Capítulo 25: Destino para Ken Orquídea
Os alunos feridos eram cuidadosamente retirados dos escombros. Os gritos de dor que antes dominavam o ar foram lentamente substituídos por murmúrios abafados, gemidos contidos e sussurros nervosos — suspiros de alívio por ainda estarem vivos. A barreira que envolvia a escola, aquela áurea opressora criada por Natan, começava a se dissipar como fumaça tocada pelo vento, deixando apenas a destruição silenciosa em seu rastro. Guardas da Camada atravessaram os portões com passos firmes, suas armaduras reluzindo sob a luz irregular, em contraste cruel com o cenário devastado ao redor.
Eu estava lá. Presente, mas isolado. Um espectador arruinado da tragédia que ajudei a causar.
A dor latejava em minha barriga, quente e pulsante como uma batida constante me arrastando para a inconsciência. A áurea negra de Acara havia estancado o sangramento, mas a sensação era como se algo ainda estivesse queimando por dentro. Cada movimento era um lembrete vivo de que eu estava à beira do colapso.
Virei o rosto lentamente, e meus olhos encontraram Mina e Shin, deitados ao chão. Seus corpos estavam imóveis, os olhos arregalados, fixos em nada, congelados no pavor absoluto.
Eu quase matei eles.
A ideia se enroscou na minha mente como uma serpente venenosa. Repulsiva, sim. Mas ao mesmo tempo… inevitável. Algo dentro de mim sabia que aquele impulso não fora completamente meu. A culpa se afundava no peito como correntes invisíveis, pesadas demais para que eu pudesse ignorá-las.
Acara, como se fosse capaz de ler o que eu sentia, me ergueu com uma facilidade desumana. Seu toque era frio, impessoal — não havia compaixão ali, apenas eficiência. Joguei minha cabeça sobre seu ombro enquanto ela caminhava, carregando meu corpo como se fosse um fardo leve, insignificante. Os escombros não a impediam. Ela se movia com a graça silenciosa de um predador noturno, os pés traçando um caminho exato entre o caos.
Fomos parar em um corredor escuro, afastado do centro da destruição. Lá, encontrei Eriel e Noha.
Eriel estava no chão, os dois braços decepados. O sangue formava poças densas ao seu redor, e seus olhos vidrados flutuavam entre choque e dor. Noha, por outro lado, sentava-se com dificuldade, a respiração pesada e o rosto pálido, marcado por cortes profundos e hematomas escurecidos. Ainda assim… havia vida neles. Uma teimosia incansável de quem se recusa a cair.
Acara me largou contra a parede, sem cerimônia, como quem descarta algo já sem utilidade. Em seguida, caminhou até Eriel, abaixou-se e, sem nenhum aviso, apanhou os braços decepados dele.
A cena que se seguiu foi grotesca.
Ela pressionou os membros de volta nos tocos sangrentos com uma calma cirúrgica, quase desumana. Linhas escuras, finas como fios de cabelo, emergiram do corpo de Eriel, entrelaçando-se, costurando carne e osso com a naturalidade de quem ajusta a bainha de uma roupa. O som era úmido, e o cheiro de sangue se intensificou.
— Você não teve sorte, né? — murmurou Acara, com um sorriso de escárnio, como se zombasse da ironia.
Eriel ofegava, os lábios trêmulos, tentando manter a consciência. Entre gemidos abafados, respondeu:
— Aquele homem… o de terno… com o olho azul… — ele parou, engolindo a dor com dificuldade. — Ele era forte demais. Eu não vi nada. Só… um piscar. E então ele estava em outro lugar. Como se tivesse se teleportado. Foi… ridículo. — E então, murmurou com amargura: — Obrigado… pelos braços.
Acara levantou uma sobrancelha, encarando a perna mutilada dele.
— E a sua perna? — perguntou num tom tão casual que arrepiava, como se falasse sobre o clima.
Eriel soltou uma risada fraca, contida entre espasmos de dor.
