Alguns dias após o confronto com Bruno, o grupo ainda estava abatido. Muitos ainda carregavam ferimentos dos golpes sofridos. O silêncio reinava na casa onde estavam, um lugar que encontraram próximo ao mercado, ainda mobiliado e com três quartos que os acomodavam melhor do que antes. No entanto, a falta de energia tornava as noites longas e escuras. A explosão da usina havia devastado grande parte da cidade, e poucos lugares ainda tinham eletricidade.

    No final da tarde, Samira observava o pôr do sol da janela, atenta ao movimento dos infectados na rua. Seu olhar estava perdido, mas sua mente revisitava, repetidamente, a imagem de seu irmão com aqueles olhos vermelhos. Ela não sabia o que sentir. Não sabia o que pensar. Mas, para não se afundar naquele turbilhão de emoções, tomou uma decisão: odiaria o próprio irmão pelo que ele havia se tornado. Estava decidida, mesmo sabendo que talvez fosse responsável por matá-lo.

    A partir dali, faria de tudo para se tornar independente do grupo. Treinaria até ser a melhor em exterminar qualquer infectado que cruzasse seu caminho. Sua determinação era tão intensa que algo dentro dela começou a mudar. Seus olhos, antes castanhos-escuros, começaram a assumir um tom avermelhado, com um leve branco ao redor da pupila. Era diferente da transformação que ocorrera com Bruno, mas ainda assim… uma mutação.

    No banheiro, João deixava a água quente escorrer pelo corpo, mas o calor não levava embora a sensação que o assombrava desde aquele dia. O medo. O medo absoluto que sentiu ao encarar os olhos de Bruno. Nunca temera aquele desgraçado, mas naquele momento, com um único olhar, sentiu o corpo congelar. Quanto mais fixava os olhos nos dele, mais o pavor se aprofundava, esmagando-o por dentro.

    Desde então, algo estava errado. Ele não parava de suar. E aquele corte na testa… Bruno o havia feito, mas quando acordou, não havia mais nada ali. Nenhuma cicatriz. Nenhum sinal.

    Só que seu corpo estava mudando. Ele sentia. Estava sempre quente, febril. E, aos poucos, começou a notar que estava perdendo peso. Algo estava acontecendo com ele. Algo que não sabia explicar.

    Na sala, cercado pelos demais, Anael se mantinha em silêncio, mas por dentro fervia. Ele já não suportava mais a sensação sufocante de impotência que o corroía desde aquela luta. A surra que levou de Bruno não foi apenas física — foi psicológica. Cada golpe recebido, cada tentativa frustrada de reagir… ele não conseguiu sequer levantar um dedo para se defender. Diante daqueles olhos vermelhos, sentiu-se pequeno. Fraco. Patético.

    Agora, essa fraqueza se transformava em ódio — um ódio dirigido a si mesmo. O desprezo que sentia por sua própria incapacidade o consumia, e a cada vez que fechava os olhos, revivia aquele momento de humilhação.

    Mas nem tudo eram lembranças ruins. No meio dessa turbulência, flashes do passado surgiam como lâminas cortantes. Ele se lembrava dos dias em que Bruno invadia sua casa sem aviso, acordando-o com um tapa doloroso na bunda e um grito debochado:

    — Acorda, inseto, seu vagabundo ordinário!                                      

    O riso estridente de Bruno ecoava em sua mente. Lembrava também de como o primo o sacaneava sem piedade toda vez que ele dizia algo sem pensar ou caía em uma pegadinha.

    Raziel e Arthur também se agarravam às boas memórias. Horas e horas jogando videogame juntos, discutindo, provocando um ao outro. Mas Bruno… Bruno era insuportável quando ganhava. Fazia questão de esfregar na cara deles cada vitória, como se aquilo fosse o maior troféu do mundo.

    Esses momentos pareciam tão distantes agora. Como se pertencessem a outra vida.

    Outro dia se passou.

    O clima dentro da casa continuava pesado, mas havia algo que precisavam resolver. Alonso, Daniel, Camille, Anael, João e Edvaldo decidiram que era hora de dar continuidade à reunião que haviam iniciado antes. Precisavam definir funções, reorganizar prioridades e, principalmente, decidir o que fariam dali para frente.

