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    A escuridão à frente era absoluta, mas eles não estavam mais cegos. Tinham um guia. A canção, que antes era um sussurro fantasmagórico, agora era uma melodia clara na mente de Neo, um fio invisível que o puxava para as profundezas daquele labirinto subterrâneo.

    — É por aqui — o menino murmurou, a voz baixa e receosa, o corpo movendo-se em um transe lento, a mão ainda agarrada à túnica de Magno.

    Magno mancava, a dor em seu tornozelo uma pontada aguda a cada passo, mas a dor em seu coração era muito maior. Ele olhava para a escuridão à frente, imaginando o que encontraria no final daquela melodia maldita. 

    Hermes o seguia de perto, a xiphos em punho, seus olhos dourados varrendo cada sombra, cada goteira, a frustração pela separação de Teseu ainda pesava em sua mente.

    Após alguns minutos andando, ou se arrastando, o túnel começou a mudar. As paredes de pedra bruta, cobertas de lodo, deram lugar a um mármore liso e polido, cujas veias escuras pareciam artérias mortas. O cheiro de esgoto e umidade foi sendo lentamente substituído por um odor adocicado e enjoativo de incenso e flores apodrecendo.

    — Que lugar é esse? — Magno sussurrou, o som abafado pela acústica estranha do corredor de mármore. — Nenhum esgoto em Therma se parece com isso.

    Hermes não respondeu. Ele sentia a mesma pressão no ar que sentira antes da luta com o lobo, uma energia antinatural que se tornava mais forte a cada passo.

    …………

    Do outro lado da muralha de pedra, a dor era a única companheira de Teseu. Ele tossiu, um som úmido e rasgado que ecoou na escuridão confinada, e sentiu o gosto metálico de sangue na boca. Sua costela parecia uma faca cravada em seu peito, e a exaustão pelo uso de seu poder o deixara fraco, trêmulo. Ele estava sozinho, enterrado vivo.

    Ele se arrastou, ignorando a dor, tateando pela escuridão em busca de uma saída, de uma fresta de ar. Seus dedos encontraram apenas rocha fria e intransponível. O desespero, um veneno familiar, começou a se infiltrar em sua mente.

    “Droga- Droga, droga” Ele resmungou mentalmente, não tinha forças sequer para reclamar em voz alta.

    Então, ele viu.

    Um único ponto de luz, verde e suave, dançando no ar a poucos metros dele.

    Um vaga-lume.

    A bola de luz pairou no ar por um momento e depois se moveu, não de forma aleatória, mas com propósito, em direção a uma fenda estreita na parede que Teseu não havia notado. Ele parou, como se esperasse.

    Teseu ficou imóvel, o coração batendo forte. Ele sentiu uma conexão estranha com a pequena criatura, uma ressonância que vibrava com a mesma energia que agora corria em suas veias. Não era uma coincidência. Era um chamado.

    “Ela quer que eu a siga?”, ele pensou, a pergunta se formando não em palavras, mas em puro instinto.

    Com um último olhar para a parede de rocha que o separava de seus amigos, ele tomou sua decisão. Ignorando a dor lancinante em suas costelas, ele começou a se arrastar, apoiando-se nas laterais da caverna, em direção a luz solitária que o guiava para uma nova e desconhecida escuridão.

    …………

    A jornada de Hermes e Magno se tornava cada vez mais profana. Guiados pelo transe de Neo, eles finalmente chegaram ao fim do corredor de mármore polido. Diante deles, bloqueando o caminho, havia uma imensa e ornamentada porta de bronze. Cenas de festivais e celebrações estavam gravadas em sua superfície, figuras dançando e tocando liras, uma imagem de alegria que, naquele ambiente fétido e silencioso, parecia uma zombaria cruel. Não havia fechadura visível, nem maçaneta.

    — E agora? — Magno sussurrou, o pé torcido latejando. — Explodimos a porta?

    Hermes não respondeu. Ele se aproximou, seus olhos dourados percorrendo as gravuras. Ele viu a perícia, mas também a arrogância na obra. Colocou a mão na superfície fria do metal. — Não há mecanismo. É apenas pesado.

    Ele se posicionou, os pés firmes no chão de mármore. — Ajude-me a empurrar.

    Juntos, o deus caído e o ladrão ferido colocaram os ombros contra o bronze. Com um grunhido de esforço, eles empurraram. A porta não se moveu.

    — É inútil — ofegou Magno.

    — De novo — Hermes ordenou, a voz tensa.

    Eles empurraram mais uma vez, seus músculos gritando em protesto. A porta gemeu, um som de metal arranhando pedra que ecoou pelo corredor. E então, lentamente, ela começou a ceder. Com um último e desesperado esforço, eles a abriram o suficiente para criar uma fresta escura.

    O cheiro que emanou de dentro os atingiu como um soco. Era um odor de medo, de sujeira e de um sofrimento tão antigo que parecia ter impregnado as próprias pedras. Eles se espremeram pela abertura e entraram.

    A câmara era vasta, uma paródia grotesca de um templo, com um altar de pedra negra no centro.

    O chão era coberto por tapetes caros, agora imundos. Brinquedos — cavalos de madeira, bonecas de pano, pequenas liras — estavam espalhados por toda parte, alguns quebrados, outros manchados. Fitas coloridas pendiam das paredes em um arremedo de celebração.

