Capítulo 66 — A Face Frágil da Bruxa
Essa não foi a primeira experiência de morte que Kalira experimentou. Toda vez que seu corpo parecia atingir um ponto crítico, um breve momento de iluminação surgia em seu subconsciente. Esse pequeno vislumbre era o que dava a força necessária para ela prosseguir. A maioria das pessoas espera um ciclo de morte, pós vida e reencarnação. Porém, as bruxas não tinham esse direito. Trocaram a chance de um novo destino por uma existência sem decadência enquanto estivessem vivas. Toda vez que uma bruxa morria, não havia mais chance de retorno. Por isso, elas eram tão paranoicas com a sua autopreservação e não se continham quando precisavam alcançar seus objetivos.
Kalira compreendeu isso muito bem com a lição que acabou de receber.
A bruxa acordou bruscamente com um balde de água fria jogada em seu rosto. Suas mãos estavam amarradas sobre suas costas, junto com seu torso. O cheiro de lavanda e madeira, junto com a escuridão do lugar indicavam a sua presença dentro da sua própria cabana. Mas diferente do que gostaria, ela estava cheia de homens revirando suas coisas de um lado para o outro. Seus livros, desorganizados, alguns jogados no chão. Seus frascos estavam completamente fora de ordem e seu guarda-roupa completamente revirado.
— Que porra vocês estão fazendo? — murmurou a bruxa, que sentia dificuldade de expressar simples palavras.
— Kalira! — disse Sarisa, exasperada.
Surpresa, Kalira nem teve tempo de responder quando a garota correu na sua direção e a abraçou. Embora fosse levemente reconfortante, a presença dela ali colocava seus inimigos um passo à frente do seu objetivo.
— Aguente firme! Eu vou fechar seus ferimentos — disse Sarisa, colocando suas mãos em seus ombros.
A sacerdotisa fechou os olhos e começou a realizar uma pequena prece. Marcus pensou em impedir, mas Samir colocou a mão em seu ombro esquerdo e balançou a cabeça negativamente.
— Sarisa, por favor, não faça isso-
Das preces religiosas de Sarisa, energia divina começou a se acumular em suas mãos, conduzindo-a através do corpo de Kalira. Porém, a energia obscura pertencente no corpo da bruxa não gostou nem um pouco disso, repelindo violentamente o poder dos deuses e causando um intenso choque na bruxa, que colapsou e começou a se tremer.
— KALIRA! EU SINTO MUITO! ISSO NÃO ERA PARA ACONTECER EU DEVO TER USADO O FEITIÇO ERRADO…
— Não, minha jovem — disse Samir. — Você usou o feitiço certo, mas esse tipo de coisa costuma matar gente da mesma espécie que a dela.
Foi naquele momento que o desespero da garota se transformou em uma horrenda confusão. Aquela pessoa não era a Kalira que ela conheceu e conviveu. Chifres, protuberâncias, olhos negros e pele pálida como o mármore. Ela tinha todos os traços físicos da pessoa que estava convivendo, mas claramente era uma outra pessoa.
A bruxa, por sua vez exausta, expulsava os últimos vestígios de energia divina em seu corpo. Mas o que doía mesmo era o olhar de incredulidade e desconfiança da garota que investiu tempo para conquistar.
— Kalira…por que você está assim? Quem é você? — perguntou Sarisa, com lágrimas nos olhos.
Kalira a encarou com seus olhos negros, como se estivesse prestes a engoli-la por inteiro. Em seguida, baixou o olhar, como se a vergonha tivesse batido nas portas da sua consciência.
— Eu não queria que você me visse dessa forma…tão maligna, repulsiva e desprezível. Eu sou um monstro e você não merecia alguém assim.
Para Sarisa, aquilo estava totalmente distante da mulher que conheceu. Da radiante e madura donzela, agora com a voz baixa, rouca, desanimada e bastante machucada. Para a jovem sacerdotisa, todas as pessoas que ela conhecia e se apegava, estavam destinadas a deixá-la uma hora ou outra. E tudo isso porque recebeu um fardo que sua mente não conseguia consolidar.
— Ok, chega desse melodrama — interrompeu Samir, puxando a garota para trás. — Marcus! Pegue a pirralha e a leve de volta ao templo. Eu tenho algumas coisas para fazer ainda por aqui. Leve dois homens contigo e cuidado!
Com um aceno de cabeça, Marcus colocou sua mão enorme sobre o ombro da garota e começou a arrastá-la à força. A jovem tentou se debater, mas não conseguia contestar a força com o mercenário de quase dois metros. A bruxa até tentou esboçar algumas palavras de preocupação, mas elas simplesmente não conseguiam sair dos seus lábios. O sentimento de fracasso e derrota permeavam sua mente, enquanto escutava os gritos da garota descerem pela parte externa da cabana.