    Quando todos estavam reunidos, Reidner assumiu a palavra. Seus olhos percorreram o grupo, mas pousaram diretamente em Camille. Sua expressão era firme, carregada pelo peso das últimas perdas. Inspirou fundo antes de falar:

    — Sei que recentemente sofremos muitas perdas… Algumas delas ainda estão doendo como um corte aberto. Perdemos um dos nossos. Mas não podemos nos dar ao luxo de parar, principalmente agora que Bruno se tornou, de fato, mais um dos monstros que temos que enfrentar.

    O silêncio na sala era absoluto. Todos sabiam que ele estava certo.

    — O que eu quero dizer — continuou ele — é que precisamos encerrar imediatamente qualquer atrito interno e definir as posições e funções de cada um aqui. Se quisermos sobreviver, temos que agir como um grupo de verdade.

    Edvaldo levantou a mão, pedindo o direito de falar. Reidner o encarou por um instante e fez um gesto com a cabeça, permitindo que prosseguisse.

    — Eu entendi o que cê tá querendo fazer, mano, mas tem um detalhe aí que a gente precisa adicionar nessa porra — Edvaldo se ajeitou na cadeira, seu olhar carregado de urgência. — O que mais precisamos agora é deixar de ser esse grupinho pequeno e montar uma comunidade forte, resistente para aguentar esse fim de mundo.

    A sala permaneceu em silêncio por um momento. Edvaldo então completou, sua voz firme:

    — E, acima de tudo, precisamos de uma nova base. Um lugar murado. Seguro. Porque continuar assim… assim a gente tá só esperando pra morrer.

    Alonso olhou para Edvaldo, refletindo sobre o que ele acabara de dizer. A ideia de construir uma comunidade forte fazia sentido. Precisavam de um lugar seguro, um refúgio que os protegesse do caos lá fora. Então, sem pensar muito, ele soltou:

    — Sei de um lugar perfeito pra isso aqui no bairro!

    Havia um brilho de empolgação em sua voz, algo raro ultimamente.

    Reidner arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços.

    — Diz aí então, seu José.

    — A escola de baixo, onde o Jão estudava — respondeu Alonso de imediato. — O espaço lá é grande, tem muros altos e um portão enorme, dá até pra entrar com carros. Além disso, tem várias salas que a gente pode transformar em quartos e uma cozinha já equipada.

    O grupo ouviu em silêncio. Por um momento, pareceu uma ideia viável. Mas antes que João dissesse qualquer coisa — afinal, ele conhecia aquele lugar melhor do que ninguém —, Camille percebeu que ele estava distante, mergulhado em pensamentos.

    Ela então tomou a iniciativa.

    — A ideia seria muito boa… se o colégio não estivesse infestado de infectados.

    O silêncio se quebrou.

    — E eu sei disso porque, se não fosse o Bruno bolar um plano pra tirar a gente de lá, eu e o Jão estaríamos mortos… ou pior.

    O peso da lembrança pairou sobre a sala. Ninguém questionou. Ninguém duvidava.

    Foi quando uma voz fria e decidida cortou o momento.

    — Isso é o de menos.

    Todos viraram para a porta. Samira estava ali, seu olhar afiado como uma lâmina.

    Daniel franziu a testa.

    — Como assim, “o de menos”?

    Samira deu um passo à frente, encarando um por um, como se estivesse falando algo óbvio. Sua expressão era distante, calculista.

    — Se usarmos a cabeça, podemos matar todos eles sem correr o menor risco.

    O grupo permaneceu em silêncio, esperando que ela explicasse.

    — É simples — continuou. — A gente prepara algumas garrafas de vidro com álcool, faz coquetéis molotov e junta os infectados em um único ponto. Depois, tacamos fogo neles.

    Os olhares se voltaram para João, que finalmente saiu do transe e coçou os olhos cansados antes de acrescentar:

    — Pode dar muito certo. Se a gente atacar de cima dos telhados, estaremos seguros. E subir lá é fácil… eu mostro o caminho e a parte do muro que dá pra usar como acesso.

    A ideia parecia arriscada, mas fazia sentido. O plano era direto, funcional e, acima de tudo, possível.

    Um por um, todos começaram a concordar. Ao final da reunião, ficou decidido: ao amanhecer, colocariam o plano em ação.

    No dia seguinte, a escola deixaria de ser um ninho de infectados. E passaria a ser o primeiro passo para algo maior.

    O dia amanheceu, tingindo o céu de tons alaranjados e dissipando lentamente a escuridão que pairava sobre a cidade devastada. O cheiro de fumaça, mofo e podridão pairava no ar, lembrando a todos que o mundo como conheciam havia ruído.

