Em meio à névoa do subsolo, Jasper e o Caçador de Ossos continuavam se alimentando para recuperar as forças.

    Mesmo que não fosse tão eficiente quanto consumir Miasma bruto para um Undead, ainda existiam traços de radiação naquilo; afinal, não havia nada neste mundo que não estivesse sob o efeito dessa energia mutante.

    Esse pequeno detalhe era o que permitia a Jasper continuar vivo mesmo após consumir comida radioativa, já que a concentração era muito menor do que a de um Núcleo Mutante.

    Porém, havia outra característica igualmente importante: o Miasma estava presente no ar, proporcionando uma absorção constante para os Undeads.

    Kaern, que havia passado várias horas nesse estado, estava prestes a voltar à ativa.

    Ao redor da fogueira, Jasper havia terminado de esvaziar a panela de sopa. Ainda sentia o estômago roncar, mas aquilo fora o suficiente para revitalizá-lo por enquanto.

    Quando sua percepção especial o alertou sobre algo se aproximando, ele virou o olhar na direção do pressentimento.

    Rastejando com suas inúmeras patinhas, a centopeia filhote aproximava-se do ciclope ósseo. Diferente do Bestial faminto por carne e sangue, agora ela parecia mais um animal retornando ao dono.

    — Huh? Eu já não te mandei pra longe, sua larvinha nojenta? — O olho vermelho do Caçador moveu-se para encarar a criatura.

    A criatura subiu pelo antebraço do Desperto, perfurando a pele avermelhada com menos profundidade do que da outra vez.

    A coloração escura de sua carapaça, aos poucos, clareava, assumindo um tom mais fosco e esbranquiçado, semelhante aos ossos do Caçador.

    — Parece que alguém encontrou sua zona de conforto… Bem, só não reclame quando eu te usar como ferramenta. — riu, ajustando as placas ósseas ao redor da criatura, moldando-a até que se tornasse um escudo natural perfeito.

    Observando a cena de perto, Jasper sentia-se cada vez mais intrigado com aqueles monstros. Antigamente, só os via como bestas irracionais; porém, todas as suas ações visavam apenas à sobrevivência, a qualquer custo.

    Olhando por esse lado, não eram muito diferentes do que ele próprio vinha fazendo durante todo esse tempo.

    Talvez continuar ao lado deles não fosse algo tão ruim… Caçador de Ossos, Kaern, os Coletores… até mesmo aquele abutre. No fim, eu só consegui sobreviver por causa da ajuda de cada um deles.

    — Espera… ah, droga, eu esqueci completamente do Kaern — lamentou, encarando a panela antes cheia, agora vazia. — Eu preciso parar de ser tão desesperado por comida…

    Um uivo feroz rompeu o silêncio de repente. Coletores foram arremessados como brinquedos, com cortes profundos de garras marcando suas carapaças.

    Kaern havia despertado, mas estava diferente. Os segmentos de sua couraça brilhavam em um tom avermelhado, indicando que se sentia ameaçado; porém, seus olhos carregavam uma fúria bestial.

    Sua mente estava confusa, principalmente por não encontrar seus companheiros de imediato.

    Além disso, algum tempo atrás, seu corpo também havia entrado em contato com a energia enlouquecedora do Núcleo Catalisador.

    Alguns dos Coletores que haviam recolocado as placas metálicas retiradas do lobo tentaram contê-lo, agarrando seus membros e até se lançando sobre ele, mas foi em vão.

    Kaern concentrou a energia em seu Núcleo Mutante e a liberou de forma explosiva. Um campo de força circular se expandiu ao seu redor, lançando os Bestiais para longe e despedaçando o chão sob seus pés.

    Antes que uma catástrofe maior começasse, Jasper e o Caçador de Ossos correram para intervir.

    — Tome cuidado. Ele não vai te reconhecer, mesmo que tente se comunicar — alertou o Caçador, posicionando-se à frente de Kaern, enquanto o Vulto Negro avançava pela lateral.

    Como previsto, o lobo metálico não poupou esforços para aniquilá-los.

    Diversas esferas de energia vermelha foram lançadas em sequência, cortando o ar como projéteis incandescentes.

    O Caçador ergueu o novo escudo, a única barreira capaz de suportar o impacto; qualquer uma de suas armas de ossos teria sido pulverizada no instante em que tocasse aquelas rajadas.

