Capítulo 14: Dois caminhos
O Núcleo Catalisador do Deserto de Sonata continuava a liberar grandes quantidades de energia radioativa condensada, usando os dados coletados como base para criar novas criaturas, adaptadas a diferentes condições e perigos.
O Vulto Negro girava entre os ataques, lâmina em punho, tentando abrir espaço contra os filhotes de centopeia que avançavam como um enxame de garras e carapaças.
Cada golpe que desferia contra aquelas couraças era refletido, mas ele não parava de atacar. Por sorte, aquela resistência aprimorada tinha um preço: moviam-se com lentidão por causa do peso extra.
A quantidade anormal de criaturas que continuava a ser gerada começava a encurralá-lo; mas, em vez de sentir-se desesperado e tentar fugir, aquilo lhe provocou uma raiva irracional.
Essas larvas nojentas… por que diabos eu não consigo destroçar todas elas?
Do outro lado da câmara, o Caçador de Ossos permanecia recostado contra uma parede de pedra, com Kaern ainda inconsciente, jogado ao seu lado.
Os braços musculosos cruzados sobre o peito e o olho vermelho girando com lentidão preguiçosa, observando Jasper se debater contra as criaturas.
— Você devia parar de atacar como um Bestial e começar a usar a cabeça como um Desperto — comentou com indiferença, como se assistisse a uma peça entediante.
— Elas vão me matar! Está esperando o quê?! — vociferou, arremessando uma criatura menor contra a parede.
O Caçador apenas soltou um suspiro seco.
— Esperando que você cresça um pouco. Isso aí nem é caçada, é faxina. Eu caço coisas que valem a pena, presas que lutam com ódio, com instinto, com história. Essas coitadas não têm nada disso.
Um dos filhotes se lançou contra Jasper, aproveitando o momento de distração, e o acertou em cheio no peito. O impacto o arremessou contra a parede, o som metálico ecoando por toda a câmara.
O ar escapou de seus pulmões; a visão se turvou, e o gosto metálico do sangue preencheu sua boca.Então, algo dentro dele se rompeu.
— Chega… — Um rugido abafado escapou de sua garganta, meio humano, meio feral.
Correntes invisíveis começaram a girar com violência, levantando a areia dourada em espirais furiosas.
A lâmina em sua mão vibrou, reagindo à tempestade que se formava.
— Corte da Ventania… — as palavras saíram silenciosas, carregadas por uma raiva fria.
Uma onda de vento cortante se expandiu em todas as direções, varrendo os filhotes como se fossem poeira. Corpos e carapaças se despedaçaram, arremessados contra as rochas com um estrondo.
Por um breve instante, seus olhos queimaram em vermelho carmesim dentro do elmo, iluminando as fendas do metal com uma luz viva e furiosa.
Quando o silêncio retornou, o ar ainda vibrava ao redor dele, pesado e distorcido, mas a sensação impregnada em sua mente não sumia.
Encarando a cena, o Caçador descruzou os braços lentamente e caminhou alguns passos à frente, na direção dele.
— Não acredito que você se deixou levar por algo tão estúpido. — resmungou. Num movimento rápido, deu um tapa na nuca do garoto, repreendendo-o. — Coloque a cabeça no lugar antes que fique igual a essas centopeias.
Jasper ficou confuso, segurando a cabeça, enquanto raiva e constrangimento se misturavam em seu peito.
Foi então que, entre os escombros e a poeira levantada pelo ataque anterior, o som das inúmeras pequenas patas das centopeias filhotes retornou.
Cada uma avançava de maneira errática, mas determinada, como se a dor e os ferimentos fossem irrelevantes.
Seus olhos brilhavam com o mesmo vermelho intenso que antes iluminava os de Jasper, pareciam pulsar com vida própria, refletindo uma fúria que transcendia qualquer instinto normal.
A atenção dele voltou-se para o grande cristal flutuante. Lembrou-se do pulso de energia vermelha que ele havia liberado minutos atrás.
