Capitulo 19: Frenesi
Em meio à névoa do subsolo, Jasper e o Caçador de Ossos continuavam se alimentando, um por necessidade, o outro por puro capricho, enquanto os Coletores trabalhavam no corpo inerte de Kaern, que permanecia descarregado.
A diferença entre ele e os outros era sua composição majoritariamente mecânica, o que impossibilitava uma regeneração celular eficiente como a do Caçador de Ossos. Assim, a única forma de reativá-lo era restaurando suas peças, por sorte, os Coletores ainda não haviam utilizado as partes que haviam arrancado dele.
Após soldarem todas as partes faltantes, os Bestiais riram animados. Agora, só precisavam esperar que Kaern absorvesse a radiação natural que permeava aquela Zona Selvagem, e então ele estaria novinho em folha.
Ao redor da fogueira, Jasper havia terminado de esvaziar a panela de sopa. Ainda sentia o estômago roncar, mas aquilo fora o suficiente para revitalizá-lo por enquanto. Quando sua percepção especial o alertou sobre algo se aproximando, ele olhou na direção do pressentimento.
Rastejando com suas inúmeras patas pequenas, a centopeia filhote se aproximava do ciclope ósseo. Jasper estava prestes a sacar sua espada, acreditando que ela pretendia atacá-lo às escondidas novamente, mas hesitou ao perceber que a criatura parecia mais calma, diferente de quando havia saído do Núcleo Catalisador.
— Huh? Eu já não te mandei pra longe, sua larvinha nojenta? — O olho vermelho do Caçador se moveu para encarar a criatura.
A criatura subiu pelo antebraço do Desperto, perfurando a pele avermelhada com menos profundidade do que da outra vez. A coloração escura de sua carapaça aos poucos clareava, assumindo um tom mais fosco e esbranquiçado, semelhante aos ossos do Caçador.
— Parece que alguém encontrou sua zona de conforto… Bem, só não reclame quando eu te usar como ferramenta. — Riu, ajustando suas placas ósseas ao redor da criatura, transformando-a em um escudo natural perfeito.
Observando a cena de perto, Jasper sentia-se cada vez mais intrigado com aqueles monstros. Antigamente, só os via como bestas irracionais sedentas por carne, porém, todas as suas ações visavam apenas a sobrevivência a qualquer custo. Olhando por esse lado, não era muito diferente do que ele próprio vinha fazendo durante todo esse tempo.
Talvez continuar ao lado deles não seja algo tão ruim… Caçador de Ossos, Kaern, os Coletores… até mesmo aquele abutre. No fim, eu só consegui sobreviver por causa da ajuda de cada um deles.
— Isso não dói? Tipo, ela vai estar te mordendo o tempo todo. — perguntou, vendo a tranquilidade do Caçador de Ossos mesmo naquela situação.
O ciclope ósseo assentiu em concordância.
— É, isso dói pra cacete… mas, sinceramente, depois de tudo que já passei, ferimentos, desgraça, dor de verdade, uma mordidinha dessas parece só uma picada de inseto.
Um clima pesado se instaurou entre os dois. Era muito mais do que um simples desconforto, era a sensação de familiaridade que ambos compartilhavam em relação ao sofrimento. Mesmo sem conhecerem o passado um do outro, a dor que carregavam moldava o presente de cada um.
O uivo feroz do lobo metálico rompeu o silêncio de repente. Coletores foram arremessados como brinquedos, com cortes profundos de garras marcando suas carapaças. Kaern entrou em um estado de intensa confusão, principalmente por não encontrar seus companheiros, o que fez sua fúria bestial vir à tona mais uma vez.
Alguns dos Coletores que ajudaram no conserto do Undead lupino tentaram contê-lo, segurando seus membros e até se jogando sobre ele, mas foi tudo em vão. Kaern concentrou energia em seu Núcleo Mutante e a liberou de forma explosiva, criando um campo de força ao seu redor que o libertou dos Bestiais.
