O Sistema de Assassinato do Caçador de Recompensas Mais Fraco
Sempre considerei burro aqueles que desejavam uma vida autossuficiente. Viver daquilo que produz, sem depender de dinheiro ou dos outros… Sei lá, não me parece natural. É muito irreal pensar que Deus permitiria que algo nessa escala funcionasse.
Bom… pelo menos eles não estão na sarjeta, sangrando horrores, que nem eu estou agora. Acho que o idiota sou eu no fim das contas, por correr atrás de papel e números numa tela de computador. Mas fazer o quê? Hoje em dia, até posso respeitar a ideia deles, porém a minha opinião segue a mesma: É DINHEIRO QUE MOVE O MUNDO!
Desde os primórdios, nós, seres vivos, nos unimos e nos destruímos por causa de pedras preciosas, moedas e saldos bancários! A SOCIEDADE SÓ EXISTE PORQUE OS BENS MATERIAIS SE TORNARAM A MANIFESTAÇÃO DO DESEJO HUMANO!!!
Cof, cof… Argh… Merda, esses buracos no meu abdômen doem pra cacete…
Enfim, onde foi que eu parei mesmo? Acho que acabei me empolgando… Ah, sim…
Do último ano pra cá, ando pensando bastante sobre umas paradas bem loucas. Tipo, no passado não existia monetização; tudo era na base da troca de mercadorias. Sendo assim, o que determinava um escambo justo entre objetos não relacionados?
Foi aí que reparei em algo que me cativou muito, que me fez ver o mundo com outros olhos e que andou lado a lado em meu caminho até aqui: o valor.
Tudo na vida tem seu preço. Cadillacs, mansões, iates, até mesmo a moeda de outras nações. É graças ao sistema de valor e medidas criado na Antiguidade que sabemos quanto trigo vale um pão, quantas galinhas vale uma vaca, quantos grãos vale uma madeira…
Eu às vezes fico me perguntando, se colocarmos na balança, quanto vale uma pessoa. Uma vaca? O tronco inteiro de uma árvore? 140 pães? Mas e se fosse dinheiro? Quanto valeria?
Até tenho uma ideia. Se considerarmos uma pessoa de 70kg, seus constituintes químicos custariam 5.919,01 reais e seus órgãos valeriam 4.200.850 ou mais!
Claro, nem todo mundo tem 70kg ou órgãos saudáveis — e com certeza ninguém consegue viver sem todos eles. O que estou querendo dizer é que esse lance de “a vida de uma pessoa é imensurável” é uma total mentira. TODO SER HUMANO POSSUI UM PREÇO INDIVIDUAL ÚNICO!
Mas, convenhamos: se alguém estivesse disposto a pagar quinhentos mil por uma pessoa, ele escolheria uma celebridade ou um mano totalmente aleatório? Seres com fama, poder ou dinheiro custam mais caro do que zés-ninguém, né? Bom, eu costumava pensar assim, até que algo me provou o contrário…
Ai… Saco! Do que adianta ficar falando sozinho? Pensei que isso me distrairia da dor lancinante que sinto, mas… está cada vez mais difícil respirar…
Tap tap…
Ouço o som de passos. Levanto a cabeça; aquele desgraçado estava bem na minha frente.
Ele tira um revólver de dentro de seu casaco e o aponta para mim. — Últimas palavras?
Minha visão já está embaçando…
“Vamos, João, resiste! Não deixe a sua consciência ir embora!”
O filme da minha vida começa a passar diante dos meus olhos, e nele uma pergunta prevalece: que preço eu paguei para conseguir aquele maldito… [sistema]?
***
Era uma manhã fria; o sol nascia no horizonte atrás de mim. Eu, um jovem homem negro de roupas maltrapilhas na época, perseguia um foragido da justiça, em um ferro-velho.
O covarde que corria de mim estava sendo procurado por abusar sexualmente de menores de idade.
Quando o encontrei, não pensou em me atacar ou revidar aos golpes que dei com o taco de beisebol que carregava nas costas durante a perseguição.
Seu rosto gordo apenas se contorceu em pavor, e então, com uma perna manca, fugiu para o local onde nos encontrávamos no momento.
Apesar de ser magro e saudável, eu estava tendo certa dificuldade em capturar ele.
Não me exercitava assim desde a aula de educação física na minha segunda vez no primeiro ano do Ensino Médio!
— Pa… haah… rado aí! De… haah… siste logo… porra!
O desgraçado não respondeu, sequer me obedeceu. Ao invés, seguiu reto até um grupo de homens que bebia álcool ao redor de uma fogueira.
— Um caçador de recompensas, um caçador de recompensas! — anunciou e ridiculamente se agarrou a uma cerca alta perto deles. Na mesma hora, os quatro me olharam feio.
Alguns jogaram suas garrafas de bebida no chão, e então todos começaram a formar um círculo ao meu redor, me impedindo de prosseguir.
O verme que perseguia, por outro lado, seguia escalando com desleixo as grades de metal à minha frente.
— O que pensam que estão fazendo? Vão deixar um pedófilo escapar!
— Ah, é mesmo? — indagou o que aparentava ser o líder deles. — A gente resolve isso depois. Ele é peixe pequeno, se comparado ao pior caçador de recompensas da região…
Tirei o taco de beisebol das costas e o levantei para o alto, em posição de ataque. Entre gargalhadas, os quatro deram um passo para trás e levantaram as mãos em zombaria.
— Vocês sabem quem eu sou?
— Mas é claro, todo criminoso que se preze conhece o nome de 2 pessoas: Sarah Banger, uma gostosa que trepava com aqueles que a deixavam entregar para a polícia, e João, o mais fraco caçador de recompensas que já se tinha ouvido falar. Porque, caso nos encontremos com um deles…
Crash!
Por um instante, havia me distraído, e um deles me pegou desprevenido com uma garrafada na nuca, que me fez cair no chão.
— … SIGNIFICA QUE TIRAMOS A SORTE GRANDE!!!
O grupo fechou em mim e começou a me dar chutes e pontapés, tudo que consegui fazer foi proteger a minha cabeça.
À medida que apanhava, vi o que considerava ser uma presa fácil fugir bem diante de meus olhos.
A agressão só parou quando eu me fingi de morto, e eles deixaram o local, com o meu taco de beisebol em mãos.
O ano era 2049. Em uma tentativa de inibir o avanço da criminalidade e violência, que subiam a níveis estratosféricos no Brasil, o governo implantou um sistema de recompensas pela captura de criminosos foragidos.
Logo, virar um caçador de recompensas — como eram chamados — se tornou a ambição de muitas pessoas que acreditavam que aquilo se tratava de uma boa oportunidade de ganhar dinheiro e subir na vida.
E eu, estupidamente, era um deles.
A primeira coisa que fiz ao me levantar foi verificar o chip acoplado na parte de trás da minha cabeça.
O sistema de recompensas oficial do governo era integrado a um aparelho tecnológico popular no mundo todo e acessado através de uma rede pública compartilhada com toda a América Latina — mas que não chegava aos pés da internet Anglo-saxônica ou da Europeia.
Criado e desenvolvido nos Estados Unidos, o Plus Vision desde o dia de seu lançamento foi considerado o próximo passo da evolução humana no campo da realidade virtual.
Graças a um pequeno quadrado de “pastilha” de silício — do tamanho de uma CPU — alojado um pouco acima da nuca, uma tela holográfica individual, que só os próprios usuários podiam ver, aparecia diante de seus olhos.
O produto ainda contava com um par de mecanismos intra-auriculares parecidos com fones bluetooth sem fio que, quando colocados nos ouvidos, melhoravam a imersão e a captação de áudio e movimentação muscular facial.
Essa tecnologia era caríssima, mas, após a retirada da licença de caçador de recompensas, o governo lhe fornecia um mais básico, e não fazia reparos neles.
Infelizmente, meu aparelho estava amassado e metade das garrinhas metálicas, que ficavam nas bordas sobre ele e cravavam na pele do usuário — para melhor leitura dos estímulos do tronco encefálico — tinham se quebrado.
A troca por um melhor ou a compra de um novo era de responsabilidade do caçador de recompensas, porém eu não tinha dinheiro para fazer nada disso.
— Merda! — amaldiçoei os céus.
Tentei me levantar, mas meu corpo estava todo dolorido, e minhas pernas, fracas demais para me obedecer.
Olhei ao redor para ver se tinha algo em que eu pudesse me apoiar e encontrei um cano quebrado ao lado de uma garrafa trincada, que aqueles malditos não conseguiram quebrar.
Primeiro, me arrastei até o objeto enferrujado e depois, com muita dificuldade, o utilizei para ficar em pé.
Ir ao hospital estava fora de cogitação, pois o SUS deixou de existir desde 2039, e toda consulta médica passou a ser paga.
