Capítulo 28: O preparo para o futuro
As palavras ainda estavam suspensas no ar quando uma nova voz cortou o silêncio da sala — fria, afiada e certeira como o som de uma lâmina desembainhada.
— Finalmente encontrei vocês.
Nos viramos quase em sincronia.
Rico Zyx estava ali.
Caminhava pela entrada com passos lentos e controlados, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, como se o tempo não o tocasse. Os olhos, geralmente tomados por uma fúria latente, estavam calmos. Seria quase reconfortante… não fosse a tensão contida em cada músculo do seu corpo.
Quando chegou mais perto, parou diante de mim. E, para minha surpresa, curvou-se levemente. Um gesto que eu jamais esperaria dele.
— Primeiramente… — ele começou, a voz grave, mas sincera — quero pedir desculpas.
O mundo pareceu congelar por um instante.
— Por ter espancado o Ken aquele dia.
Minha respiração ficou presa na garganta.
Mas eu sabia. Aquilo… não era pra mim. Aquelas palavras pertenciam a alguém que não estava ali.
Antes que qualquer um conseguisse reagir, duas presenças invadiram a sala como uma onda de pressão invisível.
Sevira e Nevara.
Duas das lendárias Glaciais — veteranas da academia, figuras quase míticas, conhecidas tanto por sua força quanto por suas personalidades extremas. Onde elas estavam, o clima mudava.
Sevira foi a primeira a entrar. Sorriso debochado no canto dos lábios, os braços cruzados com aquele ar de superioridade entediada, como se estivesse prestes a adormecer de tédio por causa da nossa “lentidão mental”.
— Então… vocês vão atrás do Ken, né?
Seus olhos passearam por cada um de nós, avaliando, provocando. E então ela riu, com um brilho impaciente nos olhos.
— Nós também vamos.
— Treinamos ele por uma semana inteira. E ele me divertiu — acrescentou, girando uma mecha do cabelo entre os dedos. — Então, sim… eu vou subir por ele.
Nevara surgiu logo atrás, a antítese perfeita. Fria, elegante, com a expressão impassível como uma nevasca silenciosa. Mas sua presença era tão imponente quanto a de Sevira — ou até mais.
— Ele é nosso irmãozinho agora. — Sua voz era baixa, suave, e ainda assim inegavelmente firme. — Vamos até ele. Custe o que custar.
Rico finalmente relaxou os ombros. Um sorriso discreto surgiu no canto dos lábios, como se finalmente uma parte do peso que carregava tivesse se dissipado.
— Por isso… — ele disse, fitando-nos com intensidade renovada — antes da formatura, nós, veteranos, vamos treinar vocês. Preparar cada um para o que os espera lá em cima.
Senti um arrepio percorrer minha espinha.
Era real.
Tudo isso estava realmente acontecendo.
Mas… o que veio a seguir ainda me tiraria o chão.
A porta se abriu mais uma vez.
E então… ela apareceu.
Kaira Misticia Ilyssan.
O nome por si só já bastava para silenciar corredores inteiros. A aluna mais poderosa do quarto ano. A mais temida. A mais respeitada. Sua presença fazia o ar pesar, como se os próprios átomos ao redor dela se curvassem.
Os outros veteranos endireitaram a postura ao vê-la, alguns desviando o olhar, outros reverenciando em silêncio.
Ela caminhou com elegância, e então, seus olhos se encontraram com os meus.
— Mina Mei, certo?
Meu coração tropeçou. Um calafrio correu pela minha nuca.
— V-você me conhece?
Ela assentiu lentamente, a intensidade de seu olhar queimando como brasas geladas.
— Talvez você não se lembre de mim. Mas sou do mesmo clã que você.
Antes que eu pudesse processar a informação, Kaira deu um passo à frente. Com a mão no peito, fez um gesto respeitoso — o sinal tradicional entre membros de nosso clã.
— E eu… pessoalmente, quero te treinar.
Foi como se o chão tivesse sumido por um instante sob meus pés.
A mais forte… queria me treinar?
Meus joelhos vacilaram. A cabeça girava.
Tudo estava se movendo rápido demais, e ao mesmo tempo… cada segundo parecia eterno.
Mas, mesmo com o coração acelerado, mesmo com a mente em turbilhão… havia uma certeza que agora crescia dentro de mim como uma chama recém-acesa.
Eu ainda estava longe de reencontrar o Ken.
Longe de alcançar as camadas superiores.
Longe da verdade.
Mas agora…
Eu não estava mais sozinha.
E isso mudava tudo.
Eu sabia.
Algo grandioso estava por vir.
E, pela primeira vez, eu me sentia pronta para encarar.
Perspectiva de Rina Ebony
A penumbra daquela sala parecia engolir tudo — sons, cores, sentimentos.
As paredes escuras, cobertas por painéis de madeira polida e adornos dourados, refletiam um gosto refinado demais para ser sincero. Havia quadros que jamais vi serem admirados, livros cujas lombadas pareciam intactas, e uma lareira acesa mesmo sem frio. Tudo naquela sala gritava poder… mas sussurrava medo.
Eu entrei com passos lentos, firmes, e me joguei com certo desdém na poltrona diante da escrivaninha central.
Cruzei as pernas, estiquei os braços, e deixei escapar um suspiro entediado.