— Agora que eles se foram, que tal me contar o que você sabe sobre a garota? — perguntou Samir, puxando uma cadeira para si.
Kalira tinha dificuldade de respirar, pois suas vias nasais estavam entupidas com o seu próprio sangue.
— Após me dar uma surra horrenda você quer que eu responda isso? — respondeu a bruxa.
— Confesso que fui um pouco duro contigo, mas entenda que eu estou em uma missão importante. Vamos fazer assim: eu tenho um machado de altíssima qualidade aqui comigo, que inclusive, você já deve ter visto. Se você for boazinha, eu não vou usá-lo na sua cabeça nos próximos cinco minutos. E se nos ajudar a conseguir a Pílula do Reflorescer Espiritual, nós saímos da sua casa e você permanece com seu domínio da Selva de Concreto, que tal?
A bruxa riu, pois nunca tinha escutado tamanha baboseira em tão pouco tempo.
— Me deixar sair viva? Você deve achar mesmo que sabe mais do que alguém com sessenta anos caminhando por esse mundo é ingênuo. Eu sei bem que tipo de homem você é. Esses estudiosos que estão te acompanhando, você não tem intenção nenhuma de pagá-los. Inclusive, se alguma coisa acontecer e eles ficarem aqui, são menos testemunhas relacionadas ao grande poder que você busca.
Samir ergueu uma sobrancelha. Havia uma possibilidade considerável dele ter subestimado o intelecto de uma mestra das artes obscuras.
— E você está tentando negociar comigo com uma moeda que não pode pagar. Você PRECISA de mim viva para meu domínio permanecer e os monstros, assombrações, plantas, qualquer coisa naturalmente hostil não venha te atacar, junto com sua expedição. Sabe que se eu morrer, os salgueiros vão engolir seus homens até dissolver suas carnes e músculos.
Insatisfeito com a resposta, o mercenário retirou o cigarro da boca e pressionou a parte acesa contra a perna da bruxa, que comprimiu os lábios para não gritar.
— Já entendi, você é inteligente. Mas essa foi uma decisão burra, pois eu vou te matar assim que conseguir a pílula. Enquanto isso, aqueles homens vão se divertir consigo, principalmente depois que descobrirem o que você fez com o colega arqueólogo deles. Sempre digo que esses engomadinhos de óculos covardes são os mais perversos quando o assunto é causar dor nos outros. Até depois, bruxa!
Como uma tempestade, o homem saiu da sua cabana. Dentro da casa, três arqueólogos ainda restaram, junto com um dos soldados que apenas observaram tudo que tinha acontecido. Um deles tinha um pé de cabra em mãos, outro tinha um espeto de lareira e um martelo. O soldado estava na cozinha, revirando sua dispensa.
Seus olhos negros encaravam os três homens parados na sua frente, completamente dominados pela sua adrenalina. Medo, raiva e curiosidade se misturavam em suas mentes, fazendo suas mãos tremer e seus rostos suarem.
Mas ela sabia que no instante em que começassem, continuar seria muito mais fácil. Aquele seria um dia muito longo.
Uma hora depois…
A região interna do Templo de Malchi-Zarum permanecia um lugar escuro e sombrio, mas agora tinha ficado bem pior com os restos dos arqueólogos que tinham tentado fazer alguma coisa naquela área. Samir se perguntava como diabos tinham tantas partes de uma única pessoa espalhadas por toda a zona de batismo. O que um dia deve ter sido um lugar santo, parecia um lugar profanado.
Descendo as longas escadas, o mercenário finalmente atingiu o chão, onde se deparou com marcas de luta relativamente recentes por todo lado. Sangue, fumaça e terra, tudo misturado pelas catacumbas recém-descobertas. Na sua frente, seu colega de trabalho o aguardava, com seu rifle apontado direto para a cabeça da sacerdotisa, que residia de joelhos.
— Demorou, hein? Deu conta da bruxa? — perguntou Marcus.
Samir acendeu um cigarro.
— E você duvidou? Ela tá lá, mantendo o casarão intacto enquanto os arqueólogos e meus homens que ficaram estão pilhando tudo o que sobrou. Parece que vamos sair no lucro.
Seus olhos pairaram sobre a garota, cujas lágrimas de terror e aflição percorriam por todo o seu delicado rosto. Com seus passos pesados, Samir se aproximou e a segurou pelo cabelo, puxando-a até sua altura. A garota soltou um grito desconfortável que ecoou pelas câmaras, fazendo até mesmo Marcus formar uma expressão estridente.