Observei o recipiente de vidro que, naquela hora, se encontrava ao meu lado. Ainda restava uns três dedos de bebida alcoólica nele.
Me agachei, o peguei e virei goela abaixo. Whisky, aquele foi o meu analgésico naquele dia, fazia tempo que não comprava um.
Ainda tinha alguns curativos sobrando, então aproveitei que o local onde estava ficava perto de casa e decidi voltar a pé, para economizar dinheiro com a passagem de ônibus.
Com um cano quebrado como muleta e uma garrafa em mãos, segui até meu apartamento na parte mais pobre de Ourinhos, cidade considerada a mais perigosa do país.
Nem sempre morei nessa região. Quando criança, vivi com os meus pais em uma casa humilde, numa área não tão ruim quanto aquela.
Minha mãe era auxiliar de limpeza; meu pai, caminhoneiro. Por conta disso, passei grande parte da minha infância em creches e sofri com a ausência dos dois para seus respectivos empregos.
Não guardava mágoas, porém. Sabia que me amavam, e eles faziam questão de demonstrar isso ao sempre se preocuparem em dar tudo do bom e do melhor para mim, mesmo que isso significasse que ficariam sem.
Frequentava escola pública, até que no Ensino Fundamental, por causa de onde minha mãe começou a trabalhar, ganhei uma bolsa de estudos parcial em uma importante escola particular daqui da cidade. Graças ao humilde salário do meu pai, que pagava o restante da matrícula, passei a estudar lá.
Do começo ao fim, fui alvo de humilhação das crianças ricas, mas suportei tudo, devido a uma amizade que levei para o resto da vida.
Foi em seu término, porém, quando estava prestes a entrar no primeiro ano do Ensino Médio, que uma notícia abalou o meu mundo. Após reagir a um assalto à carga que transportava, meu pai havia sido assassinado.
Desde então minha vida parou de fazer sentido. Minha mãe passou a trabalhar dobrado, mal tendo tempo de descansar, e ainda assim não conseguiu manter a mesma condição financeira de antes.
Por conta disso, voltei a estudar em escola pública e acabei me mudando para aquela espelunca, que se encontrava diante de mim naquele exato momento.
Peguei minhas chaves do bolso e abri uma porta velha e descascada. À minha frente, havia um cômodo minúsculo, composto por uma sala-quarto, uma cozinha-área de serviço e um banheiro.
Ao entrar, deixei o meu cano quebrado encostado em um canto do apê, repleto de contas atrasadas.
Do caminho até lá, havia pego afeição por ele, então decidi que aquela seria a minha nova arma, assim não precisaria gastar dinheiro com uma outra substituta para o meu antigo taco de beisebol roubado.
Fui para a cozinha-área de serviço. Tirei o Plus Vision, o coloquei em cima de uma mesa improvisada de reparos e peguei um galão de água para tomar banho.
Na época, não estava conseguindo pagar a conta de água, então simplesmente pedi para que a cortassem. A de luz, pelo menos, seguia em dia, era o que importava.
Virei o galão em uma panela e a coloquei sobre a boca de um fogão, mas quando o fui ligar… o gás tinha acabado.
Tomei um banho frio e nada relaxante naquele dia. Após, coloquei de volta as roupas que estava antes — pois não tinha outras naquele momento — e tratei os meus machucados.
Não sobrou curativo para todos eles, então acabei improvisando um pouco com papel higiênico e algodão.
Depois, retornei à minha cozinha-área de serviço e tentei consertar por conta própria o Plus Vision. Não era a primeira vez que fazia algumas gambiarras nele. Um dos fones já ‘tava com fita adesiva e o outro eu havia perdido.
Nem com o GPS espacial — que podia rastrear o aparelho e suas peças em qualquer lugar do espaço — consegui encontrar ele!
Enfim, para consertar o chip, dei umas marteladinhas nele para desamassar e prendi garrinhas de pirainhas — aqueles prendedores de cabelo, de plástico, que custam menos de um 1,50 — naquela parte que estava quebrada.
Pus o Plus Vision e o testei. Logo, o pequeno quadrado não fez a leitura dos meus estímulos cerebrais, pois nenhuma tela holográfica havia sido mostrada, e as garrinhas não aguentaram e se partiram, machucando a parte de trás da minha cabeça.
Coloquei a mão sobre o ferimento, para aliviar a dor, e então admiti para mim mesmo: o aparelho tinha dado perda total.
Suspirei em insatisfação. Me virei e me encostei na mesa improvisada de reparos. Olhei para a minha sala-quarto por um tempo.
Nela, havia uma cama capenga, um cesto onde guardava minhas roupas, revistas e lixo espalhados por um tapete mofado, uma tv de tubo e um radinho de pilha. Não eram os móveis que eu desejava, mas os que possuía.
Se pudesse escolher, teria uma cama grande, para me esticar bem, um guarda-roupa decente, um robô-aspirador, um tapete persa, uma televisão 16K, caixa de som e, talvez, uma mesinha de centro que combinasse com a minha personalidade.
Desde pequeno, havia tanta coisa que as outras crianças diziam ter e que eu queria comprar, mas me faltava dinheiro… Claro, os itens da lista mudaram com o tempo.
Deixar de viver na insegurança de não saber se tinha o que comer no dia seguinte, ter 4 refeições por dia, quitar as minhas contas, comprar uma mansão, roupas caras, acessórios caros que nem sabia pra que serviam e, por fim, o mais importante: um carro luxuoso que impressionasse minha amiga de infância.
Conhecia Julia desde o Ensino Fundamental. Fui seu primeiro amigo durante esse período, e mantínhamos contato até então.
Ela também era um caçador de recompensas, mas, diferente de mim, possuía o título de “mais forte que já se tinha ouvido falar” e vivia em um casarão na parte rica de Ourinhos.
Além de ser bem-sucedida, tinha pele branca, olhos claros e um lindo cabelo loiro. Sua aparência bela se manteve, mas seu corpo mudou bastante. Até aquele presente momento, possuía curvas profundas das quais adoraria ter mergulhado….
Sim, eu era apaixonado por Julia desde a infância. E, por mais que ela tivesse uma coleção de carros luxuosos, esperava que possuindo um a fizesse me notar, já que minha amiga tinha paixão por eles.
Nunca lhe contei sobre meu amor, afinal o que um pobretão como eu poderia oferecer para alguém que sempre teve tudo?
Éramos de classes sociais diferentes, mas mesmo assim a caçadora de recompensas me tratava como um igual e mantinha uma boa relação de amizade comigo.
“Acho que deveria pedir um novo Plus Vision para Julia…”, pensei, mas logo descartei a ideia, meu orgulho masculino não permitiu.
Se um dia entrasse em um relacionamento com ela, eu seria quem deveria prover para a minha mulher.
“Bom, vou fazer um empréstimo no meu banco, então…”
Decidido, saí do meu apartamento e fui até o metrô da cidade, uma vez que não tinha dinheiro para pagar passagem naqueles meios de transportes mais confortáveis e futurísticos, que os ricos usufruíam.
Ao chegar, enfrentei um mar de gente na estação. Me espremi na multidão para poder entrar no vagão e só então, por um milagre que só Deus sabia, me sentei em um assento vazio.
Uma leva de gente lotou aquele espaço minúsculo e, dentre eles, havia uma mulher grávida em pé. Acabei cedendo o meu lugar para ela.
Quando o transporte parou e deu uma leve esvaziada, mais um banco sem ninguém apareceu. Me sentei e me reclinei nele.
Minha barriga roncou, e um vendedor entrou no mesmo instante, oferecendo pipoca doce.
Tirei minha carteira do bolso e olhei o interior dela. Havia três notas de dois reais e algumas moedas. O produto custava oito…
“E pensar que tinha uma nota de cinquenta reais aqui…” Soltei um suspiro. “O Brasil não é para os fracos mesmo.”
— Opa! Me vê um, por favor! — pediu um homem que estava no vagão.
Sua pele era negra como a minha, e aparentava ter mais ou menos a mesma idade que eu. Usava roupas de marca, um capuz e óculos escuros. Parecia alguém famoso tentando esconder a sua identidade…
Assim que o vendedor lhe deu o pacote, o rapaz tirou uma nota de cem do bolso e a entregou para ele.
— Ah, não tenho trocado… — lamentou o senhorzinho que vendia pipoca.
— Nah, deixa quieto, pode ficar com o troco.
— Mu-muito obrigado, jovem!
O alegre vendedor retirou-se para o próximo vagão, e o homem caminhou em minha direção, sentando-se no assento livre ao meu lado.
— Toma. — Ele esticou o braço, me oferecendo o pacote.
— Quê?
— ‘Cê parece meio pálido… achei que estivesse com fome.
— Mas não estou…
ROONC!
