🚨 Maratona de capítulos! Publiquei do 12 ao 15 de uma vez. Se você caiu direto neste, volte um pouquinho para não perder detalhes importantes.

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    Ou essas modificações vão me transformar em algo completamente diferente? Algo que nem se lembra mais de ter sido humano? A pergunta ecoa na minha mente igual a um agente biológico que se replica, infectando cada pensamento que tento formar depois dela. 

    Fico ali parado, esperando uma resposta que talvez não exista. Há algo na maneira como o artífice me olha que me faz perceber que a pergunta não é só minha. É dele também, sobre si mesmo, sobre todos nós que aceitamos ser refeitos em nome da sobrevivência.

    Ele me estuda com olhos que parecem registrar cada micro-expressão, cada batimento cardíaco, cada gota de suor, recolhendo tudo igual a dados destinados a uma análise futura:

    — Essa é uma pergunta interessante. A única que não posso responder com certeza absoluta. Com base no que Axion relatou e no que vejo… você não é exatamente humano, mas também não é puramente artificial. É algo novo. Algo que não consigo classificar.

    Suas palavras confirmam meus piores medos, todavia, também oferecem uma esperança estranha que talvez seja mais perigosa que o desespero. Se sou algo novo, talvez possa definir o que esse algo se torna, em vez de deixar que outros decidam por mim como sempre fizeram, como Axion sempre fez, anotando cada movimento meu naquele caderninho maldito com tinta feita de partes humanas.

    Porém essa esperança vem acompanhada de uma urgência que não consigo controlar. 

    A sensação de estar prestes a tomar uma decisão crucial aperta no fundo da minha mente, e antes que eu tome qualquer atitude, algo dentro de mim fala sem filtro, é uma necessidade de entender, de controlar a situação de alguma maneira, mesmo que controle seja uma ilusão que eu crio para não enlouquecer completamente.

    — Posso trabalhar com você por algumas horas antes de decidir? — a pergunta surge antes que eu possa censurá-la — Quero entender exatamente o que vocês fazem aqui, como vocês fazem, por que vocês fazem.

    Ele balança a cabeça, e sua expressão se endurece:

    — Inteligente, mas ingênuo. Conhecimento é a única riqueza que tem valor real neste lugar, e não oferecemos degustação grátis. Só se você escolher a segunda opção poderá trabalhar comigo e descobrir os segredos que valem mais recursos do que sua vida inteira.

    O robô rompe a quietude e se aproxima flutuando, sua presença ressoando no ar com uma frieza inquietante:

    — INTERESSANTE PADRÃO COMPORTAMENTAL. A MAIORIA DOS ORGÂNICOS QUER CERTEZAS IMPOSSÍVEIS, OU ACEITA CONDIÇÕES SEM ANÁLISE ADEQUADA. VOCÊ ESTÁ DEMONSTRANDO PRAGMATISMO RACIONAL QUE SUGERE POTENCIAL PARA SOBREVIVÊNCIA A LONGO PRAZO.

    A tensão no ar é palpável. O artífice, no entanto, não se move, permanecendo em sua posição de observação calma e quase desconcertante. Ele parece calcular a cada segundo, verificando dentro de si o valor das minhas escolhas, na certeza silenciosa de quem consulta um banco de dados que só ele conhece.

    — Então? — o homem me observa, avaliando-me em silêncio, aguardando uma resposta capaz de funcionar à maneira de uma chave para algo que escapava até mesmo a ele — Qual é sua escolha? Morte? Mentoria? ou cinco anos de trabalho?

    Olho para as três opções que não são realmente opções, contudo, ainda assim, representam caminhos diferentes através do mesmo labirinto sem saída, e por um momento absurdo quase rio da ironia de ter escolhas quando durante anos Axion decidiu cada movimento meu, cada respiração, cada corte que fiz em tantos corpos na oficina que agora me observam através da memória. 

    Morte imediata, mentoria permanente, ou cinco anos com promessa de independência que pode ser apenas outra forma de me manter controlado, todavia, são minhas escolhas, e o futuro depende de uma decisão consciente que ninguém pode tomar por mim, nem mesmo com aquela tinta feita de sangue e fluido cerebrospinal que ele usa para anotar tudo sobre mim.

    Mas enquanto peso essas opções, meu olhar se fixa uma última vez nos corpos cristalizados sendo analisados pelos robôs.

    A eficiência deles me lembra da precisão que desenvolvi na oficina, essa frieza necessária para transformar pessoas em dados úteis. Eles também fizeram uma escolha, provavelmente acharam que eram especiais, que conseguiriam onde outros falharam, e agora são apenas informações sendo catalogadas para ajudar o próximo explorador a talvez ter uma chance ligeiramente melhor de não acabar cristalizado numa mesa de análise.

