Índice de Capítulo

    Perspectiva de Mina Mei

    O sol já começava a mergulhar atrás das torres imponentes da academia quando deixei o prédio laranja. As sombras se alongavam no chão de pedra clara, enquanto o céu se transformava num gradiente vivo — tons de dourado se fundiam com laranjas suaves e um lilás profundo, como se o céu estivesse sangrando lentamente para a noite.

    Era bonito. Objetivamente belo.
    Mas… não me tocava em nada.

    Meus passos ecoavam baixos pelos corredores amplos, solitários, enquanto eu caminhava rumo ao dormitório. A brisa era leve, fria contra o calor do dia, mas não me despertava. Meus pensamentos ainda pesavam como âncoras presas ao fundo de mim mesma. Tudo o que tinha acontecido… tudo o que ainda estava por vir. Nada parecia ter chão sólido ultimamente.

    Foi no pátio de mármore entre os prédios que o destino cruzou seu olhar com o meu.

    Levi.

    Encostado de forma quase preguiçosa numa das colunas do hall central, braços cruzados sobre o peito, o uniforme um pouco desalinhado como sempre, mas havia algo nele diferente.
    A postura era séria. O olhar, frio. Quase calculado.
    Não era o mesmo Levi que sorria fácil nas mesas do refeitório, nem o mesmo que discutia bobagens com Ken no meio das aulas.

    Por instinto, desviei o olhar e continuei andando.

    Mas então, a voz dele me cortou o caminho.
    Clara, direta, impossível de ignorar.

    — Garota Mina. Tem um minutinho?

    Revirei os olhos, discretamente. Aquele “garota Mina” me irritava. Ele falava como se fosse um adulto falando com uma criança. Como se estivesse num pedestal invisível. Mas… não era hora de confrontos bobos. Não depois de tudo.

    Assenti, silenciosa, e segui seus passos. Ele já andava à frente, como se tivesse certeza de que eu o seguiria.

    Entramos no prédio vermelho.
    O setor dos veteranos.

    Meus pés hesitaram por um breve instante. Calouros raramente andavam por ali, e só a presença dele já dizia muito sobre sua influência. Ou talvez sobre a urgência do que ele queria mostrar.

    O corredor era silencioso, revestido por vitrais e detalhes em madeira polida.
    Depois de alguns metros, Levi parou diante de uma porta dupla, escura, entalhada com detalhes antigos.
    Ele empurrou uma das folhas, e a sala se revelou diante de nós.

    Ampla. Iluminada por uma luz amarelada que entrava pelos vitrais, tingindo tudo com um brilho quente e solene. E ali dentro, estavam duas figuras conhecidas.

    Shin. Holi.

    Shin estava de pé, recostado numa cadeira de madeira, braços cruzados, o cenho franzido. O olhar firme, mas com uma tensão evidente no maxilar.
    Já Holi estava sentada, um pouco curvada sobre si mesma, os dedos entrelaçados no colo como quem tentava esconder nervosismo. Suas bochechas estavam rosadas, e o olhar parecia sempre fugidio, como se temesse algo invisível.

    Levi avançou até o centro da sala.
    Sua presença preencheu o ambiente, e quando falou, sua voz soou como uma convocação.

    — Chamei vocês aqui porque todos vocês, de alguma forma, eram próximos do Garoto Orquídea.

    Meu olhar se estreitou. Eu não sabia exatamente o que ele pretendia, mas a forma como disse “Garoto Orquídea” me incomodou. Quase como se estivesse nomeando uma figura mítica, não uma pessoa real.

    — Seria um desrespeito — continuou ele, os olhos passando por cada um de nós — seguir em frente como se nada tivesse acontecido.

    Cruzei os braços, firme.
    Era meu costume. Não deixar que ninguém me visse vacilar. Especialmente pessoas que usavam meu nome como se estivessem dando ordens.

    Levi, no entanto, não recuou nem um pouco.

    — Sabemos que o Ken não morreu.
    — Ele foi levado para as camadas positivas.
    — Não sabemos como, nem por quê… Mas temos certeza: houve um motivo. Um grande motivo.
    — E mesmo o conhecendo por apenas três meses… — sua voz baixou um tom, ficando mais íntima — eu o considero um amigo. Quase como um irmão mais novo.

    Um silêncio pesado caiu.

    Holi, com a voz quase inaudível, murmurou:

    — Eu… ele é um grande amigo pra mim…

    Levi virou o rosto em sua direção. Um movimento rápido, sutil.
    Mas havia algo naquele olhar.
    Algo que não combinava com empatia.