Tentei recusar, mas minha barriga havia me entregado.
— Hahaha, relaxa, cara. É de graça, não vou te cobrar.
Peguei a pipoca doce de suas mãos. Abri a embalagem e comecei a comer seu conteúdo.
— Muito… chunch… obrigado! — falei de boca cheia.
— De nada… Aí, ‘cê curte Rolex?
— Até penso em comprar um caso ganhe na loteria…
— Haha, show, então me ajuda a decidir qual eu levo para a minha amante?
O homem tirou um celular de última geração do bolso e me mostrou algumas fotos de relógios caros.
— Queria um diferente do das outras, pra não dar treta. Mas não estou em dúvida…
Dentre as imagens que me mostrou, escolhi o relógio rosa repleto de joias preciosas.
— Hum, o de morganita? Esse é caro… Bom, vai ser esse mesmo. Valeu!
Pisquei os olhos e abri a boca, chocado com a atitude do homem. Ele confiou a um total estranho uma decisão financeira de milhões e a acatou como se fosse nada.
— Hahaha, o que foi?
A disparidade de renda e riqueza distribuídas entre as classes sociais no Brasil estavam tão zoadas que a renda da elite cresceu em 95% nos últimos anos.
“Será que diante de mim estava o 0,01% da população, composta por um grupo de 15 mil pessoas?”, pensei e então perguntei intrigado: — Quem… é você?
— Ah, bom, se você soubesse… teria que te matar.
Ele falou em um tom sério; me calei no mesmo instante. — Hahaha, tô zoando, pô. Vamos dizer… que sou apenas um homem de negócios, sim?
— Oh, entendo, então… você é um vendedor de peixe…
— Como é?
— Desde que me conheço por gente, a sociedade é moldada por dois tipos de pessoas: os que vendem o peixe e ganham muito e os que pescam o peixe e ganham pouco. Você é a primeira opção.
— He, gosto de pessoas que pensam que nem você… Me diz, ‘cê não qué pescá peixe pra mim, não?
— Ôu, pera lá, vamo com calma… E com o que exatamente você trabalha?
— Digamos… que eu forneço serviços, e ‘cê decide se vai executá eles ou não. O real vem se desvalorizando bastante no mercado, então pagamos bem melhor que a maioria, em uma moeda estrangeira mais rentável. É uma oportunidade única, topa?
— Olha… ‘tá muito estranho isso aí, acho que vou recusar…
— Tem certeza? A fome e a pobreza aumentam, enquanto o desemprego só está estável por causa do aumento dos empregos informais, como o que estou te oferecendo. Pense bem, a inflação segue a níveis alarmantes, aposto que nesses últimos dois meses as mesmas coisas que comprava todos os dias ficaram mais caras…
De fato, todo dia pagava caro para viver mal, e o preço das coisas continuava subindo. Mas, por algum motivo, naquela hora tive um mal pressentimento quanto àquela proposta.
— Eu… realmente… não quero. Poderia parar de insistir?
Olhei de soslaio para o homem. Não conseguia ver, por causa dos óculos que usava, mas senti seus olhos fitarem os meus, penetrando a minha alma. Um frio percorreu a minha espinha.
— Isso é o que diz, mas não o que deseja. Posso ver nitidamente isso. Quando vê dinheiro entrando na conta, faz qualquer coisa. ‘Cê não me engana, conheço muito bem o seu tipinho de gente…
Suei frio com a sua pressão esmagadora. O metrô parou, e o homem então se levantou.
— Mas, bom, acho que não posso te obrigar a nada, né? É uma pena, fica pra próxima então… João.
— Como você…? Ei! — Com passos largos, ele deixou o vagão. Pensei: “Mas o que foi isso?!” E me estirei no banco, arfando como se tivesse corrido uma maratona.
Olhei aliviado para o assento onde o ricaço misterioso estava e, para minha surpresa, avistei uma pequena caixinha lacrada.
Aquilo… era um Plus Vision Pro, uma versão melhorada do meu aparelho que tinha se quebrado.
“Acho que aquele cara saiu e se esqueceu disso…”
Eu não o podia deixar ali, vai que outra pessoa pegasse. Eu o iria entregar a um funcionário da estação em que ia descer…
Foi o que imaginei, até a ideia de ficar com ele passou pela minha mente.
Aquele… era um equipamento que precisava para poder voltar a trabalhar e continuar sobrevivendo, mesmo que mal.
Muito dificilmente conseguiria quitar o empréstimo que iria fazer. Era bem provável que os juros acumulariam como uma bola de neve, e o meu nome ficaria sujo na praça… Fora que a versão que compraria seria uma inferior àquela…
“Bom, o que é um Plus Vision Pro para um cara que comprou um Rolex como se estivesse levando água para casa?”
Fiquei entre a cruz e a espada por um momento, mas decidi violar o lacre daquela caixinha e tirar o aparelho de dentro dela.
Coloquei o chip na parte de trás da minha cabeça, e os fones, nos ouvidos.
Na hora, todos os ruídos ao meu redor foram supridos, parecia que eu havia sido teleportado para um quarto silencioso.
A pequena CPU gentilmente fincou suas garrinhas metálicas em minha pele, como se a estivesse acariciando, e num instante meus estímulos cerebrais foram lidos.
Logo, uma tela holográfica, que só eu podia ver, surgiu diante de meus olhos. Uma mensagem de boas-vindas apareceu e pediu meus dados. Conforme eu os preenchia, a interface mostrava ser rápida e fluida.
“Boa! Agora, eu só preciso levar o aparelho para a prefeitura, realizar a troca formal de equipamento e instalar o sistema de recompensas nele… Hã?”
Assim que eu terminei o cadastro, uma tela vermelha, com os dizeres “erro”, apareceu. Então, linhas de código começaram a surgir e inundar a tela, como uma avalanche.
“O que está acontecen… Ahhhh!”
O chip superaqueceu com o tanto de informação que estava recebendo. Suas garrinhas fincavam cada vez mais na minha pele, até chegarem à minha carne.
— Ahhhhhhhhhh!
Me joguei no chão e comecei a rolar e me contorcer de dor. Em desespero, pedi por ajuda e tentei remover à força o aparelho.
Ninguém veio me socorrer. Olhei à minha volta, e os passageiros pareciam assustados. Não comigo, mas com algo.
Estavam todos chorando ou com a boca aberta, provavelmente gritando. Enquanto alguns permaneciam parados, uma multidão se espremia, desesperada para passar pela porta até o vagão oposto à frente do metrô.
“Mas que merda está…!?”
Não tão de repente, senti o local em que estava sair de sua rota, sair dos trilhos!
Meu corpo no ar e o ambiente ao meu redor ficando de ponta cabeça foram as últimas coisas que vi antes de perder totalmente a minha consciência.
***
Beep! Beep! Beep!
A primeira coisa que escutei ao recobrar a consciência foi o leve som em minha cabeça de um despertador tocando. Abri os meus olhos, e diante de mim havia uma tela holográfica piscando alternadamente as cores azul-claro e azul-escuro.
Tinha também um horário ao centro, sofrendo da mesma variação de coloração. Aquela era a função padrão “acordar” do Plus Vision.
No mesmo instante, ainda em desespero, cacei o aparelho em busca de retirar ele de mim. Mas não havia aparelho nenhum em meu corpo. Nenhum fone em meus ouvidos, nenhum chip atrás da minha cabeça.
Então como eu conseguia enxergar uma tela holográfica bem diante de mim? Bom, isso continuou sendo um mistério para mim até hoje. Mas naquela hora decidi apenas interagir com ela, para ver se aquilo sequer era real.
Para minha surpresa, tinha conseguido desativar seu alarme. Logo, uma interface que nunca tinha visto antes surgiu.
Se assemelhava a um quadro de missão, normalmente disponível em guildas de jogos do tipo MMORPG. Havia uma única missão nela.
[Calibragem do Sistema de Assassinato (0/5)]
“O que é isso?” A selecionei.
[#1: Quebre o vaso de flor que está ao seu lado. Recompensa: R$250,00]
“Hum? Mas que… ” Olhei à minha volta e procurei me acalmar.
Percebi que me encontrava dentro de um quarto, em cima de uma maca, da mesma forma que um velho senhor à minha esquerda.
Diferente de mim, porém, o idoso — que nunca tinha visto antes — estava desacordado e respirava com a ajuda de alguns aparelhos conectados a ele.
À frente dele, o vídeo do descarrilamento de um metrô passava no monitor de uma pequena televisão.
Os jornalistas que o transmitiam diziam que muitas das vítimas do acidente já tinham sido resgatadas, mas que ainda assim havia mais gente para ser socorrida.
Após, uma imagem de um homem sendo levado pelos socorristas foi mostrada. Aquele… era eu.
“Merda, eu tô num hospital!”