    Uma por uma, o Desperto rebateu as esferas com precisão avassaladora, redirecionando-as com movimentos quase imperceptíveis.

    Cada impacto no solo ou nas rochas gerava explosões violentas, abrindo crateras e espalhando faíscas de energia vermelha pelo ar.

    Os Coletores, incapazes de resistir à onda de calor e fragmentos, recuaram às pressas, buscando abrigo entre as ruínas.

    Durante esse breve intervalo, o Vulto Negro se moveu, um borrão entre as chamas, e alcançou o lobo metálico em questão de segundos.

    Me perdoe… mas tenho que fazer isso antes que você enlouqueça de vez! pensou, cerrando os dentes enquanto erguia o que restava de sua espada e mirava direto no olho de Kaern.

    No entanto, os instintos do lobo metálico estavam exponencialmente aguçados. Kaern abocanhou a lâmina de ossos, quase arrancando a mão de Jasper junto.

    Antes que o Vulto Negro pudesse recuar, o monstro girou o corpo e desferiu um golpe com as garras, rasgando o ar com um som agudo e ameaçador.

    — Impulso da Tempestade!

    Jasper não hesitou. Canalizou o máximo de vento possível ao redor de si, criando pressão à sua frente para que fosse lançado para trás o mais rápido possível, escapando por um triz de ser dilacerado.

    Pequenos vórtices cortantes residuais se formaram após a execução daquela técnica, causando dano, ainda que pequeno, em Kaern, que soltou um grunhido de desconforto.

    O ciclope ósseo arregalou o olho, surpreso, pois Kaern era, basicamente, um tanque de guerra em forma de lobo.

    Suas placas negras não se limitavam a absorver apenas os ataques radioativos de outros Undeads, mas também a energia cinética gerada pelos impactos.

    Entretanto, uma simples rajada de vento daquele garoto foi o suficiente para sobrepujar aquela habilidade monstruosa, isso só podia significar que os poderes do Vulto Negro vinha de uma energia diferente do Miasma.

    A sequência de ataques brutais do Desperto enfurecido parecia interminável. Jasper, forçando sua percepção especial para antecipar cada golpe, sentiu os sentidos se sobrecarregarem, um fio de sangue escorreu-lhe do nariz.

    Um mísero instante de distração bastou para quebrar sua previsão.

    A fera aproveitou o momento, carregando outra esfera de energia na boca, pronta para dispará-la a queima-roupa contra o menino.

    Por sorte, ou estratégia, o Caçador de Ossos laçou o pescoço de Kaern com uma corda feita de seus próprios tendões, elástica e resistente.

    Um puxão fez o corpo do lobo se envergar, e a energia destrutiva foi “vomitada” para o alto.

    A esfera luminescente subiu com violência, traçando um rastro de luz avermelhada que cortava a penumbra do subsolo como um cometa invertido.

    O teto tremeu ao ser atingido, e rochas do tamanho de casas despencaram, esmagando tudo o que estivesse abaixo.

    — Agora, caralho! Usa a lâmina de vento mais forte que conseguir! — rugiu o Caçador, cravando os pés no chão enquanto imobilizava o lobo metálico com toda a força que possuía, ainda assim longe de ser o bastante.

    Em meio à confusão de rugidos e pedras desmoronando, Jasper se via sem opções. Não podia executar o Corte da Ventania sem uma lâmina em mãos, precisava agir rápido, ou Kaern os despedaçaria.

    Foco…

    Concentrou-se em toda a extensão de seu Sentido do Vento, atraindo colunas de ar inteiras para as palmas das mãos. Fechou os punhos, comprimindo o ar até senti-lo vibrar sob a pele, e então liberou toda aquela massa atmosférica na direção do lobo metálico.

    A ventania carregava um brilho azulado intenso, pulsando com poder. Em um instante, dissipou toda a névoa ao redor, permitindo que o fraco luar do subsolo tomasse o lugar, iluminando as ruínas à sua volta.

    O golpe atingiu com tamanha potência que Kaern e o Caçador de Ossos foram lançados contra uma muralha de pedra. O som da rocha se partindo em pedaços ecoou pelo subsolo, encerrando o confronto com um impacto avassalador.

    O silêncio que se seguiu era opressor, pesado o bastante para esmagar qualquer alívio.

    Jasper se manteve imóvel, tomado pela incerteza, se ambos tivessem morrido por sua culpa, carregaria aquele arrependimento até o fim da vida.