    Desconfiança.

    Shin então se adiantou, sua voz cortando o ar com firmeza.

    — Ken foi — e ainda é — um amigo precioso pra mim.
    — Desde o primeiro dia… eu soube que podia confiar nele.

    Fechei os olhos por um instante.
    Respirei fundo.
    E então, meio envergonhada, disse com honestidade:

    — Eu… eu o respeito.
    — E quero estar ao lado dele.

    Minhas palavras ecoaram mais do que eu esperava.
    Holi desviou os olhos.
    Não pude evitar sentir um incômodo. Ela sempre parecia próxima demais do Ken, e mesmo sem querer admitir, aquilo me mexia por dentro.

    Foi então que Levi se moveu.

    Deu alguns passos, parando ao lado de Holi, e se inclinou levemente, com um olhar sério.
    Seu tom agora era mais frio, cortante.

    — E é por isso que chamei vocês.
    — Porque, mesmo que o Ken tenha desaparecido sem nos dizer uma única palavra… precisamos encontrá-lo.

    Holi levantou os olhos, assustada.

    — E para isso — Levi continuou, seus olhos dourados fixos nela — preciso da sua ajuda, Holi.

    Ela recuou levemente, as mãos se apertando no colo.

    — A-ajuda…? Como assim…? O que eu poderia fazer…?

    Foi aí que tudo mudou.

    Levi estreitou os olhos, a voz carregada de algo mais sombrio.

    — Pode começar… nos dizendo a verdade.
    — Filha do Rei do Palácio Rubi.

    O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.

    A atmosfera da sala se tornou mais densa, como se o ar tivesse sido substituído por chumbo.
    Holi arregalou os olhos, surpresa e… medo.
    Era como se alguém tivesse puxado o tapete sob os nossos pés.
    Como se, de repente, estivéssemos todos em queda livre.

    E eu finalmente entendi.
    Aquilo não era só sobre amizade.
    Não era só sobre saudade.

    Era sobre segredos.
    Sobre mentiras.
    E sobre o que estamos dispostos a fazer…
    para encontrar alguém que deixou de ser só nosso.

    O silêncio que seguiu foi como um soco no estômago.

    Holi congelou no lugar.

    Por um instante, foi como se todo o ar da sala tivesse sido sugado. A garota tímida de olhos doces parecia ter evaporado.
    Seu olhar, antes suave e nervoso, ficou vazio — e então, cheio.
    Cheio de algo novo. Não… não novo.
    Escondido.

    O sorriso tímido escorregou do rosto dela como uma máscara quebrada.
    A postura encolhida se desfez, dando lugar a uma presença firme, imponente… quase aristocrática.

    Ela ergueu o rosto devagar, sem pressa, encarando Levi com um olhar direto, frio, calculado.
    Havia algo naquilo que fazia a pele arrepiar. Raiva. Desprezo.
    Mas não um desprezo impulsivo — era contido, elegante… perigoso.

    Shin ficou boquiaberto. Eu também.

    Filha do rei do Palácio Rubi…?
    Um dos Três Palácios Reais…?
    Como assim…?

    Holi finalmente sorriu.
    Mas não era mais o sorriso nervoso e acanhado de antes.
    Era um sorriso torto, quase doce demais, afiado como vidro.

    — Inacreditável que você saiba disso, Levi Gressi… — disse com uma voz agora firme, limpa de qualquer hesitação.

    Levi cruzou os braços com a naturalidade de quem já previa cada passo.

    — Desde o dia em que vi você mudando de expressão… saindo do meu quarto.
    — Você estava sozinha com o Ken.
    — E por um segundo… você deixou a máscara cair.
    — Foi o suficiente pra eu perceber que aquela sua “fofura” toda era só encenação.

    Minha respiração travou.

    Sozinha com o Ken…?
    No quarto…?

    Um calor estranho subiu pelo meu pescoço.
    Eu não sabia o que aquilo significava, mas o desconforto bateu forte.

    Holi suspirou, e sua expressão se desfez num tédio teatral.
    Ela descruzou os braços e estalou os ombros como se estivesse finalmente se libertando de uma roupa apertada demais.

    — Que peninha… — disse, numa entonação quase infantil. — Achei que essa minha versão fofa fosse durar mais um pouco.

    Shin avançou um passo. A voz dele veio carregada de choque e dúvida.

    — Você… o que tá fazendo aqui, numa academia da camada 4?
    — Se é mesmo filha do rei do Palácio Rubi… por quê?