— Você é uma pirralha inconsequente, hein? Sabe qual é o melhor remédio para gente assim? — disse ele, sacando a sua Beretta e encostando o cano na bochecha da sacerdotisa. — Chumbo no meio da testa, atravessando seu crânio e transformando seu cérebro em pasta espalhada por todo lado, entendeu?
O terror absoluto tomava conta do coração de Sarisa, que não conseguia entender porque aqueles homens eram tão violentos. Seu coração pesava só em pensar no que poderia ter acontecido com Kalira.
— E-eu não sei o que você quer de mim! Por favor, pare! Tá doendo!
As palavras trêmulas e lamuriantes da jovem não moveram nem um centímetro do coração do mercenário, que a jogou no chão.
— Você é a última sacerdotisa de Malchi-Zarum que está andando pelo mundo dos vivos e não foi colocada nessa câmara de preservação atoa! O que você sabe sobre a Pílula do Reflorescer Espiritual? Desembucha antes que eu perca minha paciência!
Aquelas palavras ecoaram na cabeça da jovem, a princípio perdidas, mas então começaram a se reorganizar entre suas memórias e a fazer sentido. Seus olhos oscilaram entre seus castanhos e uma fina camada cintilante branca, fazendo toda a catacumba tremer. Os homens deram um passo para trás, sem saber o que iria acontecer a partir dali.
Então, seus olhos voltaram ao normal, mas sua expressão não tinha mais temor e sim esclarecimento.
— E-eu sei o que aconteceu com a pílula…eu acho que estou entendendo o seu propósito…
Suas mãos se aproximaram do seu abdômen, onde começaram a brilhar como o farol de um porto. Como um pequeno buraco negro, várias coisas eram atraídas até o centro do brilho, o que fez os homens recuarem mais ainda temerosos.
— Que porra é essa, Samir?
— Não sei ao certo, mas se eu tivesse que chutar, parece muito o processo de alquimia antigo. Dos cinco elementos, fogo, água, terra, madeira e metal, se você soubesse balancear suas energias apropriadamente, poderia criar qualquer coisa.
E parecia exatamente o que ela estava fazendo. O brilho começou a diminuir, junto com o pequeno transe em que estava presa. Quando finalmente se extinguiu, duas pequenas esferas peroladas flutuavam sobre sua mão. Seu rosto suava e seu corpo cambaleava. Samir imediatamente se adiantou e pegou as pílulas de sua mão, enquanto Marcus a segurava para não cair.
Apenas com o toque, o mercenário percebeu que aquelas pílulas eram de alto valor. Como quem não tinha nada a perder, colocou uma na boca.
— Capitão! Você tá maluco? E se isso for venenoso? — questionou Marcus.
O sabor era agridoce, mas desmanchava em sua boca com uma suavidade intrínseca. Era como relaxar em uma praia de manhã cedo em um dia de verão. Então, o impacto veio. Mesmo que apenas dois meridianos em seu corpo estivessem abertos, foram inundados com uma quantidade poderosa de energia, que atravessou seus músculos e veias, concedendo-lhe um poder que nunca experimentou antes.
— Eu me sinto ótimo! — disse Samir, com um sorriso. — Vamos levar essa amostra de volta para os arqueólogos examinarem. Eu acho que já sei como isso funciona! Não existe uma “Pílula do Reflorescer Espiritual”, mas sim uma pessoa que tem poder para criar essas pílulas, que custariam muito tempo e dinheiro para serem feitas. Imagine um exército de combatentes aprimorados que pudesse ser feito em menos de uma hora, com uma coisa dessas? E eu nem coloquei essa quantidade de magia para circular em meu corpo ainda! Eu vou ficar muito rico com essa galinha dos ovos de ouro.
Marcus franziu a testa.
— Mas essa descoberta pertence aos Bakir, temos que entregá-la a eles. Eles nos caçarão feito ratos se descobrissem que-
Foi um movimento simples, rápido, brilhante e que foi seguido de um som oco e brutal que reverberou por toda a catacumba. Do cano de sua Beretta, fumaça ascendia para o alto, enquanto o corpo de Marcus caía no chão com um enorme buraco em sua testa.
Sangue espirrou sobre o vestido e o rosto da sacerdotisa, que mais uma vez foi banhada em terror. A garota gritou desesperada, enquanto sua mente parecia sucumbir aos poucos aquela quantidade insuportável de mortes e brutalidade que presenciou em tão pouco tempo.
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