Capítulo 25 – Novos Começos
Todos ouviram as palavras de Anael. Ele tentava soar motivador, mas seu corpo o traía—suor escorria pela testa, e suas mãos tremiam levemente. O medo estava ali, pulsando em cada célula, mas ainda assim ele se mantinha firme.
— Ele tá certo. Vamos continuar de onde paramos… O que vocês estão vendo aí de cima do muro não muda nada do que viemos fazer aqui. — A voz de Samira cortou o silêncio como uma lâmina fria, carregando o mesmo tom gélido e implacável que seu irmão costumava usar.
Sem hesitar, ela pegou algumas garrafas de molotov, organizando-as com precisão dentro de uma sacola de supermercado. Passou o braço pela alça da sacola e começou a escalar o muro. Seus movimentos eram calculados, cada puxada e cada impulso feitos sem pressa, mas com uma determinação sombria.
Ao alcançar o topo, seus olhos se arregalaram. Lá de cima, ela pôde ver de perto o quão demoníaca e horripilante era a transformação dos infectados dentro da escola. Aqueles seres não se pareciam nem de longe com os infectados que estavam acostumados a ver. Eles eram… algo novo. Algo muito pior.
Mas Samira se recusou a ceder ao medo. Fechou os olhos por um breve instante, respirou fundo e, como se ativasse um mecanismo interno, desligou completamente qualquer resquício de terror ou hesitação. Seu coração desacelerou, seus músculos relaxaram. Um escudo invisível a separava do pavor.
Ela então começou a se mover com calma sobre o muro, equilibrando-se enquanto levava as garrafas até o telhado conforme o planejado. Cada passo era firme, sem hesitação, como se aquilo não fosse um ato suicida, mas apenas mais um dia qualquer.
Os outros ficaram abismados. Ela ainda era uma criança, e mesmo assim estava agindo de forma meticulosa e implacável em uma situação aterrorizante.
Reidner, sentindo-se um covarde diante da frieza dela, desviou o olhar para Arthur e perguntou, num tom baixo, quase como se estivesse tentando entender o que tinha acabado de ver:
— Aê, Arthur… isso é de família ou ela e o Bruno que são muito diferentes dos demais? Porque, sendo bem sincero, vendo ela agir assim, é como se eu estivesse olhando para o Bruno no dia mais corajoso dele.
Arthur, ainda observando Samira se movendo sem medo, respondeu com um suspiro pesado:
— Não… Ela tá diferente desde que o Bruno fez aquilo com a gente.
Havia um peso em suas palavras. Algo tinha mudado dentro dela naquele dia, e agora estava se manifestando de forma assustadora.
Arthur estendeu a mão, pedindo algumas molotovs. Camille, sem dizer nada, entregou as garrafas para ele, e os demais começaram a fazer o mesmo. Aos poucos, eles foram reunindo coragem para seguir o plano. Um por um, começaram a transportar as garrafas para o telhado. E conforme avançavam, os infectados dentro da escola os acompanhavam lá embaixo, agitados, seguindo cada movimento deles com olhos famintos e corpos deformados.
Reidner sentiu que precisava registrar aquilo. Pegou o celular e começou a gravar. O visor tremia levemente devido à adrenalina correndo em seu corpo, mas ele continuou focando nos infectados. Alguns eram gigantescos, com músculos grotescamente desproporcionais. Outros pareciam aberrações híbridas, com braços extras ou ossos expostos. Cada um mais pavoroso que o outro.
Ele filmou Samira pegando uma das garrafas, acendendo o pavio com as mãos firmes, sem hesitação. Do outro lado, Camille, Pedro e Guilherme começaram a gritar, chamando a atenção das criaturas para um ponto específico do pátio.
Os monstros se agitaram, avançando como feras famintas.
Então, as primeiras garrafas foram arremessadas.
O vidro se estilhaçou, espalhando fogo e destruição. As chamas dançavam sobre os corpos infectados, devorando carne pútrida e arrancando gritos bestiais que ecoavam como um coral infernal. O cheiro de carne queimada e gasolina se misturou no ar, formando uma névoa sufocante.
