Capítulo 49 | Caminho do Sangue, Passo em Falso
A câmara era uma tumba, o ar pesado com o cheiro de morte e tristeza.
Foi então que a luz das tochas vacilou.
Atrás de um dos pilares estilhaçados, a sombra na parede parou de dançar. Ela se aprofundou, tornando-se um remendo de escuridão tão absoluto que parecia um buraco na própria realidade, um véu de negrume que ativamente engolia a luz da tocha mais próxima, drenando sua chama. Daquela escuridão antinatural, uma figura emergiu. Seus pés tocaram o mármore ensanguentado sem fazer um único som.
Ela caminhou calmamente pela carnificina, sua serenidade uma blasfêmia em meio à devastação.

Com dedos delgados e pálidos, pegou a Moeda de Eros do chão. O som do metal tilintando na mão dela pareceu despertar Magno de seu torpor. Ele ergueu o rosto, os olhos vermelhos e inchados se fixando na recém-chegada. A confusão em seu rosto deu lugar a uma fúria renovada.
— Você… — ele rosnou, a voz rouca pelo choro. — O que faz aqui, bruxa?
Ela não o respondeu. Seu olhar analisava com atenção aquilo que havia pego do chão, como se procurasse por algo na moeda que não fosse visível sem muito esforço.
Teseu, ao ouvir a voz de Magno, também ergueu o olhar. Ele viu a mulher com a moeda na mão, a mesma que havia causado todo aquele sofrimento. A moeda que ceifou todas aquelas crianças. Tentou se mover, se erguer, o instinto de proteger o artefato falando mais alto que a dor. Ele mal conseguiu se apoiar em um joelho com os dedos de suas mãos quebrados.
Doía.
Sem sequer olhá-lo, Circe fez um gesto casual com a mão livre. Uma sombra brotou do chão e o pressionou de volta contra a pedra, com uma força suave, mas absoluta, prendendo-o no lugar.
Vendo o interesse da mulher na moeda que havia causado tudo, Magno se levantou, incandescido.
— ME RESPONDA SUA VADIA! — Ele urrou e apertou o punho contra o cabo da espada.
Ela virou as costas para ele, sem demonstrar o menor interesse.
Magno explodiu. Com um grito de pura raiva, ele avançou, a espada quebrada de Hermes em punho, pronto para um ataque selvagem. Circe suspirou com um ar de tédio. Quando ele estava a um passo, ela simplesmente ergueu a palma da mão para trás. Uma parede de sombras invisível o atingiu, arremessando-o para o outro lado da sala como se fosse uma boneca de pano.
O barulho do confronto finalmente trouxe Hermes de volta da escuridão. Sua visão estava turva, a dor era uma sinfonia em seu corpo. A primeira coisa que ele viu foi a figura de Circe, de pé no centro de sua obra de devastação, e então, percebeu a moeda de brilho carmesim em sua mão.
— Você… — ele murmurou, a palavra um raspar de garganta.
Ela sorriu gentilmente — Ah, finalmente acordou. Estava começando a pensar que teria que partir sem me despedir do dono da festa.
— Você… mentiu… — Hermes engasgou, tentando se apoiar em um cotovelo. — Sabia o tempo todo.
— Claro que eu sabia, pequeno deus — ela respondeu, sua voz um bálsamo venenoso. — Sabia sobre Kyros, sobre a moeda, sobre a sua paranoia com sua irmã. Mas não é como se você não tivesse percebido isso, não é verdade?
— Ugh- Sua maldita — A voz de Hermes escapou rouca pela dor.
Os olhos de Circe viajaram do rosto do deus caído para seu peito, onde um de seus braços jazia com o punho cerrado contra a moeda de Tânatos.
— Então você realmente tinha uma… — Ela afirmou em um deleite reflexivo. — Tânatos. Que combinação perigosa. Você fez um bom trabalho, Hermes. — Falar o nome pareceu adocicar a sua boca. — Cumpriu seu propósito e me trouxe o que eu queria.
Fitou a Moeda de Eros em sua mão.
— A Lótus de Perséfone era uma mentira poética, não acha? Mas isto… isto é muito real.
Ela se agachou ao lado de Hermes, o rosto uma máscara de curiosidade e um poder antigo. Teseu, preso pelas sombras, só podia assistir, o horror crescendo em seu peito ao perceber a profundidade da traição a que haviam sido submetidos desde o início.
Hermes cerrou os dentes.
— Eu vou… te matar… — ele prometeu, a fúria lhe dando uma centelha de força.
Circe riu, um som genuíno e divertido. — Será mesmo?