O Núcleo Catalisador não parecia apenas uma forma de perpetuar a existência dos Undeads, mas também de imprimir, desde o nascimento, uma sede de sangue e poder insaciável.
Pensou em destruir aquilo, posicionando sua espada para outro Corte da Ventania. Antes que completasse o movimento, o Desperto ao seu lado bocejou, chamando sua atenção.
— Nem tente. Esses trecos são praticamente indestrutíveis, e, se por uma maldição você conseguisse quebrá-lo, toda essa Zona iria colapsar em si mesma, e seríamos reduzidos a nada — alertou, enquanto chutava para longe uma das criaturinhas, rindo ao vê-la bater contra uma rocha.
Entendendo a situação o Vulto Negro, que já tinha se livrado do efeito estranho do Núcleo, reposicionou sua lamina, analisando com calma os que vinham na sua direção.
Jasper girou a espada entre os dedos, invertendo a pegada. Deixou de segurar a lâmina como uma extensão do braço e passou a mantê-la na vertical, com ambas as mãos próximas ao pomo, como uma estaca improvisada.
— Vamos ver se isso funciona… — sussurrou para si mesmo.
CLAC!
A ponta penetrou a junção entre os segmentos com um som agudo, como o de uma garra arranhando o vidro. A centopeia estremeceu e emitiu um chiado estridente que reverberou pelas paredes.
Contorcendo-se violentamente, suas patas arranharam o chão de pedra enquanto tentava se afastar. Jasper manteve a espada cravada, pressionando com o peso do corpo inteiro.
Com um pouco mais de esforço, a lâmina rasgou as camadas internas, rompendo o Núcleo Mutante ainda em formação dentro da criatura e fazendo cessar seus movimentos por completo.
Respirou fundo para a próxima investida, arrancando sua espada rapidamente e perfurando de forma letal outras duas criaturas que saltaram em sua direção.
Agora que havia encontrado um padrão, ele parecia uma máquina programada para aquilo. Não demorou muito para que inúmeros pequenos cadáveres se acumulassem ao seu redor.
Isso surpreendeu o Caçador, que não tinha notado o quão adaptável o garoto era, tinha certeza que ele nunca havia treinado com uma espada antes de se encontrarem pela primeira vez.
Em poucos segundos, todo o enxame estava se retraindo lentamente, recuando em direção às laterais da câmara e se esgueirando pelas fendas e túneis, como uma onda voltando ao fundo do oceano.
O brilho pulsante do Núcleo Catalisador começou a diminuir.
Aos poucos, os anéis de dados e símbolos flutuantes cessaram sua rotação frenética, desacelerando como engrenagens prestes a travar. A areia giratória ao redor da estrutura perdeu o movimento.
Depois de um último pulso fraco, o cristal vermelho apagou seu brilho.
Jasper descansava com a lâmina apoiada no chão. Mesmo acertando o ponto fraco dos inimigos, a resistência deles continuava impecável, deixando sua espada marcada por algumas rachaduras finas.
Finalmente acabou… Por que sinto que, não importa onde eu esteja, criaturas como essas sempre estarão atrás de mim?
— Ótimo. Agora que essas larvinhas deram no pé, está na hora de achar uma saída desta caverna. Esse cheiro de carniça é insuportável — disse o Caçador, preparando-se para deixar a câmara principal.
No entanto, nem todas recuaram.
A centopeia que havia sido chutada pelo ciclope ósseo permaneceu para trás, mantendo o fulgor nos olhos. Jasper já a havia percebido há muito tempo com seu Sentido do Vento, mas estranhou que o ciclope não a tivesse notado.
Ele realmente é tão distraído assim? Não… quando tentei algo assim, fui pego mesmo na escuridão total.
Dando um passo para trás, Jasper observou o filhote bestial se lançar abruptamente contra o Desperto.
Suas mandíbulas cravaram-se no antebraço exposto, atravessando parte da placa óssea e se prendendo entre as fibras musculares.
— Mas que… — rosnou o Caçador, franzindo o rosto deformado ao sentir a dor, mas sem esboçar sofrimento real.