Um a um, os demais começaram a lançar suas molotovs. Cada explosão incendiava mais criaturas, espalhando o caos entre os infectados. Eles tentavam escapar, se debatiam, alguns ainda tentavam avançar, mas logo tombavam em meio às chamas.
O tempo passou de forma confusa, entre gritos, fumaça e o estalar da carne queimando. Até que, por fim, tudo ficou em silêncio.
Nenhuma criatura restava de pé.
Reidner parou de gravar e, com dedos sujos de fuligem e suor, subiu o vídeo para a internet. Alguém precisava ver aquilo. Alguém precisava saber que a ameaça não estava apenas crescendo, mas evoluindo.
Agora confiantes, o grupo desceu para verificar os corpos queimados. O céu já começava a escurecer, e a noite logo cairia sobre eles.
Precisavam se organizar. Se quisessem sobreviver ali, precisavam fazer daquele inferno o próprio território.
***
No Amaro Ribeiro, o grupo passou a se autodenominar Fortaleza Antero.
O local já não era apenas um abrigo improvisado; era a única coisa que separava aqueles jovens do caos lá fora. Mas nem mesmo as paredes altas da escola conseguiam impedir que um novo problema surgisse: o cheiro pútrido dos corpos espalhados pelo pátio e corredores. O odor era insuportável, encharcando o ar com um peso fétido que fazia até os mais resistentes sentirem náuseas.
Letícia, com o rosto tenso e a expressão endurecida pela nova realidade, reuniu todos no centro do pátio. Seu tom de voz não deixava espaço para protestos:
— Peguem os carrinhos de mão da horta. Precisamos tirar esses corpos daqui agora.
Alguns engoliram seco, outros desviaram o olhar para evitar encarar as pilhas de cadáveres de infectados e antigos sobreviventes que não tiveram a mesma sorte que eles. Mas não havia escolha. Ou se livravam daquilo, ou seriam sufocados pelo próprio inferno que estavam tentando evitar.
Aos poucos, o grupo começou a se mover. Os mais fortes e resistentes pegavam os corpos, arrastando-os com esforço até os carrinhos. A carne apodrecida cedia ao toque, os ossos estalavam, e o cheiro impregnava roupas, mãos e narinas. Alguns vomitavam no canto antes de voltarem para continuar. Ninguém tinha tempo para fraquejar.
Enquanto a maioria se ocupava com a limpeza macabra, Letícia ficou responsável por Amanda.
A garota estava sentada num canto da sala onde dormia, as costas encostadas na parede descascada. Os joelhos estavam dobrados contra o peito, os braços finos envolviam as pernas como se fossem sua única proteção contra o mundo lá fora. Os olhos, fixos em um ponto qualquer do chão, estavam vazios, mortos, como se sua alma tivesse sido arrancada e deixado apenas uma casca frágil para trás.
Desde aquele dia… Amanda não havia falado uma única palavra.
Letícia se ajoelhou ao lado dela, colocando uma mão delicada sobre seu ombro.
— Amanda… — chamou, a voz mais gentil do que qualquer um ali jamais a ouvira usar.
Nenhuma resposta. Nem um olhar, nem um tremor.
Letícia suspirou, puxando um pedaço de pão seco que havia guardado no bolso. Com paciência, ela partiu um pedaço e levou até os lábios da garota. Nada. Tentou encostar levemente o pão em sua boca. Amanda virou o rosto para longe, mas ainda sem demonstrar nenhuma reação além do reflexo de recusa.
Era como cuidar de um bebê indefeso. Ela não comia, não chorava, não reagia. O trauma havia destruído algo dentro dela, e agora Letícia precisava juntar os cacos—se é que ainda havia algo para ser salvo.
Enquanto isso, não muito longe dali outro grupo tentava sobreviver.