De imediato, sentei-me na beirada da maca. Toda consulta hospitalar era paga, mesmo que você tenha sido atendido involuntariamente.
“Nem fudendo que vou pagar essa conta! O que vocês estão pensando? Que eu escolhi entrar em um metrô sabendo que ele ia descarrilar???”
Não tinha um centavo sequer no banco. Levantei-me com a intenção de pular a janela e aplicar um calote, mas sem querer esbarrei em uma mesa de cabeceira ao lado da minha maca, derrubando assim um vaso de flor que estava em cima dela.
Crack! Plim!
Ao mesmo tempo em que a porcelana era despedaçada, um barulho característico soou de dentro da mobília.
Pelo som, aquilo só podia significar uma coisa. Os cartões de débito no banco em que havia me filiado emitiam barulho, quando dinheiro entrava na conta, e mostravam o saldo em uma barra preta atrás. E o meu não era diferente.
Revirei as gavetas da mesa de cabeceira e o encontrei junto às minhas pertences recuperadas do acidente. Verifiquei; tinha “250,00” escrito nele.
Na hora, me lembrei daquela missão. Me virei para a tela holográfica e interagi com ela. As coisas tinham mudado.
[Calibragem do Sistema de Assassinato (1/5)]
[#1: Quebre o vaso de flor que está ao seu lado. Recompensa: R$250,00]
[#2: Lamba o chão do hospital. Recompensa: R$500,00]
Os detalhes daquela quest — como eram chamadas naqueles tipos de jogos — haviam sido atualizados; um novo item surgiu. Nojento, mas pagava bem.
Precisava testar se aquilo era verdade, então assim o fiz. Na hora, um “plim!” e um “nheec…” soaram.
— Senhor?… — Uma enfermeira estava diante de mim, em frente a uma porta atrás de minha tela holográfica.
Fui pego no flagra, mas consegui disfarçar.
— E-ei… me ajude aqui. Fui tentar andar, mas acabei quebrando o vaso que estava naquela mobília e caindo no chão.
— A-Ah! Claro…
Ela me ajudou a levantar.
— Obrigado.
— De nada, bem que escutei algo estranho no caminho pra cá… De qualquer forma, já vinha aqui lhe entregar a conta e dar alta ao senhor.
A enfermeira esticou o braço e me entregou uma folha de papel. O peguei.
— Três mil reais????????
— Exato, foram cinco dias desacordado e de tratamento. Além do mais, o vaso que o senhor quebrou será acrescentado ao total e, caso não tenha percebido, suas roupas originais foram rasgadas durante o resgate. Se quiser sair daqui com o pijama que está no momento, terá que pagar…
— E quanto isso vai dar????
— Honestamente, não faço a mínima ideia, senhor. Recomendo verificar na recepção, quando for fazer o check-out.
— I-isso é loucura! E se eu recusar as roupas que estou no momento? Vocês me deixariam sair daqui de cueca????
— Bom, nem isso restou do seu resgate…
— … Tá certo, vou pagar.
— Maravilha! O senhor poderá descansar e sair do hospital até o fim da tarde. Caso queira sair na manhã de amanhã, mais um valor de diária será acrescentado à sua conta.
Assenti com a cabeça, e ela se virou e começou a mexer em uns armarinho que ficavam ao lado da porta.
Olhei para o cartão de débito em minhas mãos; “750,00” estava escrito nele. Era uma grana boa, mas não o suficiente para quitar o que devia pro hospital.
“Certo, o que mais aquele sistema tem a me oferecer?” Mais uma vez, verifiquei aquela missão e…
[Calibragem do Sistema de Assassinato (2/5)]
[#1: Quebre o vaso de flor que está ao seu lado. Recompensa: R$250,00]
[#2: Lamba o chão do hospital. Recompensa: R$500,00]
[#3: Passe a mão na bunda de uma enfermeira do hospital. Recompensa: R$1.000,00]
A QUEST ME PEDIU PARA COMETER UM CRIME!
De soslaio, vi a única mulher presente no cômodo. Ela estava agachada, organizando a parte de baixo de um dos armarinhos.
“Hmmm, até que ela tem uma raba bonita… Hã, o quê? No que estou pensando? Foco, João!”
De repente, com um comando mental, um pop-up holográfico — que só eu podia ver — apareceu ao lado dela.
「Nome Renata de Campos Sales」
「Mãe Maria Adalberta Sales」
「Pai Laércio de Campos Rocha」
「Filhos Junior da Silva Sales / Patrícia da Silva Sales」
「Estado civil Divorciada」
「Idade 35 anos」
「Profissão Enfermeira」
「Passatempos Caminhadas ao ar livre, crochê e leitura」
「Livros favoritos After, 365 dias e Crepúsculo」
「Gênero literário favorito Dark Romance」
A princípio, me assustei, aqueles eram dados vazados da vida pessoal dela.
“Como isso é possível?!”
Duvidei da veracidade daquelas informações sigilosas, mas, no fim, apenas aceitei o fato de que talvez elas fossem verdade, e que de alguma forma eu conseguia ver aquilo.
“A enfermeira tem o costume de ler alguns livros meio suspeitos… Será que ela não irá me denunciar, por fazer algo presente nesses romances? Nah, é idiotice julgar alguém pelo seu mau gosto literário…”
Fiquei dividido por um tempo, mas acabei optando em realizar a quest, afinal seria preso por aquilo ou por dar calote no hospital, mesmo. E, pô, mil reais…
— KYAHHHHHH!!!
A enfermeira se levantou e imediatamente se virou para mim. Tentei disfarçar, e ela me olhou de cima a baixo. Seu rosto corou no mesmo instante, e constrangida saiu do quarto correndo.
— Me desculpa… — murmurei.
Plim!
Mais saldo havia acumulado, e mais uma missão tinha sido desbloqueada.
[Calibragem do Sistema de Assassinato (3/5)]
[#1: Quebre o vaso de flor que está ao seu lado. Recompensa: R$250,00]
[#2: Lamba o chão do hospital. Recompensa: R$500,00]
[#3: Passe a mão na bunda de uma enfermeira do hospital. Recompensa: R$1.000,00]
[#4: Desligue os aparelhos do seu colega de quarto. Recompensa: R$2.000,00]
“O… quê?…”
O sistema me pediu, mesmo que indiretamente, para matar uma pessoa. Para mim, aquilo foi novidade, porque no sistema de recompensas legalizado pelo governo era proibido matar os procurados, só os podia capturar com vida.
Me aproximei do senhor e vi seu rosto. Fiquei indeciso.
“Vou tentar usar o pop-up nele, vai que isso me ajuda a decidir. Como que usa ele mesmo? Lembro de estar pensando naquela hora, então ele deve ser ativado por um comando. Qual palavra deve ser… Enfermeira. Raba. Foco.”
「Nome ???」
「Mãe ???」
「Pai ???」
「Idade ???」
「Profissão ???」
「Estado civil ???」
「Passatempos ???」
A janela de status — como humildemente batizei em homenagem aos jogos MMORPG — surgiu ao lado do idoso.
“Bingo!”
Mas nenhum dado dele apareceu, apenas um monte de pontos de interrogação. Isso me deixou intrigado por um tempo, o que aquilo poderia ser?
Deixando essa questão de lado, me forcei a fazer uma escolha difícil.
Aquele homem parecia ter vivido demais e, com o valor daquela recompensa, teria dinheiro suficiente para quitar a minha dívida com o hospital.
Eu tinha um motivo para não querer ser preso. Não era por temer perder a minha liberdade, mas porque minha mãe dependia de mim para poder sobreviver.
Na adolescência, quando minha vida havia virado de cabeça pra baixo por conta da morte de meu pai, acabei repetindo duas vezes o 1° ano do Ensino Médio.
Não só pelas condições que uma escola pública fornecia, mas também porque aquela notícia havia me abalado bastante.
Era zombado pelos outros alunos por ser repetente, e os adultos responsáveis me chamavam de Jão. Até passei a ter pavor de ser chamado assim.
Pensei em deixar a escola e seguir carreira militar, mas acabei sendo recusado e continuei até o meu 2° ano.
Já com 18 anos, tive a ideia de sair e conseguir um emprego qualquer, para que eu pudesse ajudar a minha mãe, que passou a reclamar de dores no corpo e exaustão extrema.
Naquele ano, o sistema de recompensas havia sido lançado. Fui atraído pela promessa de lucro fácil, mas só abandonei a escola e virei um caçador de recompensas, quando minha mãe ficou doente por conta de seu esforço compulsivo e foi internada.
Com 19, ganhei o título de pior caçador de recompensas que já se tinha ouvido falar. Todo o pouco de dinheiro que ganhava ia pra ela. Não importava se eu ficasse sem, o importante era que ela fosse bem cuidada pela equipe médica.