— Hahaha… — tossiu, ainda se recuperando. — Depois do seu discurso sobre “caçar presas dignas”, uma te pegou de jeito.
O Caçador o encarou com o olho semicerrado, irritado.
— Cala a boca e me ajuda a puxar esse negócio. Não tô afim de arrancar outro braço de novo — resmungou, puxando o membro, mas a filhote estava preso como uma armadilha de ferro.
Jasper permaneceu imóvel, a expressão completamente neutra, observando o Caçador lutar para se desvencilhar da pequena centopeia.
O ciclope ósseo começou a bater o corpo da criatura contra as paredes rochosas, que se despedaçavam sob o impacto contra sua carapaça resistente.
Jasper continuava apenas olhando. Nem um piscar. Nem um suspiro. Apenas o olhar fixo.
A centopeia, por sua vez, parecia cada vez mais empenhada. Suas mandíbulas tilintavam, puxando com força até que um fiapo de carne se soltasse.
— Ai, desgraça! — grunhiu, sacudindo o braço. — Tá olhando o quê?!
O garoto piscou devagar, manteve o olhar por mais um instante… e apenas balançou a cabeça em negativa.
— A culpa é toda sua. Por acaso você perde todo o reflexo quando está entediado? — murmurou, sem emoção. — Ou é assim o tempo todo?
— Odeio filhotes… — bufou, desistindo de arrancar a Bestial à força. — Mais ou menos isso. Por isso mantenho Kaern sempre por perto, ele é bastante reativo a essas coisinhas irritantes.
Aquela reação surpreendeu Jasper, que convivera tempo suficiente com o Caçador de Ossos para saber qual era sua forma de solucionar problemas: com brutalidade e violência.
Por outro lado, o Desperto estava focado em outros assuntos. Uma das características de seu olho era a visão termodinâmica avançada, que lhe permitia detectar qualquer rastro de calor. O que ele via no momento era o de várias centopeias gigantes entre dois caminhos estreitos.
A questão era identificar qual caminho levaria à saída.Estava em dúvida entre duas passagens estreitas. À esquerda, um cheiro forte de mofo exalava junto ao som distante de água pingando. À direita, um calor abafado e uma luminosidade anormal.
Seu olho vermelho girava, analisando as possibilidades. Depois de um longo suspiro, virou o rosto para Jasper, e viu uma cena peculiar.
Ele “descascava” com precisão as carapaças e, em seguida, perfurava os corpos das centopeias com a espada, fazendo um espeto bizarro, que começou a devorar sem o menor receio.
A carne desses menores é melhor, não tão dura e azeda quanto as outras pensou, enquanto mastigava.
— Ô, passa-fome, vem aqui. Preciso da sua opinião. — Apontou com o braço livre. — Dois caminhos, um destino miserável. Esquerda ou direita, o que você acha melhor?
Aproximou-se, limpando o sangue que se acumulava nos lábios. Observou cada entrada com atenção.A da esquerda parecia mais segura, silenciosa, com menos marcas nas paredes. A da direita era quente demais, como se algo se escondesse lá dentro.
— Esquerda. O caminho tá mais limpo e parece menos recente. Se as centopeias passaram, foi por ali há muito tempo.
O Caçador ficou em silêncio por dois segundos. Depois, estalou os dedos e apontou para a direita com um sorriso torto.
— Perfeito. Vamos pela direita, então.
Jasper piscou, incrédulo.
— Você… tá de sacanagem?
— Se você tivesse dito “direita”, eu teria ido pela esquerda. — Girou o ombro, aquecendo uma articulação torta que estalou de forma desagradável. — Regra simples de sobrevivência: nunca siga o instinto de um garoto traumatizado vestindo armadura de segunda mão.
Sem mais explicações, o Desperto seguiu pela trilha oposta à escolha de Jasper. Seus passos ecoaram pelo túnel escaldante.
Engolindo o último corpo retorcido, Jasper limpou a lâmina, terminou seu pequeno banquete e partiu.
— Um dia você ainda vai morrer por birra.

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