No clube da Central, um lugar que antes era destinado ao lazer, agora abrigava um grupo de sobreviventes. A piscina estava vazia e cheia de lixo, o bar tinha sido saqueado, e os antigos salões de festa agora eram dormitórios improvisados, com colchões sujos espalhados pelo chão.
Marlon, um dos recém-chegados, foi salvo por um dos integrantes do grupo: Isaac, o líder do local.
Isaac não era como Letícia ou Geovane. Ele não passava segurança nem parecia ter um plano para o futuro. Seu olhar sempre estava alerta, desconfiado, e suas mãos nunca se afastavam demais da faca presa ao cinto.
Marlon, ainda recuperando o fôlego, sentou-se num degrau enquanto Isaac o observava.
— Então você veio da escola, né? — perguntou Isaac, estreitando os olhos.
Marlon assentiu, passando a mão pelos cabelos sujos de poeira e suor.
— Sim… disse ele, testando o peso das palavras. Gostava do som disso. — Lá é seguro. Os muros são altos, e já conseguimos controlar a situação lá dentro.
Isaac riu, um riso curto e seco.
— “Controlar a situação”? — repetiu, como se achasse graça na ideia. — Moleque, não existe mais “controle” nesse mundo.
Marlon não rebateu. Sabia que Isaac tinha razão, mas também sabia que ficar ali no clube não era uma opção viável a longo prazo.
Ele precisava convencer Isaac de que a escola era o melhor lugar para se estar agora.
E se não conseguisse…
Talvez tivesse que voltar sozinho.
Marlon encarava Isaac com impaciência, tentando conter a frustração. O clima pesado do clube da Central só piorava a sensação de perigo iminente. As paredes pichadas e o cheiro de mofo misturado com suor e desespero não eram nada comparados ao verdadeiro problema: se um bando de infectados aparecesse, não teriam para onde correr.
Ele passou a mão pelo rosto sujo, respirando fundo antes de falar.
— Viado, se a gente continuar aqui… mano, nós vamos estar fodidos se um bando aparecer! — Sua voz saiu firme, carregada de urgência. Ele apontou ao redor, como se a própria decadência do lugar provasse seu ponto. — Não temos pra onde correr, não, Zé.
Isaac cruzou os braços, o olhar cético. Ele não gostava da ideia de sair, mas também não podia ignorar o medo nos olhos de Marlon.
— E se sairmos e dermos de cara com um bando, hein? — rebateu, arqueando uma sobrancelha. — O que a gente faz?
Marlon não hesitou. Se quisessem sobreviver, precisavam agir agora.
— Temos mais chances se chegarmos lá do que ficarmos aqui!
Isaac ainda parecia relutante, os dedos tamborilando contra a faca em seu cinto.
— Mano… se houver infectados no caminho, as mina não vão aguentar correr, não, Zé. — Sua voz era mais baixa agora, carregada de preocupação real. Ele sabia que algumas das garotas do grupo eram mais frágeis, e uma fuga precipitada poderia custar vidas.
Marlon trincou o maxilar, olhando ao redor em busca de uma solução. Seus olhos pousaram nos carros largados no gramado, depois da mini ponte ao lado de uma das quadras.
— Se ocê souber pilotar, podemos pegar dois carros e sair daqui! — sugeriu, apontando para os veículos cobertos de poeira.
Isaac respirou fundo, seus ombros magros subindo e descendo devagar.
— O pior é que… não sei dirigir.
Antes que Marlon pudesse responder, uma voz feminina se intrometeu na conversa.
— O Katriel sabe dirigir.
Os dois se viraram ao mesmo tempo, encontrando Manu encostada na parede com os braços cruzados. Seu olhar era meio entediado, como se não achasse a discussão grande coisa.
Isaac estreitou os olhos para ela.
— Ocê tava ouvindo a conversa?
Manu deu um meio sorriso sarcástico e deu de ombros.
— Com vocês gritando desse jeito, não tem nem como não ouvir.
Marlon não perdeu mais tempo. Se tinham uma saída, precisavam agir rápido.
Ele girou nos calcanhares e saiu andando com passos largos, já gritando para os outros:
— Bora se preparar, a gente vai sair daqui agora!
O grupo caminhava pelas ruas destruídas em direção à Fortaleza Antero. O trajeto era sombrio — um cenário de desolação e morte se espalhava por todos os lados. Corpos apodrecidos jaziam pelo asfalto, misturados a poças escuras de sangue seco. Os infectados estavam espalhados, alguns parados como se tivessem desligado, outros perambulando sem rumo, suas sombras alongadas pela luz trêmula do entardecer.
Na Fortaleza Antero
Geovane jogou o último corpo para fora da escola, sentindo o cheiro pútrido que impregnava suas roupas e pele. Quando ergueu o olhar para limpar o suor da testa com o antebraço, seus olhos captaram um movimento no alto do morro. Dois carros avançavam pela estrada irregular, sacolejando entre os buracos.
Seu instinto gritou perigo.
Com um gesto rápido, ele sacou a faca da cintura e chamou pelos outros.
Vinícius e Lucas correram até ele, os olhos atentos, já prontos para o que fosse necessário.
— Fecha essa porra agora! — disse Geovane, empurrando o portão pesado de ferro.
O som da tranca se fechando ecoou pelo pátio. Lá fora, Marlon avistou Geovane correndo e, sem pensar, começou a buzinar.
Isaac, sentado no banco do passageiro, arregalou os olhos e, sem hesitar, deu um tapa forte na careca brilhante de Marlon.
— Para com essa merda aí, porra! Seu macaco do caralho! Quer chamar a atenção dos infectados, viadinho do caralho?!
Marlon bufou, mas tirou a mão da buzina.
Os carros pararam em frente ao portão da escola, e Marlon desceu, batendo forte na estrutura metálica.
— Ô Geovane, sou eu, porra! Abre essa merda!
Do outro lado, Geovane reconheceu a voz e se permitiu respirar aliviado. Mesmo assim, manteve a guarda alta ao destrancar o portão. Quando Marlon e os outros passaram, todos foram recebidos com abraços aliviados, como se tivessem voltado de uma guerra.
Marlon, Isaac e Geovane seguiram apressados até uma das salas onde Letícia estava, cuidando de Amanda.
Ao cruzarem a porta, os três congelaram.
Amanda estava encolhida num canto, os olhos arregalados, vazios. Seu corpo tremia como se estivesse no meio de um pesadelo do qual não conseguia acordar. Quando viu os garotos, o pânico explodiu dentro dela.
Um grito estridente rasgou o ar.
Amanda se lançou para trás, as costas batendo contra a parede. Sua respiração se tornou um engasgo descontrolado, as lágrimas escorrendo em um choro desesperado. Ela tentava afastá-los como se fossem monstros, os braços fracos se debatendo no ar.
Letícia pulou na frente deles, furiosa.
— Saiam daqui, agora!
Ela praticamente os empurrou para fora, fechando a porta com força.
Os três ficaram em silêncio no corredor, ainda tentando processar o que tinham acabado de ver. O coração de Marlon ainda martelava no peito, e Isaac engoliu em seco antes de se virar para Geovane.
— Que porra foi essa? O que aconteceu com ela?
Geovane olhou para o chão por um momento, como se estivesse escolhendo bem as palavras. Mas não havia jeito fácil de dizer aquilo.
— Quando tudo começou… — Ele inspirou fundo, a mandíbula trincada. — Ela foi atacada por um infectado. Só que… o desgraçado não só espancou ela. Ele também estuprou.
O silêncio caiu pesado como chumbo.
Geovane continuou, a voz mais baixa, como se as palavras queimassem sua garganta.
— Ela apagou no meio disso tudo… e desde que acordou, tá assim. Não fala, não come direito. E sempre que vê um homem… — Ele gesticulou na direção da porta. — Se desespera, grita pra caralho.
Os três permaneceram ali, estáticos, sentindo a cruel realidade os esmagar um pouco mais.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.