E, com isso em mente, me agachei perto da parede e puxei o fio da tomada.
Plim!
Dinheiro caiu na conta, mas não fiquei para ver os resultados das minhas ações. Peguei meus pertences, baixei a cabeça e saí com pressa do quarto. Aquela foi a minha primeira vez matando alguém.
Pelo caminho, o local foi me parecendo familiar, até que cheguei na recepção e percebi que o hospital em que me encontrava era o mesmo que a minha mãe estava internada!
“Merda, assediei uma enfermeira e matei um paciente logo em um lugar que iria voltar mais vezes!”
Me dirigi até uma recepcionista e fiz o check-out. Conforme todo o meu dinheiro era sugado pelo serviço público, dei uma espiadinha no que poderia ser a última missão daquele sistema maldito.
[Calibragem do Sistema de Assassinato (4/5)]
[#1: Quebre o vaso de flor que está ao seu lado. Recompensa: R$250,00]
[#2: Lamba o chão do hospital. Recompensa: R$500,00]
[#3: Passe a mão na bunda de uma enfermeira do hospital. Recompensa: R$1.000,00]
[#4: Desligue os aparelhos do seu colega de quarto. Recompensa: R$2.000,00]
[#5: Mate o Dr. Marco Aurélio de Nóbrega. Recompensa: R$4.000,00]
“Ah, pronto, agora queria que eu matasse alguém diretamente… Mas nem ferrando eu faria isso!”
— Certinho, muito obrigado por confiar em nosso hospital!
Com a despedida da recepcionista, pensei em seguir até a saída, mas uma enfermeira apareceu abruptamente.
— Você que é o senhor João???
— É ele sim, mona. O que foi? — a mulher no balcão respondeu por mim.
“Maldita, não era pra dizer isso! Obviamente fui denunciado por assédio e descobriram o corpo daquele velho!!!”
— É que a mãe dele… não vai aguentar por muito tempo. Ela pediu para te ver em seus momentos finais… Por favor, me acompanhe.
— O… quê?…
A notícia me pegou como um soco no estômago. Fiquei tão atordoado que nem consegui responder direito à enfermeira, apenas acompanhei seus passos até o quarto onde mamãe estava internada.
— Filho… — disse assim que me viu entrar. Havia alguns aparelhos conectados a ela.
Logo, a enfermeira nos deixou a sós, e eu me aproximei de minha mãe.
— Estou aqui… — Segurei sua mão, e ela fez o mesmo.
— É uma pena as coisas terem acabado assim… Nunca consegui te dar a vida que você merecia… mas pude evitar que fosse você aqui no meu lugar… A pior coisa que poderia ocorrer com uma mãe é ver seu filho morrer antes dela… Fico feliz que… pelo menos isso… não tenha acontecido comigo… Mas… ainda assim… temo pelo seu futuro…
Por um segundo, os cantos de minha boca esboçaram um sorriso; suas palavras aqueceram o meu coração.
— Hahhh, até mesmo em um momento desses… Você não consegue deixar de ser mãe…
— Me entristece saber que partirei vendo meu filho vivendo na miséria… sem arranjar uma namorada… sem se casar… sem ser pai… Pelo menos… você não vai precisar mais se preocupar em pagar o tratamento de um fardo como eu…
— Não diga isso, mãe. Eu nunca te vi como um fardo!
— Filho… pode fazer uma promessa pra mim? Acho… que não vou aguentar mais…
— Mas é claro!
— Viva… uma vida… rica e sem… arrependimentos…
— Eu… Hã?
Sua mão se soltou da minha. Ela já não tinha mais vida ou qualquer fonte de calor. De imediato, comecei a chorar.
— Horário da morte: 22 de junho de 2049, às 21 e 57.
Não havia reparado, mas ao meu lado tinha um médico careca, que até então assistiu toda aquela cena em silêncio.
Logo, desligou os aparelhos que estavam conectados à minha mãe, rasgou uma folha de papel de uma prancheta em que escrevia e a entregou para mim.
Enxuguei as lágrimas. — O que é isso?
— A conta pela utilização dos aparelhos, pela mobilização da equipe médica, dos medicamentos utilizados para tentar reviver ela e da limpeza da roupa de cama onde ela está.
— E você me entrega isso agora? Minha mãe acabou de morrer!
— Eu sei, lamento, mas faço isso para que o corpo da paciente seja retirado logo. Se o senhor continuar enrolando aqui, uma multa por segurar a vaga de alguém que realmente precisa será aplicada ao valor final.
Naquele hora, um sentimento de injustiça surgiu em meu peito, e ódio percorreu o meu corpo.
Uma sensação estranha, nunca tinha sentido aquilo antes… Não, na verdade, já sim. Definitivamente era assim que me sentia todas as manhãs ao acordar.
— Hm. Entendo. E qual o nome do médico que me atendeu, por gentileza?
— Marco Aurélio, Dr. Marco Aurélio de Nóbrega.
Arregalei os olhos, 4.000 reais estavam diante de mim. Após me dar a resposta, o médico deu as costas, se virando para deixar o local.
Coincidentemente, tinha uma mesinha com rodinhas em meu outro lado. Em cima dela, havia utensílios médicos.
Peguei um bisturi do carrinho e segurei firme o objeto de metal. Relutei por um instante, mas naquela hora…
— Ei, doutor.
… Eu já havia me decidido.
— Sim? Arrrghhhh!
Esfaqueei constantemente a garganta do médico em um ponto fatal. Quando ele caiu no chão, subi em cima dele e o apunhalei de novo, e de novo, e de novo… Meu corpo acabou banhado em seu sangue.
Plim!
O som do dinheiro caindo em minha conta foi música para os meus ouvidos.
Foi graças a ele que eu consegui me acalmar e olhar bem o local onde estava, precisava sumir logo com o cadáver e sair dessa.
Convenientemente, ao lado do quarto havia uma janela que dava direto a um mar profundo. Era uma vista linda.
Guardei o bisturi, levei o corpo até ela e o arremessei de lá. Ele fez um barulhão ao cair, até foi possível ouvir o grito de surpresa das pessoas nos andares abaixo.
Subi em seu parapeito e olhei para trás, para o corpo de minha mãe. Em silêncio, prometi a ela que a partir daquele momento viveria uma vida rica e sem arrependimentos, custe o que custar.
Logo, pulei e mergulhei no mar. Consegui fugir do hospital ao nadar por ele.
Após o incidente, o sistema de assassinato havia sido calibrado, e todo um vasto acervo de missões de assassinato, que sumiam e apareciam num piscar de olhos, surgiu em minha tela holográfica.
Eram pedidos por um preço altíssimo e, diferente da quest de calibragem, pagavam em uma moeda estrangeira mais rentável.
Desde então, matei pessoas importantes que valiam mais que outras pessoas importantes e, até mesmo, pessoas comuns que valiam mais que certas celebridades. Quanto maior a dificuldade para fazer algo, maior era o seu preço.
Um ano havia se passado, e minha vida e condição financeira tinham melhorado, já não tinha mais aquele título ridículo de “mais fraco”.
Com o dinheiro ganho, paguei minhas contas atrasadas, comprei roupas caras e tudo aquilo que queria, em especial, equipamentos melhores, como granadas, colete à prova de balas, revólver e espingarda.
Me mudei para uma mansão na parte rica de Ourinhos e, finalmente, tive um carro luxuoso para ostentar à Julia.
A polícia, claro, tentou me acusar pelo assassinato daquele médico, mas consegui pagar ótimos advogados, que me livraram de ser preso.
Apenas tive que pagar uma multa por não ter pago a conta do hospital, pois, na versão apresentada, havia fugido porque não tinha dinheiro na época para quitar a dívida. No fim, sem mais pistas, a morte de Marco Aurélio foi arquivada.
Curiosamente, recebi nenhuma acusação de assédio daquela enfermeira… Muito pelo contrário, ela me deu o número de seu celular!
Desde esse dia, eu… nunca mais a vi, sequer liguei para aquela pessoa, pois, aos meus 20, comprei rosas e dirigi minha Ferrari até o casarão da única mulher que amo: Julia.
Desci do carro com o buquê em mãos e segui até a porta. Ela estava estranhamente entreaberta.
A empurrei, a deixando escancarada, e me deparei com os movéis e as coisas de minha amiga todos revirados.
Soltei as flores no chão e tirei um revólver que guardava na minha cintura, para emergências. Algo não estava certo.
“Um assalto?”
Cautelosamente, adentrei o casarão. Na entrada, avistei uma trilha de sangue. A segui até a sala de estar, onde quatro homens residiam mortos.
Seus cadáveres tinham hematomas, cortes por lâminas e buracos de bala.
“Hmpf, nisso que dá mexer com quem tem o título de ‘mais forte’. Foco!”