    As palavras dele cortaram o ar como facas. E ecoaram dentro de mim também.
    A pergunta fazia sentido.
    Se Holi era mesmo quem Levi dizia… o que ela estava fazendo aqui embaixo? Com a gente?

    Holi deu um sorrisinho cansado. Depois, falou num tom quase entediado, mas sincero:

    — Porque eu seria a próxima herdeira do Palácio Rubi.
    — E isso… é uma coisa que eu nunca quis ser.
    — Sou a mais velha entre meus irmãos. A única filha legítima. Os outros? Filhos de sangue impuro.
    — Ou seja… tecnicamente, sou a única herdeira direta.
    — Mas reinar…? Governar…? Aff… soa tão chato.

    Ela parecia reclamar de um uniforme feio ou de uma aula obrigatória.
    Mas havia um peso por trás das palavras — uma exaustão antiga, contida demais pra ser casual.

    Levi assentiu levemente.

    — Depois daquela mudança no seu olhar, comecei a investigar.
    — Com o avanço das redes globais, não é difícil cruzar dados de linhagem, nome, ranking…
    — E entre os registros reais do Palácio Rubi… todos os membros legítimos possuem cabelos cor-de-rosa.
    — Como os seus.

    Ele começou a andar pela sala, as mãos para trás, o tom cada vez mais calmo — como um detetive prestes a expor a última peça do quebra-cabeça.

    — Mas não era só isso.
    — Você se apresentou como Holi Rasca.
    — Só que seu nome verdadeiro é Holi Rubri.
    — Nos registros oficiais do ranking mundial, seu nome aparece na posição 102.900.
    E curiosamente… esse mesmo número aparece vinculado ao nome de um servo da minha família.

    Holi soltou um suspiro teatral, cruzando os braços como quem se entrega depois de uma peça de teatro mal encenada.

    — Tá bom… tá bom… você me pegou.
    — Nunca fui boa em criar nomes mesmo.

    A leveza no tom era tão desconcertante quanto um tapa leve no rosto.
    A frieza… era de alguém que já estava acostumada a esconder quem era.

    Eu continuei em silêncio, tentando absorver tudo.
    Mas pra mim, Holi ser filha do rei ou uma estudante comum… dava quase na mesma.

    O que eu realmente queria saber… era o que ela tinha com o Ken.
    E se ela… gostava dele. Do mesmo jeito que eu gostava.

    Holi levou uma mão delicadamente ao peito e falou num tom mais suave, quase frágil:

    — A verdade é… o Ken foi a primeira pessoa com quem eu quase mostrei minha verdadeira personalidade.
    — Desde pequena, fui moldada pra ser perfeita. Uma governante fria, precisa… invencível.
    — Mas eu nunca gostei disso.
    — Então… comecei a observar os outros. Estudar.
    Copiar.
    Imitar expressões, vozes, posturas.
    — Criei versões de mim mesma baseadas nas pessoas ao meu redor.

    Ela abaixou o olhar. Por um momento, o peso da máscara quebrada era visível nos ombros dela.

    E eu entendi.
    De um jeito doloroso… eu entendi.

    Ela também era uma garota presa em expectativas que nunca pediu.

    Holi ergueu os olhos, agora mais calmos.

    — Eu gosto do Ken.
    — Mas não romanticamente.
    — Ele é um amigo precioso. A única pessoa com quem eu quase fui… eu mesma.
    — Por isso… por ele…
    — Estou disposta a aceitar meu papel.
    — A subir… e me tornar a próxima governante do Palácio Rubi.

    Levi sorriu com os olhos brilhando, como quem vê uma jogada perfeita se completando.

    Ele abriu os braços, como um anfitrião dando boas-vindas a uma aliada poderosa:

    — Isso é o que eu chamo de extravagância…
    — Garota Holi — ou melhor, senhorita Rubri.
    — Com sua influência, poderemos ser nomeados como membros do exército real.
    — E com isso… teremos acesso às camadas superiores.
    — Poderemos encontrar o Ken.

    Holi cruzou os braços, pensativa. O olhar dela agora era o de alguém acostumada a decisões importantes.

    — Era mais ou menos isso que eu estava pensando também.

    Naquele instante, um sorriso escapou dos meus lábios.
    Foi impossível conter.
    Ela… só gostava dele como amiga.

    O alívio foi como um vento fresco em dia abafado.

    Ao meu lado, Shin também sorriu. Pela primeira vez naquela noite, o peso parecia mais leve.
    Algo entre nós… finalmente começava a mudar.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota