Capítulo 37 - 75%
Todos os Guardiões Superiores estavam postos… Mas não só eles — também seus subalternos mais leais, aqueles moldados à imagem de seus mestres, talhados a ferro e doutrina.
Cada um dos quinze guardiões e setores possuía um sucessor nomeado assim que completava seu primeiro ciclo solar no cargo.
Uma tradição ou maldição que perpetuava desde a fundação.
No caso do Oitavo Distrito, pertencia a Ananit a mais bela e, paradoxalmente, a mais indesejada entre eles.
A ausência da Fênix sem papas na língua naquela manhã deixava um vazio não dito, mas sentido por todos.
Seu quarto, entretanto, não estava vazio. Não podia estar.
Ananit pisava ali como quem invade um santuário desconsagrado. A porta rangeu, como se protestasse. Havia tédio nos olhos cor de pétalas de ipê, e certa ira indolente no modo como cruzava os braços e fitava o interior do aposento.
Odiava tudo aquilo… e odiava ainda mais o loiro por ver tanto potencial em alguém como ela.
Caminhou até o balcão onde os lanches ainda exalavam aroma morno de especiarias… um exagero antes de uma reunião de guerra.
Sentou-se no assento que ele costumava ocupar, diante da vasta janela sem grades ou vidros.
A vista era a própria imensidão, o Oitavo Distrito se desdobrava abaixo como um vitral vivo… Curvas de luz dourada serpentando entre torres prismáticas e rios suspensos que desafiavam a gravidade com uma graça quase insultante.
Um cenário que faria qualquer suíte de luxo voltada para o mar, no Rio de Janeiro, parecer um esboço malfeito.
Mas ela não se impressionava.
A beleza, para, era um tédio requintado.
— Que ultraje! — exclamou, tombando a cabeça contra o encosto com um suspiro dramático — Por que ele não escolheu você? Tão… certinho…
— Já tivemos essa conversa. — Hakaru se recostou à parede, os braços cruzados com a elegância e arrogância de quem já desistiu de se explicar — Ele vê algo que nem eu, nem os outros, temos.
— Força?
— Imaturidade! — bufou — Hayashan Beyoter era o nome certo pra substituição… não crianças como a gente…
— Então você se acha inferior ao velho? — riu, os lábios curvando-se num sorriso felino — Ou está só chateado porque perderia pra mim?
— Eu… perderia? — engasgou, vermelho — Não fale como se isso fosse verdade! Idiota…
— Ué, e não é? — dedos brincando com a pulseira no próprio pulso — Difícil um Guardião me peitar no Oitavo… Você sabe disso… ou prefere fingir?
Os olhos se encontraram.
Um jogo de vontades — o dela, afiada como uma navalha de ego; o dele, hesitante, mas orgulhoso demais para desviar.
— Aquilo foi sorte sua! — Mordeu os lábios — Vamos falar de coisas sérias? E o garoto? Ele deixou alguma instrução?
— Asael vai treiná-lo… até ele estar pronto pra voltar. Simples. Linear. Como tudo que Elyah faz.
— Justo… — murmurou, olhando para o teto abobadado, onde constelações giravam lentamente — Mas com Elyah fora do jogo… o garoto vai precisar de mais que sorte.
— Acha que eu não cuidaria dele?
— Você não costuma ter zelo nem pelos brinquedos que te fascinam, Ananit — Sua voz suavizou, mas cada palavra era uma incisão precisa — Estou errado?
Ela ficou em silêncio por um instante. Depois sorriu.
Não o sorriso de antes, o de ironia ou desafio.
Um sorriso leve, quase humano.
— Não. Mas… o Cael é um caso especial — Riu, alegria que beirava o sarcasmo — Que péssimos somos, né? Falando de expectativas, jogando dados com o destino, enquanto o Mestre provavelmente se contorce em desespero tentando sair de lá.
— Você realmente acredita nisso?
— Não! — enrolou uma mecha do cabelo no dedo, distraída, os olhos voltados para a estrutura colossal que cortava os céus — Eu sei quem ele é…
— Ele está se divertindo! Como sempre… Elyah nunca sabe quando ser homem ou ser moleque — cuspiu as palavras com desprezo que guardava desde a nomeação — É um péssimo Guardião Superior! — virou-se, o manto farfalhando — E você… vai ser tão medíocre quanto ele!
— Eu sei — Entre um bocejo e um sorriso preguiçoso — Por isso sou melhor que você!
E assim, o nada agradável guardião se retirou, deixando para trás apenas o rastro amargo do próprio orgulho ferido.
A noite, essa cúmplice de silêncios, já se dissipava. O céu começava a mudar de cor — não havia pressa, mas o sol já se insinuava, tingindo os telhados altos com um dourado.
Aos pés da escadaria que serpenteava até as ruas da cidade, alguém aguardava.
Asael.
Estava lá, de braços cruzados, como se fizesse parte da arquitetura.
— Tem um minuto?
A voz era firme, seca como terra batida.
Ele parecia sério demais.
Embora… sempre fosse.
Seu rosto, por si só, já era uma sentença ao bom humor, a cara amarrada parecia até fetiche.
— O que você quer?
— Sobre o velho… — começou, hesitante, os olhos fixos no alto da torre — Não o vi. Ele deveria trocar o turno comigo. Você sabe de algo?
— Ah… — Suspirou, deixando o corpo pender para o lado como se sustentasse o tédio do mundo nos ombros — Deve ter saído, sei lá. Ele é bem mais experiente que a gente, não? Logo deve aparecer.
— Ah, claro… — Asael cerrou os punhos — Se o vir, diga que…
— Que?
E já dizia isso caminhando, às costas cada vez mais distantes.
Como se a distância fosse um idioma mais confortável que o confronto.
Sua arrogância era um escudo — espesso.
Algo que o impedia de ser lido, de ser tocado, de ser… transparente.
Mesmo para quem, sabia reconhecer espelhos rachados em outros.
— …Que quero vê-lo.
— Diga você mesmo, Asael. Ele é seu mestre, não é?
E o calvo parou por um segundo. Só o suficiente para respirar raiva.
— Babaca… — Sem esforço algum para esconder.
A palavra cortou o ar como uma pedra lançada contra o espelho.
Sem medo. Sem disfarces.
Deu nos nervos.
E o maldito apenas riu.
Como quem saboreia a fraqueza dos outros disfarçada de postura.
Mastiga o orgulho alheio só para cuspir superioridade.
— Desse jeito vai acabar sem os cabelos! Ah… verdade… você já os perdeu — zombou de outro só pra apagar os risos que haviam sido dirigidos a ele.
Porque no fim, era sempre assim.

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