    Entre eles e o blasfemo tempo, havia uma parede de grades de ferro, grossas e enferrujadas, que ia do chão ao teto, dividindo a sala em duas. E do outro lado das grades, estavam as crianças.

    Dezenas delas. Todas as que haviam desaparecido de Therma. Estavam acorrentadas às paredes, as correntes presas a grilhões em seus tornozelos e pulsos. Estavam magras a ponto de a pele se esticar sobre os ossos, cobertas de fuligem e feridas. Seus olhos, antes cheios de vida, agora eram poços de um terror apático.

    Por um momento, houve apenas silêncio. Então, uma das crianças ergueu a cabeça. Seus olhos se arregalaram.

    — Magno? — a voz era um sussurro rouco, quase inaudível. Era Lino.

    A palavra foi como uma faísca. Um por um, os outros rostos se viraram. O torpor em seus olhos foi substituído por um clarão de reconhecimento, de uma esperança que eles pensavam estar morta.

    — MAGNO! — O grito de outra criança quebrou o silêncio, e então, a represa se rompeu. Um coro de choros e gritos desesperados ecoou pela sala, uma onda de agonia e alívio. — MAGNO! NOS AJUDE! TIRA A GENTE DAQUI!

    O som atingiu Magno com a força de um maremoto. A dor em seu tornozelo, o cansaço, a frustração… tudo desapareceu, substituído por uma fúria paternal e protetora.

    — LINO! ELARA! — Magno gritou, correndo até as grades, cego para qualquer outra coisa, o som de seu pé mancando ecoando no mármore. 

    Ele as sacudiu com uma fúria impotente. O ferro nem se moveu.

    Hermes correu pela extensão das grades, procurando por uma porta, uma alavanca, qualquer coisa. Nada. A parede de ferro era sólida. Eles podiam ver as crianças, a poucos metros de distância, mas estavam completamente separados delas.

    Foi então que a voz trêmula de Neo soou. — Magno… ali.

    Ele apontava para a base das grades. Havia uma pequena fresta no chão, uma abertura na fundação de pedra mal acabada, grande o suficiente apenas para a passagem de uma criança.

    — Eu vou — disse Neo, o terror em seu rosto lutando contra uma nova determinação.

    — Não! De jeito nenhum! — Magno retrucou, virando-se para ele. — É perigoso demais!

    — Nós não podemos alcançá-los! — Neo insistiu, a voz ganhando força. — Eu consigo passar. Me deixa ir, chefe. Me dá sua faca. Eu sou quase tão bom em abrir fechaduras quanto você. Eu posso soltá-los.

    Magno olhou do rosto determinado do menino para as crianças chorando do outro lado das grades. Estava encurralado pela lógica cruel da situação. Com as mãos trêmulas, ele tirou uma de suas facas mais finas da bota e a entregou a Neo.

    — Se algo der errado… — Magno começou, a voz embargada.

    — Não vai dar — disse Neo, com uma coragem que ele não sentia.

    O menino se arrastou pela fresta de pedra e, em segundos, estava do outro lado. Ele correu até a corrente mais próxima, a de Lino, e começou a trabalhar na fechadura rudimentar com a ponta da faca de Magno, suas mãos pequenas se movendo com uma destreza surpreendente.

    Um clique. A primeira corrente caiu. Um grito de alegria veio das crianças. Neo se moveu para a próxima, e para a próxima, o som de cada elo caindo no chão era uma nota na sinfonia da esperança.

    No momento em que a última corrente se soltou, um coro eufórico e aliviado tomou conta do lugar.

    Lágrimas de alegria escorrendo livremente pelo rosto de Magno, agarrado às grades com um sorriso estampado no rosto.

    E então, rompendo com o clima de alegria,u m som pesado e rangente ecoou pela câmara. A fresta de pedra pela qual Neo havia passado se fechou com um baque surdo, selando a passagem.

    Magno correu até lá, os olhos arregalados.

    — Não, não, não não não- PORRA! — Ele grunhiu tentando forçar a abertura.

    As crianças correram para lá, tentando ajudá-lo pelo lado de dentro.

    Hermes se aproximou e tentou ajudar, rangendo os dentes.

    Foi neste momento de vulnerabilidade, de um reencontro desesperado, que uma nova voz cortou o ar, não com surpresa, mas com um deleite teatral.

    — Magnífico! Simplesmente magnífico!

    A voz era calma, quase divertida, e carregada de uma autoridade que congelou o sangue de todos. Do fundo da câmara, emergindo de trás de um trono de obsidiana, Kyros, o Arconte de Therma, caminhou em direção a eles. Ele não estava furioso. Estava radiante, aplaudindo lentamente, como um dramaturgo satisfeito com a performance de seus atores.

    — O reencontro do pai com seus filhos perdidos… o desespero, a esperança… que cena! Eu não poderia ter escrito melhor. — Ele parou, seus olhos passando por um Magno paralisado e um Neo aterrorizado, antes de finalmente se fixarem em Hermes. Um sorriso largo e genuinamente animado se espalhou por seu rosto. — E o convidado de honra! Finalmente. Estava me perguntando quando você chegaria. A peça não pode começar sem seu protagonista. Sejam bem-vindos ao meu santuário.

    …………

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