Usei a janela de status neles, mas, curiosamente, nada apareceu, além de um monte de pontos de interrogação. Até aquele ponto, gostaria de ter entendido o que eles significavam.
Após averiguar todo o casarão e perceber que havia mais ninguém lá, coloquei minha arma de volta onde estava.
Revistei os quatro, mas nada que me dissesse quem eram ou o que queriam. Minhas únicas pistas eram os móveis revirados e as diversas armas ao lado deles. Julia também não se encontrava no local, porém esteve aqui.
Sabia disso por causa das circunstâncias de suas mortes. Houve um confronto naquele lugar.
Com os homens, não havia qualquer item precioso, o que me fez pensar que eles ou planejavam matar ela e forjar uma cena de crime de um assalto que resultou em morte ou vieram aqui, quando havia ninguém, para roubar algo específico e tiveram o desprazer de terem ficado até que Julia chegasse em casa…
— Hã?
Em um canto da sala, encontrei uma… parede entreaberta. A abri e me deparei com um quarto do pânico secreto, bem estilo bunker mesmo.
Suas paredes eram feitas de metal, e no teto havia alguns sistemas de ventilação. O cômodo tinha armas, comida enlatada, uma cama e monitores de vigilância.
Honestamente, não me surpreendi ao ver um lugar assim no casarão dela. Só quem conhecia Julia tão bem quanto eu sabia que aquela não foi a primeira vez que um grupo de homens ameaçou a sua segurança.
Era uma história antiga, que virou uma lenda entre os caçadores de recompensas. Claro, ela já havia me contado pessoalmente isso antes, então podia acrescentar detalhes que ninguém mais sabia além de mim.
Minha amiga nasceu em um berço de ouro, mas teve uma infância relativamente pesada.
Seus pais, empresários, donos de lojas e empresas, viviam em uma mansão luxuosa com ela, em uma região rica da cidade.
Apesar de serem bastante presentes, Julia repudiava a frieza com que eles a tratavam e a desumanidade com que tratavam seus empregados.
Ela nunca teve brinquedos e sequer saía de casa para brincar com as outras crianças. Vivia com a cara enfurnada nos livros, estudando, às ordens de seus pais.
Eles queriam que Julia fosse inteligente — pois um dia ela herdaria as ações da família — e se casasse com um homem igualmente rico, para manter o status na sociedade.
No entanto, por motivos que até então desconhecia, acabou fugindo de casa após completar o Ensino Fundamental.
Ela, logo, passou a viver em um sobrado, numa região pobre da cidade, e a trabalhar como bartender de uma boate, à noite, e como caçadora de recompensas, de manhã.
Certo dia, um grupo de homens invadiu a boate em que Julia trabalhava e a sequestrou a pedido dos pais dela.
Quando a caçadora de recompensas chegou em sua antiga casa, descobriu que eles a raptaram, pois ela tinha virado piada entre os membros da alta sociedade — por fazer o que estava fazendo — e estava dando vergonha ao nome da família.
Para impedir isso, arranjaram um casamento para ela com uma família poderosa, já que seus pais “coincidentemente” fizeram alguns investimentos ruins e algumas de suas ações acabaram falindo.
Logo, no dia de seu casamento, na limusine a caminho da igreja, Julia escapou, de vestido de noiva e tudo, e pouco a pouco montou o seu nome no ramo, ganhando o título de caçadora de recompensas mais forte.
Meu único arrependimento quanto a essa história foi que eu perdi total contato com ela assim que saí do fundamental. Não pude estar ao lado dela ou sequer a proteger quando tudo aquilo aconteceu.
Reencontrei ela um dia por acaso, muito tempo depois, quando seu nome ainda estava sendo consolidado na área.
“Pode deixar, Julia. Posso não saber onde você está agora, mas a encontrarei e estarei ao seu lado para lhe ajudar!”
Me aproximei dos monitores de vigilância e rebobinei os vídeos de segurança até um pouco antes da invasão.
Julia desceu correndo do segundo andar até se trancar aqui dentro, como se soubesse que o grupo de homens vinha.
Após, os quatro destrancaram a porta da frente, entraram sorrateiramente e começaram a revirar os móveis.
Uma troca de palavras entre eles me deixou perplexo. Disseram que eram assassinos de sistema e que estavam lá para matar uma outra assassina de sistema e recuperar documentos incriminadores para ganharem um bônus.
Na hora, entrei no quadro de missões. Misteriosamente, a missão ainda estava lá. O alvo? Julia.
Foi uma surpresa para mim descobrir que existia mais pessoas como eu e que ela era uma delas.
“Assassinos de sistema… então é assim que nos chamamos?”
Voltei a atenção para o vídeo. No momento mais oportuno, Julia saiu do quarto e atacou os quatro. Todos foram mortos, mas ela não saiu ilesa.
Sangrando, deixou o seu casarão, seguiu até a garagem, pegou um de seus carros luxuosos e foi embora.
Não havia restado mais pistas de onde ela poderia ter ido, então decidi aceitar a missão de seu assassinato.
Para meu espanto, sua localização em tempo real foi exibida em um mapa tridimensional que surgiu à minha frente. Nunca ocorreu isso antes.
Abandonei a cena do crime, entrei em minha Ferrari e dirigi até o lugar onde minha amiga se encontrava. Estacionei em um porto; não havia outro carro lá além do meu.
Havia sangue no chão. Acompanhei o rastro até dentro de um armazém — quase escondido, se comparado aos outros.
Em meio a caixas de madeira e barris de metal, lá estava ela, Julia. Seu corpo se encontrava esparramado pelo chão.
Saí de minha Ferrari e peguei a minha espingarda no porta-malas. Me aproximei de minha amiga e me agachei. Levantei a cabeça dela e a coloquei sobre meu colo.
Ela ainda respirava, mas não sabia por quanto tempo mais. Havia feridas fatais por todo o seu corpo.
Graciosamente, minha amiga abriu seus olhos e olhou fundo nos meus. — Jo.. ão…?
— Calma, isso, eu estou aqui sim. O que… aconteceu com você?
— Eu apenas cansei do meu vício em álcool… para tentar esconder a minha culpa pelos assassinatos que cometi… Queria me livrar dela de vez… então… um dia… decidi ir atrás do responsável pelo sistema e pôr um fim em tudo… Passei um ano juntando pistas e evidências… mas ele acabou descobrindo e pôs um contrato de assassinato pela minha cabeça…
— Acabar com tudo?! Por que você decidiu virar uma assassina de sistema, pra começo de conversa? Jamais… te imaginei em uma profissão dessas…
— Há muito tempo atrás… me sentei no banco de espera de um metrô… e um homem misterioso se sentou ao meu lado… Nós dois conversamos… e ele me ofereceu o sistema de assassinato… De início… fiquei relutante em aceitá-lo… mas acabei o pegando e não o usando…
“Um homem misterioso no metrô?!”, estranhei e então continuei: — Não entendo… por que não recusou e se manteve como uma caçadora de recompensas?
— O sistema oficial de recompensas é uma mentira… um sonho impossível… Ele paga mal e serve apenas para cumprir o papel que o governo deveria fazer… Você mais do que ninguém sabe disso…
— Então por que escolheu levar a vida que levou? Por que fugiu de casa ainda jovem?
Ela hesitou por um momento.
— No Ensino Fundamental… meus pais descobriram que você era meu amigo e me pediram para que eu parasse de andar com você… por causa da sua classe social na época… Como não os obedeci… sujos do jeito que eram… encomendaram o assassinato de seu pai… fazendo com que você saísse da escola…
Meus olhos arregalaram.
— Não… não pode ser…
— Me desculpe por não ter te falado isso até hoje… me desculpe também por não os ter obedecido… mesmo sabendo como eles eram… O motivo de eu ter fugido de casa foi porque… ao descobrir isso… fiquei extremamente chateada e me rebelei contra eles…
Permaneci um tempo em silêncio, refletindo, absorvendo toda informação que Julia havia jogado em cima de mim. Por fim, lhe fiz uma última pergunta:
— Quando foi que você começou a usar o sistema de assassinato?
— Depois que fui sequestrada… por ordem dos meus pais… e trancada em meu antigo quarto na mansão dele… Aquele foi o meu limite… Naquele instante… decidi usar o sistema para provar aos outros que poderia me tornar rica e influente sozinha e para evitar que outras situações como aquela voltassem a acontecer… Utilizei o aparelho para fugir no dia do meu casamento forçado e… graças a ele… ano passado… aos 20… havia me tornado bem-sucedida e passei a morar na parte rica da cidade….
— Então dizer ser uma caçadora de recompensas foi só um álibi que justificava a sua ascensão econômica repentina.
— Exato… Eu não merecia receber o título de “mais forte”… COF COF!