Ela ergueu a mão livre sobre o corpo caído de Hermes. Sombras começaram a se juntar em sua palma, se contorcendo, se condensando em uma esfera de pura escuridão, crepitando com um poder que prometia aniquilação. Hermes a encarou, seu corpo quebrado incapaz de reagir, esperando o golpe final.
Foi então que outra voz soou na cripta. Uma voz que não pertencia àquele lugar de morte.
A esfera de sombras na mão de Circe crepitou, pronta para extinguir a pouca vida que restava em Hermes. Ele a encarou, seu corpo quebrado incapaz de reagir, esperando o golpe final.
Foi então que um som, como o de um tecido se rasgando, cortou o ar. Atrás de Circe, o próprio negrume de uma sombra no chão pareceu se dobrar sobre si mesmo, abrindo-se como uma ferida. Do portal de escuridão trêmula, uma figura tropeçou para dentro da câmara.
Era Ágatha.
Mas não era a mesma menina que eles haviam deixado na clareira. Estava mais pálida, mais magra, e havia olheiras profundas e arroxeadas sob seus olhos, que estavam vermelhos e inchados pelo choro. Seu rosto estava abatido, uma máscara de exaustão e uma dor que parecia antiga demais para seus ombros jovens. Ao ver a cena de carnificina, e Circe prestes a executar Hermes, o pavor em seu rosto deu lugar a uma urgência desesperada.
— CIRCE, PARE! — O grito dela foi agudo, cheio de pânico. — Se fizer isso o acordo está acabado!
Circe parou, a esfera de sombras ainda pulsando em sua mão, e se virou lentamente, não com surpresa, but com a leve irritação de uma mestra sendo interrompida por uma aluna impertinente.
— Acordo? — Circe perguntou, a voz falsamente doce.
Ágatha deu um passo à frente, as lágrimas agora escorrendo livremente por seu rosto abatido. — Você disse que se eu concordasse… — Ela começou, a voz num tom afrontoso, mas algo pareceu pará-la a meio caminho. Ela gaguejou, levou as mãos aos olhos abatidos e chorou. — Já não foi o bastante tirar Sêneca de mim?
As palavras caíram sobre o silêncio da câmara como pedras em um túmulo. Teseu, ainda preso pelas sombras, encarou a menina, o horror da revelação o atingindo com mais força do que qualquer golpe. Hermes, do chão, olhou para ela, a traição e o sacrifício em suas palavras uma nova camada de agonia sobre a sua própria.
Circe suspirou, uma aquiescência irritante, e a esfera de sombras em sua mão se dissipou. — A menina tem razão. Um acordo é um acordo. — Ela se virou para Hermes uma última vez. — Considere-se com sorte hoje, Arauto. Mas não me procure. O jogo que eu jogo agora é para jogadores completos, não para peças quebradas.
Ela estendeu a mão livre para Ágatha, um convite silencioso. A menina, com uma última olhada de pura dor para Hermes e Teseu, a pegou. Juntas, a feiticeira e a criança recuaram para o véu de sombras de onde Ágatha havia surgido. A escuridão as envolveu, não como uma porta que se fecha, mas como a noite que engole o último raio de sol, e então, elas se foram.
Por um longo momento, o silêncio na câmara foi absoluto. As vinhas de sombra que prendiam Teseu se desfizeram em fumaça. O garoto caiu no chão em um baque e sentiu sua consciência se esvair, a exaustão finalmente o alcançou. Hermes também sentiu quando sua cabeça caiu para trás contra o chão de mármore da cripta.
Horas se passaram. A escuridão na mente de Hermes cedeu lentamente, não para a luz, mas para a dor. Uma dor surda e profunda em cada fibra de seu ser. Ele abriu os olhos. O teto da câmara era um borrão de pedra e sombra. Ele tentou se mover, mas seu corpo não obedeceu, um peso morto sobre o mármore frio.
Foi então que percebeu. Havia um calor em seu peito, um contraste suave com o frio que emanava de suas próprias veias. Ele virou a cabeça com dificuldade. Teseu estava ajoelhado sobre ele, as mãos espalmadas sobre seu torso. Uma luz verde fraca, a cor do musgo sob a primeira luz da manhã, fluía das palmas do garoto para o corpo de Hermes. Os dedos de Teseu, que Hermes se lembrava de ter visto quebrados e torcidos, agora estavam curados, embora pálidos.
O garoto parecia exausto. Havia olheiras profundas sob seus olhos, e seu rosto, normalmente cheio de uma esperança teimosa, estava abatido, cansado. Ele estava quieto, concentrado em sua tarefa silenciosa.