    Será que estou prestes a me tornar apenas mais um corpo interessante para análise futura, mais uma anotação no caderninho de alguém, ou será que Axion realmente me fez diferente o suficiente para sobreviver onde outros falharam?

    E por que essa pergunta me faz lembrar da cicatriz em formato de losango no meu pescoço, que coça sempre que sinto que estou prestes a descobrir algo importante sobre mim mesmo?

    A resposta vem junto com a lembrança de Axion anotando cada movimento meu, de Iara me observando, de todos os cadáveres que desmontei na oficina enquanto desenvolvia essa precisão fria que agora reconheço nos robôs ao meu redor. 

    Penso na possibilidade de descobrir quem sou quando não há ninguém me definindo, quando não há ninguém registrando cada hesitação minha, cada erro, cada momento de reconhecimento que não deveria existir, porém, existe.

    Posso já estar morto e não saber. Mas ainda estou vivo o suficiente para escolher o que vem depois.

    — Aceito o acordo de exploração — as palavras saem mais firmes do que me sinto por dentro, num gesto que parece ter partido do corpo antes da mente entender todas as implicações.

    Lembro dos contratos de Axion que li no laboratório, escritos em linguagem que prometia tudo e não garantia nada, e acrescento:

    — Cinco anos com prazo definido. Mas quero um acordo por escrito, com todas as condições claramente especificadas, incluindo definições precisas de ‘sobrevivência’ e ‘independência’.

    Ele ri, um som que carrega surpresa genuína misturada com algo que pode ser respeito:

    — Axion disse que você seria especial, porém, não mencionou que seria esperto o suficiente para sobreviver às próprias escolhas. A maioria das pessoas na sua situação aceita sem questionar por desespero ou recusa por orgulho ferido que não podem se dar ao luxo de ter.

    Reconheço o teste por trás das palavras dele, da mesma forma que meu mentor me forçava a separar os mortos por função, por forma, por falha. Agora ele está tentando me separar, me classificar, me encaixar numa categoria que facilite o controle.

    — Sou uma mercadoria valiosa — respondo, usando suas próprias palavras feito armas contra ele — Mercadorias valiosas merecem contratos adequados que protejam o investimento de ambas as partes.

    Há um sorriso pequeno no canto da boca do artífice, quase imperceptível, no entanto, suficiente para me fazer perceber que ele está genuinamente impressionado, e quando ele ergue a mão direita, posso ver as interfaces cibernéticas brilhando levemente sob a pele antes que ele fale.

    — Perfeito! — Ele estende a mão, e quando a aperto, posso sentir as interfaces em seus dedos registrando minha assinatura biométrica, catalogando minha temperatura corporal, minha pressão arterial, provavelmente meu DNA — Bem-vindo à sua nova vida, Zéric-7. Não mais apenas Zéric, nunca mais apenas Zéric.

    O momento se estende tal qual piche quente derramado em silêncio, e posso sentir as interfaces dele registrando cada detalhe da minha biologia enquanto algo dentro de mim muda, se redefine, aceita uma nova categoria de existência que não sei se escolhi ou se fui manipulado para aceitar. Não sou mais apenas o garoto modificado escondido do mundo, agora sou Zéric-7, explorador contratado, mercadoria que assinou seu próprio contrato de venda e ainda não sabe se isso foi inteligência ou desespero disfarçado de controle. 

    Zéric-7. O número me marca tal qual uma propriedade. Tanto quanto qualquer tatuagem ou cicatriz, mas também me marca como alguém que escolheu o próprio preço, que negociou os próprios termos, que talvez tenha aprendido a ser esperto o suficiente para sobreviver às próprias decisões, ou que talvez tenha acabado de cair na armadilha mais elaborada que Axion já preparou para mim.

    É aterrorizante e libertador ao mesmo tempo, essa sensação de estar caminhando voluntariamente em direção ao desconhecido. Será que essa diferença entre ser empurrado e pular por vontade própria é real?

    O acordo está feito, as interfaces registraram minha assinatura biométrica, e sinto algo que não experimentava desde criança: a ansiedade boa de não saber o que vem depois. Axion me fez para sobreviver, porém, nunca me ensinou a viver. Cinco anos para aprender a diferença. 

    Quando passo pelos corpos cristalizados uma última vez, não vejo mais meu futuro possível. Vejo meu passado evitado. Eles também fizeram escolhas, contudo, as fizeram com medo. Eu escolhi com esperança. Talvez seja isso que me mantenha vivo quando o fogo vier.

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