Capítulo 18: Caminho da Lua
Nos sonhos, as verdades que negamos encontram a Voz.
Era assim que Jasper se sentia naquele mundo entre o sono e o despertar, onde o tempo deixava de existir, libertando-o, ainda que por um instante, do tormento ininterrupto da realidade.
Caminhava por um enorme campo verde. Em outro momento, veria aquele lugar como o local de caça perfeito, onde poderia se movimentar atrás de suas presas sem limitações.
Mas agora não sentia a necessidade quase compulsiva por alimento, nascida da escassez, apenas a calmaria que vinha do fundo de seu ser.
Ao longe, algo interrompia a monotonia do verde: uma sombra imponente recortava o horizonte.
Seu destino.
Uma árvore colossal erguia-se diante dele. O tronco era espesso, coberto por musgos que cintilavam sob a luz branda, que não vinha de sol algum. Sob sua copa vasta, o ar parecia mais denso, e o silêncio, mais profundo.
Ali, sentada sobre a grama, estava uma mulher. Seus cabelos prateados se derramavam pelo chão como um rio de luz, e o vestido que usava, da mesma cor etérea, exibia delicados veios dourados que se espalhavam como pequenas raízes, fundindo-se ao solo.
Jasper aproximou-se em silêncio, os pés afundando levemente na relva úmida. Finalmente, sentiu o peso da própria armadura: o aço escuro coberto por fendas e cicatrizes, o elmo curvado que ocultava o rosto.
Mesmo ali, distante de tudo, não conseguia fugir da máscara que usava para sobreviver: a mancha, o espectro, o fantasma — o Vulto Negro.
Num gesto quase involuntário, o garoto sentou-se ao lado da mulher misteriosa, o metal frio de sua couraça contrastando com o calor suave que emanava dela.
— Me diga… por que, entre todos nós, eu fui o escolhido? Apenas por ter sido o único a sobreviver? — As palavras vieram sem que ele mesmo soubesse o que significavam.
A moça não respondeu de imediato; ainda assim, um leve sorriso curvou seus lábios, tranquilo, quase imperceptível, como se já esperasse que aquela pergunta viria.
— Às vezes, sobreviver é a forma mais cruel de ser escolhido — murmurou, o eco da Voz balançando as folhas da árvore centenária.
Ela estendeu a mão, tocando o elmo de Jasper com os dedos finos e luminosos. Antes que ele pudesse reagir, puxou-o suavemente, guiando sua cabeça até o colo.
Jasper fechou os olhos. Permitiu-se, por um instante raro e perigoso, sentir a paz que lhe era oferecida, sem saber se a merecia, ou se aquilo era real.
Enquanto massageava suavemente as mechas azuladas de cabelo do menino, que escapavam pelas rachaduras do elmo, a mulher segurava, na outra mão, um item que agora pertencia a Jasper.
O colar, onde uma pequena cruz de prata pendia, brilhou entre os dedos da mulher. Com um movimento sutil, ela o colocou em volta do pescoço do garoto.
— Você não é especial apenas por ter sido o único que resistiu… mas por ser o único que continuaria, mesmo diante de todas as adversidades. E eu acredito que você possa mudar as coisas. — Sua voz soava distante. — Agora, está na hora de despertar, Astra…
As folhas da árvore brilharam como estrelas, e a cruz sobre o peito de Jasper pulsou, viva, como se o chamasse de volta à realidade. Seu corpo tornava-se translúcido; partículas se desprendiam dele, flutuando ao redor da mulher.
Porém acima deles, entre os galhos retorcidos da árvore colossal, algo também observava.
Uma presença. Um resquício do mal que condenara o mundo.
A sombra se contorcia, uma massa viva de carne e Miasma, girando sobre si mesma numa simbiose macabra. Cada movimento vinha acompanhado de um som úmido e disforme.
Olhos se abriam e fechavam em seu interior, sem padrão, sem lógica. Sussurros distorcidos ecoavam, fragmentando o silêncio que restava: vozes demais para uma só garganta, intenções demais para um só ser.
A entidade grunhia, e o tronco da árvore cedeu sob seu peso invisível. A luz da cruz no peito de Jasper vacilou, ameaçada pela presença que devorava até o conceito de forma.
Antes de desaparecer por completo, o garoto pareceu sentir o olhar daquela coisa o seguindo.
Ao acordar, a primeira visão que teve foi o Caçador de Ossos o encarando com aquele enorme olho avermelhado.
Por reflexo, e talvez por um resquício do medo que trouxera do sonho, efetuou uma estocada com sua espada, imbuída em sua manipulação de vento, direto na pupila do companheiro.
A colisão foi desastrosa. A lâmina de ossos do garoto se esfarelou no instante em que entrou em contato com o olho brilhante do ciclope, que estalou como vidro se partindo.
— Argh! Seu filho da… tá ficando maluco, droga?! — esbravejou, dando um passo para trás e esfregando a córnea ferida. — Eu devia ter deixado você morrer naquele caldeirão de ferro derretido… mas agora você me paga!
— Espera! Foi um aciden—
O ar escapou de seus pulmões quando o Caçador acertou-o em cheio nas costelas, lançando-o rolando para longe.
Por que eu simplesmente não continuei dormindo…
Enquanto recuperava o fôlego, ouviu uma série de risadinhas familiares. Quando se reergueu, ainda atordoado, deparou-se com uma plateia de Coletores em volta deles.
— Fomos salvos mais uma vez… a gentileza do líder deste subsolo já está começando a me enjoar — resmungou o Caçador. — Bem, enquanto eu não souber como sair daqui, vou continuar com esses Bestiais.