— O que… o que você está fazendo? — a voz de Hermes saiu como um raspar de garganta.
Teseu não respondeu de imediato. Apenas continuou seu trabalho, e Hermes sentiu a dor aguda em suas costelas quebradas diminuir, não desaparecendo, mas se transformando em uma dor mais suportável.
Após um longo momento, Teseu suspirou, um som de puro esgotamento. Ele retirou as mãos e a luz verde se dissipou. O garoto se arrastou para o lado e se sentou, as costas apoiadas no mesmo pilar que amparava a cabeça de Hermes. Ficaram em silêncio, o único som sendo o eco distante do vento que entrava na câmara. Magno não estava em lugar nenhum naquela sala.
— Você tem um poder estranho, garoto — disse Hermes, quebrando a quietude. Sua voz era de uma curiosidade melancólica, não de acusação. — Desde quando?
Teseu permaneceu olhando para a frente, para o corpo da aberração que jazia inerte no centro da sala. Ele não olhava nos olhos de Hermes.
— Desde a floresta. Antes de chegarmos em Therma.
— E por que não disse nada? — Hermes perguntou.
Teseu demorou a responder. Hermes estava prestes a perguntar de novo, mas parou ao ouvir o som. Um fungado baixo. E então outro. O garoto estava chorando, as lágrimas escorrendo silenciosamente por seu rosto sujo.
— Eu… eu não sabia como explicar — Teseu disse, a voz embargada, ainda sem encará-lo. — Eu não sabia o que tinha acontecido comigo. O que eu era. — Ele fungou novamente, a vulnerabilidade em sua voz uma ferida aberta. — Eu tive medo. Medo de que você… que vocês me olhassem como… como uma aberração. Como aquilo. — Ele gesticulou com a cabeça na direção do monstro. — Tive medo de que me abandonassem por eu ter feito um pacto sem perguntar.
Hermes ouviu em silêncio. Ele olhou para o garoto, para o pavor em sua voz, e a imagem de si mesmo, um deus caído temendo a solidão, se refletiu nos medos daquele menino mortal. O galo roxo e inchado sobre seu olho pareceu pulsar.
O silêncio voltou a se instalar, pesado, até que os soluços de Teseu finalmente se acalmaram. Ele limpou o rosto com as costas da mão e, pela primeira vez, virou-se para encarar Hermes. Seus olhos estavam vermelhos, mas agora continham uma clareza triste e resoluta.
— Eu vou embora, Hermes.
A frase foi tão simples e tão final que pegou Hermes completamente de surpresa. — O quê?
— Eu não posso continuar com você — Teseu explicou, sua voz agora firme. — Eu vi o que aconteceu aqui. Vi como você olhou para aquelas crianças, presas naquele monstro. Para você, a única resposta era a morte. A misericórdia do fim. — Ele balançou a cabeça. — Eu… eu não consigo pensar assim. Eu ainda queria salvá-las. Mesmo que fosse impossível.
— Não havia outro jeito — retrucou Hermes, a exaustão em sua voz.
— Talvez não. — Teseu suspirou. — Mas é sobre isso que estou falando. A forma como vemos o mundo. E esse poder… — ele olhou para as mãos de Hermes, para as veias negras que ainda eram visíveis. — …o poder dessa moeda. Você viu o que fez com Kyros.
— Eu não sou Kyros. — A voz de Hermes parecia um pouco irritada, mas assertiva.
O garoto olhou para baixo por um momento, antes de continuar.
— E eu espero que não se torne.
Ele se levantou, o corpo ainda dolorido, mas a postura ereta.
— Teseu- não, não faça isso. — Hermes sussurrou de forma desesperada, tentou se esforçar para levantar, mas seu corpo parecia anestesiado, agora mais do que quando caíra com o golpe de horas atrás. — Por favor…
— Você percorre um caminho de sombras e noite, Hermes. Eu quero ser uma luz, caminhar ao dia. — O menino parafraseou a profecia da dríade, a compreensão daquelas palavras finalmente assentada em sua alma. — Cuidado, Hermes.
Ele caminhou até a saída da câmara, parando no umbral.
— Se você vier a se tornar um monstro… — ele se virou uma última vez, e em seus olhos, não havia mais medo, apenas a promessa triste de um herói. — …eu terei que pará-lo. Porque sou seu amigo.
Com um último olhar de despedida, Teseu se virou e desapareceu na escuridão dos túneis, deixando para trás o massacre, a amizade e um deus caído, sozinho, para contemplar as cinzas de sua vitória.
O choro tomou conta da cripta, mais uma vez.

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