Capítulo 46 | A Aberração de Eros (2)
— Diga-me, escravo… — Kyros disse, a voz baixa e íntima enquanto ele se aproximava um pouco mais das grades. — O que você sentiu quando encontrou aquela outra peça? A moeda de Gérion. Você sentiu o poder nela, não sentiu? O frio. A promessa. Você achou que era único?
O deus caído, alarmado, levou a mão ao pano em sua cintura, que era onde mantinha a moeda. Seu segredo mais profundo, a moeda de Tânatos que ele mantinha escondida, era conhecido por seu inimigo.
A teia da conspiração era muito mais vasta e intrincada do que ele imaginara e ele havia se emaranhado nela sem nem mesmo se dar conta.
Kyros suspirou para a reação de Hermes, pareceu decepcionado por não receber uma resposta. Ele se virou e caminhou de volta para o altar no centro da sala. As crianças se espremiam contra o canto da sala, chorosas e assustadas.
— Você carrega a Morte em seu bolso, Arauto. O Fim. Um poder útil, mas limitado. — Kyros ergueu a moeda, a luz carmesim banhando seu rosto com um brilho demoníaco. — Mas eu… eu seguro algo muito mais poderoso. Eu seguro o princípio de toda a vida. A força que move deuses e homens, que constrói e destrói impérios. Contemple… a Moeda de Eros.
A verdade, nua e monstruosa, finalmente se revelou para Hermes. Ele era a chave. A peça que faltava para o plano de poder de Kyros.
Foi nesse exato momento de revelação que um som de pedra se arrastando veio de uma passagem lateral escura, perto do altar. A luz fraca de um vaga-lume solitário emergiu, seguida pela figura exausta e ensanguentada de Teseu. Ele se apoiou na parede para não cair, a xiphos em sua mão, os olhos arregalados ao ver a cena: as crianças chorando, Hermes e Magno presos atrás das grades, e Kyros no centro de tudo, exultante, segurando a moeda pulsante.
Ele havia chegado. Tarde demais para o abrir das cortinas, mas bem a tempo para o ato final.
— Teseu! — o grito de Magno foi uma mistura de alívio e pavor.
Kyros se virou, e ao ver o recém-chegado, seu sorriso se alargou ainda mais. — Ah, o herói chega para a batalha final! Que clichê delicioso! Mas você está atrasado, garoto. A peça já está em seu clímax.
Com uma gargalhada que ecoou pela câmara, Kyros ergueu a Moeda de Eros. A luz carmesim pulsou violentamente, banhando a sala em um brilho doentio.
— Agora, meus pequenos… tornem-se um! Tornem-se o amor eterno que me dará o poder de um deus!

A frase dita por Kyros no tom de um cultista profano ecoou na mente de Teseu e causou um arrepio.
“Na-não me diga que-” Os olhos do pequeno herói se arregalaram, ele deu um passo à frente.
O grito agudo de Line foi o estopim. O pânico explodiu. As crianças, que antes estavam encolhidas, agora se debatiam, gritando em puro terror. Uma força invisível começou a puxá-las, arrastando-as pelo chão de mármore na direção do altar de pedra negra.
— NÃO! — Magno berrou.
Com um grito gutural, ele se enfiou entre as barras de ferro, esticando o braço até o limite, a junta de seu ombro quase se deslocando. Ele conseguiu. Seus dedos se fecharam em torno do pulso fino de uma das crianças.
O menino se virou, os olhos cheios de lágrimas e um terror que Magno jamais esqueceria. — Chefe! — ele chorou. A força da magia o puxava. A fita vermelha em sua cabeça balançava furiosamente com a magia.
— Neo! Segura firme! — Magno gritou desesperado tentando em vão se colocar ainda mais entre as grades de ferro.
Tudo estava acontecendo em instantes. Hermes, saindo de seu torpor, agiu. Com um rugido de fúria, ele começou a golpear a fechadura da grade com sua xiphos. CLANG! CLANG! CLANG! Faíscas voavam a cada impacto, o som do aço contra o ferro, um ritmo desesperado contra o coro da agonia infante.
Do outro lado da sala, Teseu, vendo o horror se desenrolar, reagiu por puro instinto. Com um grito que rasgou sua própria garganta, ele correu, não em direção a Kyros, mas em direção ao altar, o vórtex de energia carmesim para onde as crianças eram puxadas.