Julia virou a cabeça para o lado e tossiu sangue, sua pulsação estava toda irregular. Uma sensação ruim passou pelo meu corpo, como se eu estivesse revivendo o leito de morte de minha mãe.
— Eu… não vou aguentar mais… minha consciência… já está indo embora…
— NÃO DIGA ISSO! Vou te levar para um hospital e…
— É tarde demais… João… Onde quer que eu vá… conquanto o contrato ainda estiver de pé… haverá assassinos de sistema querendo me matar… Apenas me prometa uma coisa…
— Claro, sou todo ouvidos!
— Termine aquilo que comecei… 15° 46′ 48″ S e 47° 55′ 45″ O… Porta AB…
Seus lábios se fecharam, seu corpo começou a perder calor.
— O que isso significa?! Por favor, não se vá, eu…
Suas íris perderam o brilho.
— … Te amo…
Julia morreu em meus braços.
Minhas lágrimas caíram no chão. Fechei os olhos dela e a deixei onde estava.
“Quem quer que tenha feito isso… eu o caçarei e o arrastarei para o quinto dos infernos, seu… desgraçado!!!”
Em seus momentos finais, minha amiga havia me passado um código. O primeiro, obviamente, era uma coordenada.
Entrei na aplicação de mapa do meu aparelho e joguei os números nele. Uma biblioteca municipal no centro da cidade.
“Bingo! Agora, você me paga!”
Com o objetivo de querer descobrir a face de meu inimigo, segui em direção à minha Ferrari, mas no meio do caminho…
BOOM!!!
O meu carro explodiu, me fazendo voar pra trás e bruscamente aterrissar de volta para dentro do armazém.
Logo, alguns homens e mulheres apareceram à frente do local onde eu estava e me encurralaram. Não passavam de uma dezena.
“Foco!”
Usei minha janela de status neles, todos tinham ponto de interrogação. Àquela altura, já sabia que quem tinha isso… era um assassino de aluguel!
RATATATATÁ!
Eles abriram fogo contra mim, mas a tempo rolei e consegui cobertura atrás de uma enorme caixa de madeira por perto.
Com a minha espingarda troquei tiros com eles. Ferí uns, matei outros. No meio da ação, encontrei uma granada de luz no meu bolso.
A arremessei e aproveitei o clarão para fugir de lá. Guardei as minhas armas e corri para o mais longe possível. Me enfiei em um beco qualquer e abri o quadro de missões.
Como tinha imaginado, havia um contrato pela minha cabeça, com a maior recompensa que já vi!
Na hora, habilitei o modo espaçonave do aparelho, uma opção que desabilitava o GPS espacial e que me desconectava da internet da América Latina. Fiquei completamente offline e irrastreável.
“Mas que merda, o que eu faço agora!? Com quem é que estou me metendo!?!?!?”
Me restava apenas duas opções: concluir a minha promessa com Julia ou viver fugindo, no anonimato.
Até aquele momento, eu só queria voltar para a minha mansão… mas não podia. Obviamente teria gente me esperando lá.
O que Julia afirmou estava correto. Onde quer que eu fosse, haveria um assassino de sistema atrás de mim para tentar me matar.
“Droga!”
Cerrei os dentes, pois havia feito a minha escolha: terminar aquilo que minha amiga havia começado.
A biblioteca ficava não muito longe da onde me encontrava. Fui até ela tomando caminhos alternativos e tomando cuidado com os meu arredores.
Por algum motivo desconhecido, minha janela de status ainda funcionava, então a utilizei para me auxiliar e dizer quem das pessoas que passavam por mim eram assassinos de sistema. Por sorte, nenhuma delas.
Ao chegar despercebido no local, fui direto para os livros. Achei que “porta AB” fosse o péssimo nome de alguma obra, mas estava enganado.
Me sentei no chão, cansado, pensando em desistir, até que meus olhos recaem sobre uma placa em uma porta. Nela, “AB” estavam escritos.
“Bingo!”
Me levantei e me dirigi até ela. Quando a abri, dei de cara com uma pequena sala sem janela, repleta de pilhas e mais pilhas de papel.
“Eu esperava que as provas estivessem todas em um pendrive, não achava que estavam todas em documentos e papeladas espalhados por uma salinha…”
Entrei e me aproximei de uma única mesa à frente, colada à parede. Nela, havia um arquivo intitulado “Zé”. O peguei e comecei a ler.
José “filho” era filho de um funcionário de metrô, José “pai”, com uma caixa de supermercado. Morou em um apartamento apertado, na região mais pobre da cidade, e sua infância foi difícil.
Vivia com a cara enfurnada nos livros, e seus pais, ausentes a maior parte do tempo, mantinham um relacionamento relativamente frio com ele.
O comportamento deles mudou, porém, quando descobriram que o filho deles era um gênio com tão pouca idade.
Por acharem que a criança seria uma passagem de saída da miséria em que se encontravam, seus pais passaram a investir nele, dando tudo do bom e do melhor para ele.
Com os estudos, José conseguiu uma bolsa de 100% em uma escola particular de alto calibre e passou a se interessar e a estudar programação de software e hacking.
Por não possuir amigos e ser cada vez mais alvo de zombaria dos seus colegas, por conta de sua classe social e do emprego que seus pais tinham, acabou faltando às aulas e ficando cada vez mais enfurnado em casa.
Foi então, no final do Ensino Fundamental — do qual ele não chegou a concluir —, que seu pai morreu em um acidente causado por negligência dos responsáveis pelo metrô onde ele trabalhava.
José e sua mãe nunca foram ressarcidos pelo ocorrido, pois os advogados da empresa os livraram de toda responsabilidade pelo incidente.
A primeira vez que o geniozinho usou suas habilidades hackers para o crime foi para roubar todo o dinheiro dessa empresa e repassar para ele e a família das outras vítimas.
No entanto acabou pego pela polícia. Antes de prestar queixa, o dono dessa empresa conversou com ele.
Disse que não prestaria queixa, se José falasse para onde havia enviado o restante do dinheiro, e que o contrataria para trabalhar em sua firma, uma vez que aquele CEO reconheceu o talento dele e o seu feito com tão pouca idade.
A princípio, o jovem negou, mas, após o homem o lembrar das consequências — ser preso e como ficaria sua mãe — fez uma escolha egoísta: optou se salvar do que fazer justiça.
Aos 18 anos, utilizando a tecnologia e os recursos da empresa, a experiência adquirida e os contatos que conquistou ao longo do tempo, José criou o sistema de assassinato, ao se aproveitar de uma falha de segurança apresentada no dia de lançamento do sistema de recompensas oficial do governo.
Após recrutar algumas pessoas e estabelecer conexões, o dono da empresa acabou virando o primeiro alvo de seu sistema.
Naquele dia, José jurou que faria de tudo para manter seu estilo de conforto e acima de tudo manter o padrão de vida elevado de sua mãe.
Se tornou um hacker freelancer anônimo, mas bem-sucedido financeiramente. Por possuir uma rede de assassinos, agia como intermediador.
Pessoas importantes — monetariamente falando — contratavam seus serviços de execução e, com o dinheiro que ganhava deles, repassava uma parte para os assassinos e ficava com a maior parte para ele.
“Hmmm, então foi assim que nasceu o sistema…”
Nheec…
A porta lentamente se abriu atrás de mim. Por sorte, consegui me esconder a tempo atrás de uma enorme pilha de papel em um dos cantos da salinha.
Uma pessoa encapuzada, segurando um galão de gasolina, entrou e se dirigiu à mesa em que eu estava antes.
Pegou o arquivo, olhou para a sua capa e o colocou de volta em sua posição original. Soltou um estalo com a língua e então despejou gasolina na mobília. Após, em toda a sala. O ambiente chegou a feder a esse combustível fóssil.
Quando o recipiente foi esvaziado, o pôs no chão e então tirou uma caixinha de fósforos de seu casaco. Retirou um palito e o acendeu.
Nessa hora, saí do meu esconderijo, saquei o revólver em minha cintura e apontei para o sujeito, que estava de costas para mim.
— Levante as mãos e se vira devagarzinho para mim — ordenei, enquanto engatilhava a arma que usava.
A pessoa obedeceu, com o fósforo aceso ainda em mão. Para minha surpresa, ele revelou ser o homem misterioso daquele dia no metrô!
“O quê?! Co-como assim??? Foco.”
Usei a janela de status nele. Não apareceu seus dados ou um monte de interrogação, apenas uma coisa: ADM.
— Então você que é o Zé responsável pelo sistema!
— “Zé” não! Me lembra a expressão “Zé ninguém”, algo que não sou, mas que me chamavam na escola… Faço questão de ser chamado de José. Até aceito “Seu Zé”, mas na hora e idade certas.
— Acho justo, também tenho pavor de um apelido.