— Você confia neles? — questionou Jasper, em tom de desconfiança. — Eles tentaram nos matar duas vezes, e nas duas escapamos por pouco.
Para Jasper, era quase impossível confiar naqueles pequenos diabretes que, ao mesmo tempo em que tentavam matá-lo, riam como se tudo fosse uma brincadeira.
O Caçador observou os Coletores, que terminavam de arrumar suas ferramentas de trabalho, rindo entre si, semelhantes a crianças exaustas.
Eles podiam ser trabalhosos quando se uniam ou empunhavam suas armas, mas bastava o ciclope ósseo levar tudo um pouco mais a sério para iniciar um massacre. Por isso, não os considerava um perigo real.
— Confiar? Nunca. E sobre noção… eu realmente pareço ter alguma? — respondeu sem rodeios. — Além disso, meus instintos estão me dizendo que há algo maior nos esperando, talvez um Bestial realmente poderoso.
Jasper poderia reclamar e discutir sobre o quão irracional aquela ideia era; no entanto, no fim, apenas se afastou em silêncio, com a mão sobre as costelas. Provavelmente havia trincado algumas, embora isso fosse irrelevante naquele momento.
Sentou-se na primeira rocha que encontrou e começou a observar o entorno, quieto e pensativo. O clima no subsolo era totalmente diferente do Deserto de Sonata: o ar era frio e úmido, carregado com o cheiro de terra molhada após a chuva.
Uma névoa esbranquiçada e tênue cobria o ambiente, impedindo uma visão ampla do terreno.
Quem era aquela mulher? Era a mesma voz que escutei quando estava prestes a sair do deserto? Por que o líder do subsolo está nos ajudando? E o que foi aquela sensação horripilante no final daquele sonho… ou pesadelo?
Eram perguntas demais e respostas de menos. Para a mente ainda em formação de Jasper, tudo aquilo apenas alimentava uma sensação crescente de incerteza.
Ao erguer os olhos, Jasper sabia que não veria o céu. Havia apenas uma imensidão de rochas mergulhadas na escuridão, sem estrelas, sem qualquer ponto de luz. Nada que pudesse guiá-lo. Nada do que ele mais precisava.
Então, sem aviso, a armadura do Vulto Negro reagiu por conta própria. O corpo de Jasper se moveu antes mesmo que sua mente acompanhasse, o braço ergueu-se lentamente, apontando para uma direção obscura à frente.
— Agh… era só o que me faltava agora… — murmurou, tentando resistir
.Mas, ao perceber para onde sua armadura o forçava a mirar, ele parou.
Isso é a lua!?
Levantou-se apressado, quase tropeçando nas próprias pernas, enquanto se aproximava para observar com mais clareza o astro suspenso no ar.
Pela distância, era difícil perceber seu brilho, e a névoa só piorava a visibilidade, mas o formato era quase idêntico ao de uma lua cheia.
A aparição daquela figura, a reação da armadura, tudo parecia chamá-lo para aquele lugar, como se fosse algo predestinado. No fim, tudo o que precisava era de um caminho certo para seguir, não importava qual fosse.
Rapidamente, retornou ao local onde havia se separado do Caçador de Ossos.
Sabia que havia se tornado muito dependente da ajuda dele para enfrentar novas ameaças que surgiam, mesmo que, no fundo, odiasse admitir sua própria fraqueza.
Ele estava sentado ao redor de uma fogueira improvisada, cozinhando uma espécie de sopa em uma panela de metal, feita pelos Coletores, que utilizavam pedaços de centopeias gigantes como ingredientes.
— Pensei que você já tivesse dado no pé depois daquelas birrinhas — disse o Caçador, o sorriso torto e zombeteiro surgindo como um lembrete.
Não houve resposta, apenas os passos do Vulto Negro se aproximando em silêncio, encarando o alimento à sua frente como se fosse um tesouro sagrado.
Que moleque esfomeado, nem sequer está me escutando.
O Caçador revirou o olho enquanto jogava uma tigela de ferro para Jasper, que a pegou sem dificuldades.
Ele a encheu de sopa até quase transbordar e, pela primeira vez em muito tempo, o Vulto Negro removeu o elmo.
Os longos cabelos azul-escuros de Jasper caíram em cascata sobre seus ombros, contrastando com a pele pálida, quase reluzente pela falta de exposição à luz solar.
Abaixo dos olhos, grandes olheiras denunciavam o cansaço constante, mas ele insistia em manter um semblante sério.
Por algum motivo, os Bestiais ao redor saltaram assustados ao verem a face de Jasper, que, mesmo marcada por traumas, se mantinha inocente em sua essência.
Mas, sem se importar com os olhares espantados, o garoto bebeu toda a tigela de sopa de uma só vez, repetindo o processo de enchê-la e esvaziá-la em um único gole.
— Ei, feioso, vê se deixa alguma coisa pra mim, seu fedelho abusado! — O Caçador também pegou um pouco de sopa. — Da próxima vez, avisa antes de matar todo mundo de susto.
Os Coletores observavam com cautela o Vulto Negro se empanturrando. Tudo nele causava uma repulsa instintiva; talvez fosse sua aparência, algo humano…
No fim, isso não importava. Eles haviam recebido um comando de seu mestre, Osíris: cuidar de Jasper até que ele estivesse pronto, e teriam que cumpri-lo.
A lua misteriosa do subsolo continuava a iluminar tudo com seu brilho espectral, aguardando, com paciência, a chegada do Vulto Negro.

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