— Essa sala continua horrível, Marion… — comentei, ajeitando os cabelos para trás do ombro. — Escura, sufocante… igual a você.
Do outro lado, sentado como se fosse dono do mundo, Marion sorriu.
Aquele sorrisinho.
Aquele maldito sorrisinho educado e falso, o tipo que você vê em gente que vende a alma por influência — e depois mente dizendo que foi por necessidade.
— Esse desastre todo foi uma infelicidade, Rina. — disse ele, com a voz melíflua, como se estivesse ensaiando uma peça. — Agora que o Ken se foi… o que pretende fazer?
Inclinei levemente a cabeça para o lado, observando-o com um olhar vazio, quase tedioso.
— Bem… não saiu exatamente como Don Verk queria. — meus dedos tamborilaram no braço da poltrona. — Mas o Ken foi levado pra cima. Como aquele maldito previu.
— E como esperado… ele fez amigos. Amigos fortes demais para esse mundo podre aqui de baixo.
Marion soltou uma risadinha — curta, nervosa, com um leve tremor disfarçado.
— Don Verk é um homem… extremamente esperto. — Ele fez uma pausa curta, como se medisse cada palavra. — Ele sabia que isso ia acontecer.
— Sabia que os palácios iriam descobrir sobre o garoto desde o primeiro dia de aula.
Ele abaixou o olhar por um instante, e o sorriso sumiu.
— Eu… preciso parar de fazer as vontades dele. Uma hora vou acabar morto.
Foi nesse instante que o ar na sala pareceu mudar.
Sutilmente. Perigosamente.
O silêncio se alongou, denso.
E então, Marion levou a mão ao rosto.
Com um movimento lento e quase cerimonial, retirou a lente de contato do olho esquerdo.
Debaixo dela, um brilho anormal pulsava — esmeralda, vivo, quase radioativo. Um verde que não parecia natural. Um verde que carregava maldição.
O corpo de Marion começou a se distorcer, como um reflexo numa água agitada. As linhas do rosto se suavizaram. Os ombros afinaram. Os ossos estalaram de maneira discreta, mas audível. Uma metamorfose silenciosa.
Em segundos, ele não era mais ele.
Diante de mim estava uma mulher.
Alta, elegante, envolta num manto branco com finas linhas douradas que serpenteavam como circuitos antigos. Seus cabelos longos e loiros desciam como seda até a cintura. Os olhos… ah, os olhos. Dourados. E no centro de cada íris, uma estrela de sete pontas brilhava, imóvel, hipnótica.
Quando falou, sua voz era doce — quase gentil. Mas por trás de cada sílaba havia arrogância, veneno, e certeza.
— Desde o dia em que comecei a manipular tudo para Don Verk, venho me colocando em risco.
— Principalmente depois daquela conversa com o Rei do Palácio Esmeralda…
Aquela forma…
Aquela presença…
Era impossível olhar para ela e não se sentir inferior. Como se tudo em seu ser gritasse: “Eu sou mais do que você jamais será.”
Os Olhos do Pecado.
Nada é seu. Mas você pode ser tudo.
O Olho da Inveja.
O dom de usurpar rostos, vozes, memórias. Marion — ou o que quer que ela fosse — podia roubar aparências, copiar habilidades, infiltrar-se em qualquer lugar sem levantar suspeitas. Era uma entidade moldável, intocável, impossível de confiar.
E justamente por isso… era perfeita para o jogo sujo que jogávamos.
A transformação cessou com um sopro leve no ar. A mulher se desfez como fumaça, e Marion Luipin retornou.
Seu rosto recuperou a forma original — cabelo dividido, um olho ciano, o outro ainda brilhando com um tom verde inquietante. Ele limpou discretamente o suor da testa, ofegando levemente.
Transfigurações sempre cobravam um preço.
Ele respirou fundo, recompôs o terno, e me olhou diretamente nos olhos.
— Rina… — disse, com uma seriedade crua. — Eu vou sair da academia.
— Cansei de atuar dos bastidores. Quero acompanhar pessoalmente o que acontecer nas camadas superiores.
— Preciso que, no seu último ano… você continue sendo meus olhos aqui embaixo. Minha espiã.
Eu fechei os olhos por um momento, deixando o silêncio pesar.
Essa era a parte do jogo em que a peça tenta lembrar quem está realmente no tabuleiro.
Mas eu já sabia.
Eu sabia que Marion era mais que um espião, mais que um manipulador. Ele era uma anomalia, uma ruptura viva na ordem do sistema de Ranks.
E eu, por mais que me fingisse de indiferente… também era parte disso.
— Marion… — abri os olhos lentamente, fitando-o com um meio sorriso. — Você sabe que eu vou continuar. Não por você. Nem pelo Don.
— Mas porque, no fim das contas… esse mundo não merece ser como é. E se eu puder enfiar uma faca na base dele…
— Então vou afiar a lâmina com o meu próprio sangue, se for preciso.
Ele sorriu, desta vez com menos falsidade.
— Isso é o que eu gosto em você, Rina.
— Sempre teve veneno nas palavras… e coragem nos atos.
Nos encaramos por alguns segundos, como dois jogadores prestes a mover suas peças finais.
No fundo, sabíamos que estávamos dançando numa corda bamba. E mais cedo ou mais tarde… alguém iria cair.
Mas não hoje.
Hoje, ainda estávamos no controle.
Por enquanto.

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