— “Jão”, né? Tô ligado…
— Tsc. Como você sabe disso?
— Ora, não é óbvio? Assim que ingressam no meu sistema, recebo todos os seus dados e passo a saber tudo sobre a pessoa. Com quem se relacionam, o que veem, onde estão, o que falam, o que pesquisam…
— Hm, então foi assim que você descobriu os planos de Julia e encontrou este lugar…
— Exato, o seu histórico de navegação me trouxe até aqui, e a movimentação de sua amiga a levaram a se tornar um alvo do meu sistema. Honestamente, devo admitir: foi uma sábia decisão ativar o modo espaçonave. Não fazia ideia de que ‘cê estava aqui.
— É porque eu já suspeitava disso… Mas, me diz uma coisa, por que me escolheu? Foi você quem me entregou o sistema de assassinato, afinal.
— Todo dia, eu vou a um certo metrô para ouvir a voz gravada de meu falecido pai e procurar pessoas que parecem ser as mais infelizes, descontentes com a vida, com as expressões mais miseráveis, com uma vida fodida, para poder lhes entregar o meu sistema. Por acaso do destino, ‘cê passou por lá um dia.
— E o descarrilamento…?
— Completamente acidental, não tive nada a ver com aquilo, cara. Tanto é que eu poderia ter sido uma das vítimas se você tivesse enrolado mais um pouquinho. Era para eu ter chegado em você bem antes, sabe, mas alguém tinha que se levantar para uma grávida, né…
Na hora, me distraí por um segundo, mas foi o suficiente para José largar o fósforo aceso em sua mão e incendiar a salinha em que estávamos.
As chamas levantaram em um instante, e um clarão machucou os meus olhos. Os semicerrei, e então meu oponente avançou para cima de mim, tentando roubar o meu revólver.
Lutamos, mas ele conseguiu pegar a arma, me jogar no chão e sair pela porta, a trancando logo em seguida. Estava preso em uma salinha em chamas.
Me levantei e me recompus. Girei a maçaneta, mas não teve jeito. Tirei a espingarda de minhas costas e abri passagem ao atirar na fechadura.
Do lado de fora, olhei os meus arredores, ainda podia sentir a sua presença.
Tum!
Um livro caiu de uma estante.
“Bingo!”
Entrei no meio de um caminho repleto de prateleiras, e uma verdadeira perseguição de gato e rato começou. Estava atento, mas não conseguia ver o meu oponente, apenas o ouvir.
— Sabia… que os pequenos delitos da calibragem do sistema serviam como teste para provar o quão leal essa pessoa era pelo dinheiro e o quão longe ela iria por ele? Era quase como um nivelamento, mostrava o quão funcional era o sistema, como ele funcionava e conquistava a confiança do usuário…
Não o respondi. Estava perdido e sabia que ele queria abrir uma chance de me derrubar…
Tum!
Outro livro caiu atrás de mim, fui até ele.
— Ué? ‘Cê não tem um aparelho atrás da sua cabeça?!
Estranhei e virei para trás. — Nunca tive.
— Como você tem acesso ao sistema, então???
— Esperava que você pudesse me responder.
— Sei lá, porra! Me pergunto também como você descobriu quem eu era naquela salinha, e não um outro qualquer…
— Através da janela de status, tinha ADM escrito nela, quando olhei para você.
— Ah, então… você também tem acesso aos dados das pessoas? Não era pra isso ter acontecido, isso é novo. Poderia adicionar essa função em meus assassinos depois, com algumas limitações, claro… De qualquer forma, acho que o acidente provocou uma anomalia nunca antes vista e um glitch que possibilitou o acesso aos dados…
Nessa hora, sua voz me pareceu próxima. Olhei para trás novamente, lá estava ele com o meu revólver apontando para mim.
— É uma pena para a história da humanidade…
BANG! BANG! BANG!
Três tiros. Um na coxa e dois no abdômen. O colete à prova de balas que usava foi varado, não serviu pra nada!
Caí no chão. Meu instinto de sobrevivência falou mais alto, e rastejei para fora da biblioteca. Quando senti que não iria aguentar mais, me deitei na sarjeta.
Reclamei da vida como ela era, no que achei que seria os meus momentos finais. Mas a dor me impediu de continuar.
José tirou o meu revólver de dentro de seu casaco e o apontou para mim. — Últimas palavras?
Minha visão começou a ficar embaçada, mas minha mente não queria me deixar ir.
O filme da minha vida passou diante de meus olhos…
ATÉ ACABAREM NO MOMENTO ATUAL EM QUE ME ENCONTRO.
Meus dentes rangem com a força que eu exercia para tentar me manter acordado. O desgraçado, por outra lado, engatilhou a arma.
— Eu… nunca fiz distinção entre homem e mulher, idoso ou criança, culpado ou inocente, na hora que aceitava algum contrato. Sempre tinha algum assassino lunático que o cumpria. Mas quando é você quem vai matar alguém… a situação é totalmente diferente.
— Chega de conversa… ACABA LOGO COM ISSO! — rugi, mas não puxou o gatilho.
Por algum motivo, ele a levanta, deixando de apontar ela para mim.
— Olha, não estou acostumado em matar diretamente as pessoas. Na verdade, você seria o primeiro! Vamo fazê o seguinte então: eu reconheço suas habilidades e sua singularidade, então volte a trabalhar para o meu sistema de assassinato. Mas ‘cê tem que me prometer que irá se esquecer de tudo que aconteceu hoje, inclusive a minha identidade.
— Vai… se ferrar…
— Ora, não precisa fazer cara feia. Apesar do que disse, saiba que faria o necessário para sobreviver, mesmo que isso significasse colocar a minha vida na frente da dos outros.
José guardou a arma na cintura e esticou a sua mão para mim.
— Pense com calma, João. Aceite a minha trégua.
Honestamente, estou de saco cheio disso. Viver nas promessas dos outros, e não por mim mesmo.
Por que as pessoas são tão egoístas? Bom, eu não as deveria julgá, pois também sou. E tudo por causa de dinheiro.
Preferi isso mais do que passar mais tempo com a minha mãe e mais do que me declarar para a mulher que eu amava. Agora, é tarde demais.
Olhando pra trás essa porra realmente me fez mais mal do que bem. Seja a forma como eu vivi, seja a forma como a sociedade me segregou.
O meu caráter e a minha integridade são coisas que eu não deveria ter posto à venda. Eu posso estar à beira da morte… mas eu quero mudar!
Tudo que é meu é dos outros e toda ajuda que eles precisarem eu darei sem cobrar nada. Antes morrer transformado do que arrependido!
E como meu primeiro bem para a humanidade, irei me livrar do lixo completo que é José, aquele que tirou a inocência de várias pessoas e matou várias outras que tinham nada a ver com nada.
Quantos será que ele tornou em um escravo do dinheiro? Isso não é mais pela Julia, é uma questão pessoal agora!
Extremamente irritado, me levanto com dificuldade e olho fundo em seus olhos. — Eu vou matar você.
— Oh! E por que você faria isso? Ou melhor, o que você ganharia com isso? Nenhum tostão, eu presumo… — o miserável falou em uma calma e arrogância desprezíveis.
— Que se foda! Não faço mais isso por ele. Pode parecer besteira o que vou falar, mas nem tudo na vida é sobre dinheiro.
— Ha, de fato… É uma besteira.
José colocou a mão no revólver em sua cintura.
— É uma pena… mas parece que você deixará este mundo sendo apenas mais um Jão…
Eu reajo. Com o resto de força que ainda me resta, aperto firme o cabo da escopeta em minha mão.
— Não… eu posso cair, mas você vem junto, Zé!
Franzimos nossos cenhos e nos encaramos. Um silêncio mortal recai sobre nós.
Estamos focados, quem atirar primeiro e melhor será o vencedor, igual um confronto entre dois pistoleiros no velho oeste…
BANG!
BANG!
Ah…! Merda… Ele… acertou meu peito…
Pof!
Mas… antes… consegui atingir a cabeça dele… Seu corpo… havia caído… e o meu é o próximo.
Tunc!
Derrubei minha arma no chão… mas me forço a ficar de pé… Não há motivo para tal… eu só… não queria cair por enquanto…
Sinto dor… mas também uma leveza… sobretudo em minha alma… “Então essa é a sensação de ‘fazer o bem sem olhar a quem’?…”
Eu sorrio involuntariamente… lágrimas escorrem dos meus olhos…
“Não… isso que sinto é liberdade… é o peso dos outros saindo de minhas costas…”
Estava inexplicavelmente quente… mas o sol se punha… Cambaleando… sigo em sua direção…
Um passo… dois passos… três passos… não aguento mais… Meu corpo sucumbe… caio duro no chão…
De bruços… olho para além do horizonte… A noite chega.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.