O vendaval de energia corrupta pareceu se esforçar para mantê-lo afastado, mas ele persistiu. Seu corpo doeu, seu peito o torturou com a dor de seus pulmões prestes a serem perfurados pelas costelas quebradas. Ele rangeu os dentes, se esforçando para correr lutando contra a resistência imposta a ele pelo blasfemo ritual. Seus olhos adquiriram um brilho verde, mais uma vez. O herói ergueu a espada e, com toda a força que seu corpo ferido possuía, a cravou na pedra do altar.
A energia verde de seu poder de campeão explodiu de seu corpo, uma onda de vida pura colidindo contra a maré de amor corrupto da moeda. As duas forças lutaram
O ritual vacilou. A atração violenta sobre as crianças diminuiu por uma fração de segundo.
O garoto gemeu, rangendo os dentes. Seus olhos brilharam demonstrando uma ferocidade que contrapunha a dor que esmagava seus órgãos.
“Eu-Kug- Preciso conseguir-” Ele fechou os olhos, a dor tomando conta de seu corpo e lutando contra a força de sua mente. A imagem das crianças em volta da fogueira apareciam em flashes. “Mesmo que eu tenha que morrer… Eu vou-”
Kyros, que observava com êxtase, viu a intervenção de Teseu e seu rosto se contorceu em fúria. — Não! Seu inseto!
Ondas da corrupta energia escarlate avançaram contra o rapaz, envolvendo seus braços. Ele gritou sentindo seus membros queimarem, mas não soltou a espada.
Kyros se aproximou da pedra do ritual com um ódio palpável, transfigurando sua raiva em poder. Ele ergueu a moeda e a apertou com raiva.
O herói forçou ainda mais seu aperto, e então, sentiu seus dedos se quebrarem em torno do cabo da espada. Seus olhos se abriram novamente em agonia. Um grito seco de dor ecoou na câmara.
O poder de Eros, concentrado por um artefato divino, era avassalador.
Com o afrouxamento da espada, o poder de Teseu foi repelido, arremessando-o para trás.
Magno sentiu seu corpo se pressionar contra as grades. A força de atração atingiu seu pico, a boca de Neo se abriu em desespero, os dedos de Magno vacilaram. Com um último olhar, Magno sentiu seu aperto ser forçado a se soltar.
Neo voou em um instante para o centro da sala.
E então, o ato final começou. Os corpos das crianças colidiram sobre o altar em uma sucessão de baques surdos e úmidos. O som de ossos se chocando e se quebrando ecoou pela câmara, um coro de estalos nauseantes abafado pelos últimos gritos desesperados das crianças. A carne se rasgou, os ossos se quebraram e se fundiram. Membros se entrelaçaram em ângulos impossíveis, rostos se deformaram e se uniram em uma tapeçaria grotesca de agonia. Era a obra de arte de um escultor demente.
CLANG CLANG CLANG CRACK
A xiphos de Hermes finalmente se partiu, mas a fechadura também. A porta de ferro se abriu com um rangido. Mas o desastre estava feito.
Quando Hermes e Magno finalmente chegaram ao altar, a transformação estava completa. Onde antes havia crianças, agora havia… aquilo. Uma montanha de carne pulsante e disforme, uma aberração de membros e torsos fundidos, com múltiplos olhos que se abriam e fechavam sem ver.
Magno caiu de joelhos. O som que saiu de sua boca não foi um grito, mas um lamento desesperado, o som de um coração implodindo. Ele olhou para aquela monstruosidade, procurando os rostos de Lino, de Elara, de Neo, e os encontrou, distorcidos, congelados em máscaras de terror eterno dentro da massa de carne.
Lágrimas caíram de seu olhar congelado, escorrendo pelas bochechas como sua sanidade.
Hermes encarou aquilo atônito, seus olhos não podiam conceber a monstruosidade que presenciava.
Do outro lado do salão, jogado contra uma pilastra, o pequeno Teseu se forçava a levantar chorando com a dor de seus dedos quebrados.
A aberração se ergueu lentamente do altar, seus múltiplos membros se arrastando no chão de mármore. Ela se virou, e de suas várias bocas fundidas, um coro de vozes infantis, dissonante e cheio de uma dor infinita, gemeu em uníssono, as palavras ecoando na câmara silenciosa.
— Dói… Dói… Dói…
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