátil. Se não fosse pela Gigi, não teria sido tão fácil assim.
Com todos no chão firme, atravessamos cuidadosamente o piso agora coberto por uma mistura sólida de ferro retorcido e argila endurecida. Cada passo soava diferente, quase como uma lembrança física do esforço que fizemos para chegar ali. Mas quando tentamos abrir a porta seguinte, ela se recusava a ceder. Trancada.
Antes que iniciássemos uma nova busca, algo se manifestou sobre a cabeça de Cratos. Era o pequeno felino de botas e luvas que ele havia encontrado dentro do baú. Ele girava no ar como uma névoa densa e falava com um timbre debochado:
— Parece que vocês deram um jeito de escapar das minhas armadilhas. Mesmo contra a minha vontade… devo admitir a derrota. Aqui está a passagem só de ida… para o túmulo de vocês!
Ele riu e desapareceu, se desfazendo como fumaça ao vento. No lugar onde estava, flutuava uma chave. Cratos a pegou e a examinou com cuidado.
— Essa chave é diferente de todas as outras anteriores… deve ser a chave para o próximo andar?
Nos entreolhamos, cientes de que estávamos a um passo de algo grande. Os murmúrios cessaram quando Selene veio até mim, seu olhar sério.
— Ashley… você não pode se arriscar no próximo andar. Se esse for mesmo o nono, então o próximo é onde estará o Guardião da Torre. Você não tem ideia do quão perigoso um guardião pode ser.
Eu a encarei de frente. Não com desafio, mas com certeza na minha decisão.
— Eu não vim até aqui para ficar para trás. Não depois de tudo que passamos. E se você está tão preocupada com a minha segurança… então é melhor que eu esteja onde você possa me ver, não?
Selene passou a mão pela testa e soltou um longo suspiro.
— Ah… que hora maldita para uma Torre do Abismo aparecer. Mas você está certa… fique atrás de mim.
A chave girou na fechadura com um som seco e firme. A porta se abriu, revelando dessa vez não uma escadaria e sim um corredor escuro que levava ao próximo andar.
O ar mudou no instante em que pisamos os pés naquele corredor. Algo dentro de mim soube, naquele instante, que o que nos aguardava ali era diferente de tudo o que já tínhamos enfrentado.
Fim do Capítulo 44: Um Plano Improvável.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.