    Finalmente, algo se moveu em meio à poeira densa

    Dois olhos vermelhos, ardendo em intenção assassina, emergiram da névoa, fixando-se por longos segundos no Vulto Negro. Então, subitamente, tornaram-se roxos — curiosos, inquisidores — e, logo depois, amarelos… quase alegres.

    Kaern emergiu num salto desajeitado, aterrissando sobre Jasper com o peso de uma armadura viva. A queda foi brusca, mas carregada de uma estranha animação, o lobo metálico o reencontrava, enfim.

    — Agh… finalmente você voltou ao normal. Que bom… — murmurou Jasper, ofegante, enquanto Kaern lambia seu rosto com entusiasmo.

    O Caçador surgiu logo atrás, com o semblante impassível de sempre, observando a cena com um desdém contido.

    É claro que esses dois já se tornaram amigos. Afinal, “o lobo é o melhor amigo do homem” pensou, enquanto massageava os músculos tensionados e recolhia alguns ossos esfarelados com os dedos.

    — Eu ainda não entendo… você disse que os Despertos mantinham a consciência plena, mas o Kaern de agora há pouco não parecia nem um pouco racional, igual àquelas centopeias da caverna — comentou, encarando o lobo metálico, que agora havia voltado ao seu comportamento amigável.

    Terminando de restaurar suas placas ósseas danificadas, o Caçador decidiu explicar, já que estava de bom humor.

    — Como tudo na vida, existem exceções. Mesmo quando nossos Núcleos Mutantes evoluem do nível Escuro dos Bestiais para o Vermelho, que nos concede consciência, ainda assim há casos em que os instintos voltam à tona, seja pela influência de um Núcleo Catalisador ou em situações de estresse.

    Os Coletores que haviam fugido da confusão começaram a retornar lentamente, atraídos pela calmaria repentina que dominava o local.

    — Esse estado, em que a natureza bestial assume o controle total, se chama Frenesi. — O olhar do Caçador tornou-se mais sombrio, como se o assunto não fosse de seu agrado, mas isso durou apenas por um breve momento.

    Entendi… não é muito diferente daquela vez em que perdi o controle por um instante…

    A ideia passou pela cabeça de Jasper.

    — Certo… mas pra que isso serve? Apenas para enlouquecer as pessoas? — perguntou, curioso e preocupado. — E por que estar em Frenesi parece ser algo tão bom?

    Lembrava-se muito bem daquela sensação perigosa, mas ao mesmo tempo revitalizante, como se, de repente, seu corpo transbordasse energia prestes a ser liberada de forma violenta.

    O Caçador riu ao ouvir aquilo, um riso genuíno de incredulidade.

    — Hahaha… você por acaso é idiota? O motivo é mais que óbvio: para ficar mais forte! Qualquer tipo de Undead, racional ou não, busca isso. Caçamos uns aos outros para evoluir com o Miasma roubado; cometemos crimes hediondos para conseguir recursos que, adivinha, nos tornam mais poderosos.

    — Isso é bem nojento. — afirmou Jasper, sem rodeios, enquanto se levantava do chão.

    O Caçador deu de ombros em concordância; ele não podia negar aquela verdade. Afinal, todos ali eram tanto vítimas quanto “adeptos” daquela filosofia amaldiçoada.

    Entre a multidão de Coletores que se aglomerava ao redor dos três, rindo após o novo espetáculo que presenciaram, um, em especial, correu na direção do Vulto Negro, mesmo que o rosto do garoto ainda o assustasse.

    Os olhos azuis profundos de Jasper encararam o pequeno Coletor de forma incisiva, até que ele notou o que o bestial carregava nas mãos.

    — O meu elmo…

    Jasper pegou o objeto com delicadeza, como se segurasse algo sagrado. Erguer o elmo diante de si fez com que fitasse o reflexo distorcido de seus próprios olhos.

    — Eu também busco ficar mais forte, mas nunca me tornarei um monstro por isso. — Encaixou o elmo sobre a cabeça, com um leve estalo metálico ecoando.

    A escuridão no interior o acolheu como um velho amigo. Quando os olhos voltaram a brilhar por entre as fendas, o azul profundo havia se transformado em um tom intenso, firme, inabalável.

    Estava na hora de seguir em frente pelo subsolo, em busca das respostas que o Ceifador tinha a revelar.

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