Antes que uma catástrofe maior começasse, Jasper e o Caçador de Ossos correram para intervir.
— Tome cuidado. Ele não vai te reconhecer, mesmo que tente se comunicar — alertou, posicionando-se na frente de Kaern enquanto o Vulto Negro avançava pela lateral.
Assim como havia sido dito, o lobo metálico não poupou esforços para eliminar os dois, disparando diversas esferas de energia vermelha na direção do Caçador, que teve como única opção usar o novo escudo para se defender. Se utilizasse qualquer outra de suas armas de osso, tinha certeza de que seriam pulverizadas.
Uma por uma, o Desperto rebateu as esferas com precisão avassaladora, redirecionando cada uma para longe de si. Quando a energia tocava o solo ou as rochas, causava explosões tão poderosas que obrigaram os Coletores a se refugiarem à distância.
Durante esse curto intervalo, o Vulto Negro se moveu em alta velocidade, alcançando o lobo metálico em questão de segundos. Seu corpo podia não aceitar os Núcleos Mutantes, mas sempre que se alimentava de Undeads, seu processo de cura era acelerado ao extremo, e, por isso, sua perna, antes quebrada, agora estava em perfeito estado.
Aproveitando a distração, Jasper tentou um corte não letal, mirando a lateral do abdômen de Kaern. No entanto, os instintos do lobo metálico estavam exponencialmente aguçados naquele estado de fúria, ele esquivou-se da lâmina de ossos com facilidade e ainda contra-atacou com suas garras.
Usando seu Sentido do Vento, Jasper previu cada trajetória e padrão de ataque do Undead lupino, conseguindo desviar com maestria de todos os golpes.
Que estranho… os segmentos da couraça dele estão vermelhos, igual à primeira vez em que nos vimos. Mas agora parece diferente, ele está completamente irracional, até pior do que aquelas centopeias gigantes.
A sequência de ataques brutais do Desperto enfurecido parecia não ter fim. E, devido ao uso constante de sua percepção especial, Jasper começou a sentir seus sentidos se sobrecarregarem, o que resultou em um leve sangramento nasal.
Por um mísero instante, Jasper falhou em sua previsão, quase sendo abocanhado pela mandíbula metálica de Kaern. Mas, por sorte, ou estratégia, o Caçador de Ossos usou a última de suas cordas feitas de tendões para laçar o pescoço do Undead lupino e puxá-lo para longe.
O ciclope ósseo sabia que não podia desperdiçar aquela chance. Kaern era, basicamente, um tanque de guerra em forma de lobo, sua absorção não se limitava apenas aos ataques radioativos de outros Undeads, mas também à energia cinética gerada por impactos.
O único tipo de poder que seu companheiro não podia tomar para si — e que nenhum outro Undead conseguia suportar dentro de seus corpos — era a Mana.
— Agora, caralho! Usa a lâmina de vento mais forte que conseguir! — gritou, imobilizando o lobo metálico com toda a força que tinha, embora ainda não parecesse o bastante.
Jasper não hesitou. Canalizou o máximo de ar possível ao redor de sua lâmina de ossos, tudo o que precisava era de concentração. Mesmo que inconscientemente, manipulava a energia mágica dentro de seu corpo, utilizando a armadura do Vulto Negro como condutora.
A lâmina de vento gerada pelo movimento de Jasper era duas vezes maior do que o normal, irradiando um brilho azulado tão intenso que iluminou todo o ambiente. Em seu trajeto, varreu pequenas pedras e dissipou completamente a névoa ao redor. Ao atingir o alvo, a força foi tamanha que empurrou tanto Kaern quanto o Caçador de Ossos contra uma enorme rocha.
A tontura abalou o equilíbrio de Jasper, forçando-o a fincar a espada no chão para se apoiar. Toda vez que abusava da manipulação do vento, o resultado era o mesmo: exaustão e mal-estar.
Uma densa coluna de poeira se ergueu após o impacto brutal entre os dois Despertos. O silêncio que se seguiu era opressor, deixando Jasper inquieto. Ele havia confiado nas palavras do Caçador de Ossos, e, se por acaso ambos tivessem morrido, sabia que se arrependeria daquela decisão para o resto da vida.
Finalmente, algo se moveu. Dois olhos vermelhos, ardendo em intenção assassina, emergiram da poeira, fixando-se por longos segundos no Vulto Negro. Então, subitamente, tornaram-se roxos, curiosos, inquisidores, e logo depois, amarelos… quase alegres.
Kaern emergiu da poeira num salto desajeitado, aterrissando em cima de Jasper com o peso de uma armadura viva. A queda foi brusca, mas carregada de uma estranha alegria, o lobo metálico o reencontrava, enfim.
— Agh… finalmente você voltou ao normal. Que bom… — murmurou Jasper, ofegante, enquanto Kaern lambia seu rosto com entusiasmo.
O Caçador de Ossos surgiu logo atrás, com o semblante apático de sempre, observando a cena com desdém contido.
— Minhas costas estão me matando… — resmungou, enquanto massageava os músculos tensionados e recolhia alguns ossos esfarelados com os dedos.
— Eu ainda não entendo… você disse que Undeads Despertos mantinham a consciência plena, mas o Kaern de agora há pouco não parecia nem um pouco racional. — comentou, encarando o lobo metálico, que agora havia voltado ao seu comportamento amigável.
Terminando de restaurar suas placas ósseas danificadas, o Caçador decidiu explicar já que estava de bom humor.
— Como tudo na vida, existem exceções. Mesmo quando nossos Núcleos Mutantes evoluem do nível escuro dos Bestiais para o vermelho, que nos concede consciência, ainda assim, há casos em que os instintos voltam à tona. — disse ele, fazendo uma pausa enquanto amarrava sua corda de tendões, ignorando completamente a curiosidade crescente do Vulto Negro.
Os Coletores que haviam fugido da confusão começaram a retornar lentamente, atraídos pela calmaria repentina que dominava o local.
— Esse estado em que a natureza bestial assume o controle total se chama Frenesi. — explicou o Caçador de Ossos, sem tirar os olhos dos arredores. — Normalmente, os Bestiais são os mais afetados por isso. Mas quando um Desperto entra nesse estado, o aumento de poder é explosivo.
Entendi… não é muito diferente de quando eu perco o controle…
A ideia passou pela cabeça de Jasper.
O que diabos estou falando? Eu sou humano.
Ele afastou o pensamento imediatamente, como se jogasse algo perigoso no fundo da mente.Entre a multidão de Coletores que se aglomerava ao redor dos três, um em especial correu na direção do Vulto Negro, mesmo que o rosto do garoto ainda o assustasse.
Os olhos azuis profundos de Jasper encararam o pequeno Coletor de forma incisiva, até que ele notou o que o bestial carregava nas mãos.
— O meu elmo…
Jasper pegou o elmo do pequeno Coletor com delicadeza, como se segurasse algo sagrado. A carapaça negra polida ainda estava rachada na lateral, uma lembrança da última batalha, mesmo danificado, ali estava um símbolo, não só de sua identidade, mas de tudo que havia suportado até ali.
Kaern se aproximou silenciosamente, como se entendesse o peso do momento. O Caçador de Ossos apenas observava, de braços cruzados, a névoa ao redor começando a se dispersar com o vento seco.
— Nunca fui um herói… mas talvez eu consiga ser algo melhor que um monstro. — murmurou para si.
Com um único movimento, encaixou o elmo sobre a cabeça. Um leve estalo metálico ecoou.
A escuridão dentro do elmo o acolheu como um velho amigo. E quando os olhos voltaram a brilhar por entre as fendas, o azul profundo havia se transformado em um tom intenso, firme, inabalável.
Estava na hora de seguir em frente pelo subsolo, em busca das respostas que o Ceifador tinha a revelar.
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