    Todos já estavam de pé, cientes do que deveriam fazer ao sair dali.

    Na noite anterior, haviam estabelecido três equipes para manter a organização e aumentar suas chances de sobrevivência. Reidner e Alonso ficariam responsáveis pelos planejamentos futuros, criando estratégias para garantir suprimentos, fortalecer a segurança e encontrar possíveis aliados. João Paulo e Arthur formariam o grupo de busca; João, apesar de ser mais lento, conhecia as ruas como ninguém e sabia reconhecer padrões no comportamento dos infectados, enquanto Arthur, o mais rápido do grupo, era ágil o suficiente para escapar de situações complicadas e também um dos mais corajosos para enfrentar o perigo.

    Camille e Daniel ficariam encarregados do estoque, garantindo que os suprimentos fossem bem armazenados e distribuídos de maneira eficiente. Os demais se dividiriam entre esses pequenos grupos conforme a demanda, pelo menos até que o grupo aumentasse de tamanho e novas funções fossem necessárias.

    Já eram quase nove horas quando todos saíram para buscar os materiais necessários para preparar os coquetéis molotov. O clima estava abafado, e o ar carregava um silêncio inquietante. Apesar de não verem muitos infectados naquele horário, ninguém se permitiu relaxar. Cada esquina, cada sombra e cada porta entreaberta eram um convite para a paranoia.

    Movendo-se com rapidez, chegaram ao mercado localizado na mesma rua. O lugar já havia sido saqueado anteriormente, mas ainda encontraram flanelas e vinte garrafas de álcool 70 espalhadas entre as prateleiras reviradas. O cheiro de comida podre era quase insuportável, vindo de congeladores desligados e sacos de lixo estourados no chão. Insetos zuniam no ambiente abafado, aumentando a sensação de desconforto.

    Seguiram para um barzinho próximo, onde encontraram trinta garrafas de cerveja vazias. Algumas ainda tinham restos de bebida choca, e o cheiro azedo se misturava ao de cigarro velho e sujeira acumulada. Para completar o restante das garrafas, tiveram que vasculhar carros abandonados na rua, esvaziando os tanques de gasolina. O processo foi demorado, mas essencial.

    A organização foi impecável. Daniel e Edvaldo encontraram dois carros no estacionamento do mercado, com as chaves ainda no contato, um verdadeiro golpe de sorte. Enquanto isso, Arthur, Anael e Raziel carregavam os veículos com as garrafas, verificando se estavam bem fechadas para evitar acidentes. As meninas, por sua vez, prepararam lanches rápidos para a viagem, utilizando os poucos mantimentos que ainda tinham.

    Após algum tempo, estavam prontos para partir.

    O caminho até a escola parecia mais desolado do que o normal. Reidner observava o cenário ao redor, sentindo um incômodo crescente. Corpos mutilados jaziam pelo asfalto, alguns já em estado avançado de decomposição. Moscas rodeavam as carcaças inchadas, pousando sobre feridas expostas e bocas escancaradas em expressões congeladas de horror. Carros batidos obstruíam parte da rua, alguns com marcas de sangue seco nos vidros.

    Mas o que mais chamava atenção era a ausência de infectados.

    — É estranho… — murmurou Samira, olhando ao redor com uma expressão tensa. — Não tô vendo nenhum cachorro pelas ruas.

    O comentário fez o silêncio se tornar ainda mais opressor.

    — Talvez tenham sido comidos pelos infectados. — respondeu Anael, sem desviar os olhos das ruínas da cidade.

    Alicia, que não falava há um tempo, finalmente opinou:

    — Acho que não. Se tivessem sido pegos, veríamos corpos por aqui. O mais provável é que tenham fugido. Os infectados devem ter seguido para longe, e os animais perceberam antes da gente.

    A ideia de que os infectados estivessem migrando para algum lugar desconhecido deixou um gosto amargo na boca de Reidner. Para onde estavam indo? E por quê?

    Quando chegaram à escola, João Paulo foi direto ao ponto:

    — Vamos deixar os carros dentro do depósito. Nós subimos pela lateral, como fizemos quando fugimos daqui. Arthur, pega alguns martelos na loja do depósito pra gente fazer buracos no muro e subir por ele.