— Quando ele descobriu que eu podia me costurar… — seus olhos se perderam no vazio — ele implodiu minha perna. De dentro pra fora. Como se ela tivesse explodido por vontade própria. Foi uma sensação… estranhamente limpa.
Noha, que até então permanecera calado, se ergueu com esforço, apoiando-se na parede com as mãos trêmulas. O sangue escorria pelos cantos da boca, a respiração era irregular, mas ele ainda estava ali. De pé. Lutando contra algo invisível.
— Aquele desgraçado é imortal… — disse com a voz rouca, voltando a se sentar com um suspiro pesado. — Quando ele pisca… é nisso que tudo acontece. É só uma suposição… mas eu aposto nela.
Eu apenas os observava. Cada palavra deles era um borrão na minha mente entorpecida. Minhas mãos tremiam, suadas, e o ambiente parecia se distorcer em tons acinzentados. Era como se a realidade estivesse tentando me expulsar.
Acara nos encarava. Seus olhos, vazios de emoção, analisavam cada um de nós como peças quebradas em um tabuleiro. Ela ficou assim por um tempo, imóvel, como uma estátua feita de pura indiferença. E então, finalmente, se virou para mim.
Seus olhos me fitaram, e por um instante tudo ao redor desapareceu.
As palavras dela me atingiram como lâminas, cortando o silêncio com precisão cirúrgica.
E então… tudo caiu sobre mim de uma vez.
A verdade.
Aquela que a VIXI tanto falava.
Aquela que eu tentei ignorar.
O mundo — a minha visão dele — havia mudado. E não havia mais volta.
Acara me encarava em silêncio. Havia algo em seu olhar que cortava mais fundo que qualquer ferida — não era piedade, tampouco empatia. Era compreensão… crua, impiedosa. Como se ela enxergasse, dentro de mim, os cacos do que eu fui.
Então, ela sorriu.
Um sorriso enigmático, fino como uma lâmina, carregado de uma calma perigosa.
— Agora que você sabe de tudo… — sua voz era baixa, quase um sussurro, mas cada palavra soava clara como metal frio batendo em pedra. — Vou te dar uma escolha, Ken.
Ela deu um passo à frente.
O eco suave de seu movimento ressoou no corredor destruído como se o mundo inteiro tivesse parado só para ouvi-la. Seus olhos, frios e inalteráveis, estavam cravados nos meus, como se tentassem arrancar a resposta diretamente da minha alma.
— Você vem comigo… para as Camadas Superiores. Vai treinar, quebrar seus limites, se tornar mais forte… Ou…
Ela não terminou.
Não precisou.
— Eu irei. — Minha voz cortou o ar antes que ela pudesse completar a sentença. Era baixa, mas firme. Uma afirmação que saiu antes mesmo de eu pensar. — Eu preciso… ficar forte. Mais forte que tudo isso.
Por dentro, eu tremia.
Minhas entranhas ainda ardiam de dor.
Mas algo já tinha sido decidido — talvez no momento em que eu quase matei meus amigos… ou talvez muito antes disso.
Acara me observou por um segundo longo demais, e então… sorriu.
Não um sorriso gentil. Não um sorriso humano.
Era sutil, predatório — como o de um lobo que finalmente encurrala sua presa e não precisa mais correr.
O canto de seus lábios se curvou lentamente, como se ela saboreasse o momento.
— Então… — ela riu, um som suave, porém carregado de uma estranha satisfação — a partir de agora, Ken Orquídea está morto.
O ar pareceu pesar mais.
— Um novo ser vai nascer.
Silêncio.
Eu não disse nada.
Não precisava.
Ela sabia.
E eu… também.
Sabíamos que algo havia se quebrado de forma irreversível.
Tudo o que eu era, todos os laços que me prendiam ao que chamavam de “vida normal”, haviam sido incinerados junto dos escombros atrás de nós.
A dor… a culpa… o medo.
Tudo seria enterrado.
Porque a partir daquele dia — naquele instante exato — não havia mais volta.

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