    Arthur apenas balançou a cabeça em silêncio e saiu, acatando a ordem de João sem questionar. Samira e Camille, sem perder tempo, agarraram as caixas contendo os coquetéis molotov e as posicionaram próximas aos muros, preparando tudo para o plano. Assim que Arthur retornou, os demais começaram a abrir buracos no muro para poder escalá-lo, suas mãos sujas de poeira e cimento enquanto trabalhavam apressadamente.

    O barulho das ferramentas contra o concreto ecoava pelo pátio abandonado, e não demorou para que atraísse a atenção de alguns infectados que vagavam do lado de dentro da escola. Gemidos guturais se intensificaram à medida que eles se aproximavam, suas silhuetas deformadas projetando sombras distorcidas contra as paredes pichadas. Os corpos se amontoaram ali, agitados pelo instinto primitivo de ir até a fonte do ruído, arranhando o muro e deixando rastros pegajosos de sangue seco e secreções pútridas.

    Após um tempo que pareceu se arrastar como um pesadelo interminável, os buracos ficaram prontos. Agora restava o momento mais perigoso: espiar o outro lado. Para garantir que o plano não fosse um suicídio coletivo, Reidner e Arthur escalaram primeiro, erguendo-se com esforço até conseguirem um campo de visão claro da parte interna da escola. O que viram fez seus corações dispararem e seus rostos perderem toda a cor.

    Os infectados que se moviam ali não eram como aqueles que vagavam pelas ruas. Eles eram… diferentes. Seus corpos haviam sofrido alterações grotescas, como se a infecção estivesse moldando novas formas de pesadelo. Alguns tinham braços alongados, suas mãos transformadas em garras ósseas e afiadas. Outros possuíam músculos desproporcionais, com veias saltadas e pele rompida, como se estivessem à beira de explodir. Mas o pior não era isso.

    Um pouco mais adiante, Reidner e Arthur avistaram um grupo de infectados devorando os próprios semelhantes. Mas não era um simples instinto faminto — era um frenesi canibalístico. Os sons das mordidas e do estalar de ossos se misturavam aos grunhidos famintos. E então, diante de seus olhos horrorizados, os corpos dos devoradores começaram a mudar. Seus membros se expandiam de forma grotesca, espinhas se alongavam em protuberâncias deformadas, olhos extras surgiam debaixo da pele rasgada. Cada pedaço de carne consumido parecia acelerar sua mutação, transformando-os em algo ainda mais aberrante.

    Arthur engoliu em seco, sua voz saindo trêmula e baixa:
    — Pessoal… deu muito ruim do outro lado. Eles estão… se transformando. Essas coisas… eles estão virando outra coisa. Monstros canibais.

    Seu corpo estava rígido, tomado por um medo paralisante. Se essas criaturas começassem a sair da escola, se espalhassem pela cidade… o que aconteceria? Quantas mais evoluiriam para formas ainda mais terríveis?

    Reidner sentiu cada fibra do seu ser alertá-lo de que enfrentar aquilo de frente significava uma sentença de morte. Eles não teriam a menor chance contra aqueles horrores mutantes. Com mãos trêmulas, enfiou a mão no bolso e puxou o celular, abrindo a câmera e começando a gravar. O mundo precisava ver aquilo. Se a rede online ainda funcionava, ele jogaria o vídeo em qualquer plataforma que pudesse. Qualquer um que ainda estivesse vivo precisava saber o que estava acontecendo. O apocalipse não tinha parado. Estava evoluindo.

    Anael, no entanto, não demonstrou hesitação. Seu olhar estava fixo nos monstros do outro lado, mas seu corpo permanecia firme, decidido. Ele cerrou os punhos, os olhos ardendo com determinação.
    — Se essas coisas estão mudando conforme se alimentam, isso significa que elas ainda estão evoluindo rapidamente. Mas isso não muda o que viemos fazer aqui — sua voz saiu forte, sem espaço para dúvidas. — Nós os descobrimos primeiro. Isso significa que temos a responsabilidade de acabar com eles antes que seja tarde demais.

    Ele lançou um olhar confiante para os demais e depois para as caixas de molotov.
    — Essas merdas podem estar mudando, mas fogo ainda é fogo. Vamos tomar essa escola de volta.

    O silêncio que se seguiu foi apenas quebrado pelo som da chuva que começava a cair, grossa e fria, escorrendo pelo concreto sujo da escola. No entanto, o frio que sentiam não vinha da água. Ele vinha da certeza de que, uma vez que entrassem ali, não haveria mais volta.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota