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    “Então é daí que veio o nome.”

    O mundo, educadamente, conteve o fôlego.

    Em meio a um misto de admiração e uma ponta de desconforto visceral, daquele tipo que se instala na nuca e vai descendo lentamente pela espinha, Ana não sabia se tinha pensado ou sussurrado aquilo. Dava na mesma. Aquele olhar colossal ocupava uma porção obscena do céu visível, tão grande que o horizonte teve que se curvar só para acomodá-lo.

    A íris oceânica possuía um azul profundo que parecia puxar tudo para dentro de si — luz, som, pensamento. Também havia ali uma calma indiferente, como quem observa um inseto curioso antes de decidir se vale o esforço esmagá-lo, ou como se esperasse… o quê? Uma resposta? Uma reverência?

    Não teve tempo para descobrir. Como se não fosse nada de mais — porque talvez realmente não fosse — o olho se fechou. E seguiu adiante. Só então a silhueta emergiu. Uma massa branca, tão gigantesca quanto desnecessária, atravessou a neblina com uma presença que poucos têm coragem de exibir.

    — Claro. Tinha que ser uma maldita baleia… — murmurou, com a voz rouca de quem já perdeu várias brigas internas para a mesma criatura.

    Soltou um grunhido instintivo, entre o desprezo e a resignação. Mas o medo antigo que tinha em relação à espécie não estava lá. Afinal, havia uma diferença importante: não era como nas profundezas misteriosas dos mares, ali, no céu, ela podia vê-la por completo. E era tão deslumbrante quanto uma catedral flutuante, pois, em suas costas, uma cidade inteira se erguia. 

    Inúmeras torres envidraçadas refletiam a luz como se a tivessem domado. O sol fazia brilhar os vitrais em cores surreais que se assemelha a joias baratas — apesar de ainda bonitas —, e muralhas ornamentais se estendiam para além da curvatura de sua carcaça. Tudo parecia absurdamente sólido, como se declarasse ao universo que não devia satisfações à gravidade.

    Uma coroa para um majestoso imperador dos céus.

    Ana olhou, encantada e irritada na mesma medida. Ali estava o objetivo da sua missão, mas não por muito tempo.

    — Droga! — A admiração que congelava seus pensamentos escorreu em direção ao solo como uma marreta suave. — Ei! Acordem, rápido! Precisamos embarcar!

    A reação foi mais instintiva do que consciente. Saiu correndo, com o som da própria voz ecoando na cabeça, enquanto seus olhos buscavam um modo de subir. Foi quando notou as cordas.

    Grossas. Muitas. Centenas delas, descendo dos flancos da baleia como se fossem entranhas transformadas em escadas improvisadas. Algumas quase tocavam o chão, outras seguiam arrastando-se pelas copas das árvores, levando embora galhos, folhas e o senso de realidade de quem assistisse à cena. Não havia plataformas, não havia recepcionistas, nem um simpático aviso de “bem-vindo a bordo”. Era pegar a corda ou ficar.

    “Ótimo. Instruções, Madame… custava? Uma frase casual no bilhete, tipo: ah, e vocês vão precisar escalar uma baleia.”

    Acelerou o passo, cruzando o acampamento onde os outros, como ela antes, pareciam enfeitiçados pela visão. Era compreensível. Não se via todo dia algo que beirava o desrespeito à lógica da forma que uma cidade flutuante fazia.

    — Vocês não ouviram?! Peguem só o que for mais importante, a cidade está quase indo embora! 

    — Do que cê tá falando, Ana? — Júlia esfregava os olhos, o cenho franzido de quem acordou no meio de um pesadelo, mas ainda não descartou a possibilidade de estar sonhando.

    Ana respirou fundo, apontando para cima enquanto recolhia suas coisas com urgência.

    — Ah. — A jovem arqueira engoliu em seco, virou nos calcanhares e desapareceu em direção à barraca.

    Os demais já estavam de mochilas nas costas, correndo em sua direção, meio dormindo, meio sobrevivendo. Ana, vendo que todos estavam quase prontos, soltou os bichos — as pobres capivaras, libertadas com um corte limpo nas amarras — e então ela própria saltou, agarrando-se a uma das cordas com um puxão seco.

    E descobriu, de imediato, que era bem mais difícil do que havia imaginado.

    A corda era feita de um material rude, com textura de cipó vingativo, e mordia as palmas das mãos sem o menor remorso. O vento contra o corpo era forte o bastante para virar o rosto de lado. Ela sentiu os ombros gritarem e as pernas balançarem no ar, quase sem força suficiente para firmarem o agarre.

    Olhou para baixo.

    Felipe estava vindo, a expressão séria demais para a situação absurda. Alex também, embora parecesse se divertir um pouco demais com a escalada. Brayner vinha logo atrás, mordendo o lábio como se segurasse uma maldição. Mas…

    — NÃO ME DEIXEM, FILHOS DA MÃÃÃÃE!

    Júlia corria em campo aberto, saltando por cima de raízes e pedras com uma disposição que saiu sabe-se lá de onde. Gritava tão alto que até os pássaros decidiram evacuar. Sua expressão misturava ódio, pânico e a certeza de que mataria alguém se ficasse para trás.

    Os pendurados se encararam, divididos entre o riso e a preocupação.

    — A gente vai soltar a corda pra ficar com ela, né? — murmurou Felipe.

    — Obviamente. — respondeu Alex, embora seu “obviamente” carregasse uma pitada de decepção. Estava visivelmente tentado a usar isso como chantagem emocional futura com a garota. — Duvido que vai sobreviver se ficar sozinha.

    Mas antes que qualquer um deles agisse, Brayner, balançando a poucos metros dos irmãos, se manifestou.

    — Espera — disse, a voz quase engolida pelo vento. — Ainda temos uma chance…

    Com tais palavras, Ana decidiu, com a sabedoria de quem já vivera demais para se meter em tudo, apenas observar. Não tinha sugestões melhores, nem forças para fingir que tinha. Acenou com a cabeça, deixando que o rapaz resolvesse as coisas do jeito dele.

    Brayner, por sua vez, não explicou absolutamente nada. Apenas tirou da lateral da mochila um pequeno caderno encapado em couro, algo entre um bloco de notas e um diário de campo — o tipo de objeto que parece guardar segredos sérios demais para serem anotados com uma Bic azul, ou divagações bobas de um adolescente. De olhos arregalados, começou a sussurrar.

    Não palavras comuns. Eram frases encadeadas com um ritmo estranho, como se narrasse uma cena de um livro — mas não um livro que ele estivesse lendo, e sim um que estivesse nascendo naquele exato instante, conforme ele falava. As palavras se entranharam no ar como linhas invisíveis puxando alguma coisa, e por um instante, Ana se perguntou se ele estava mesmo lendo ou apenas fingindo para manter a própria sanidade.

    Era claro que nada daquilo estava realmente escrito naquele pequeno caderno, mas seja lá de onde vinham tais citações, o suor escorrendo pelas têmporas de Brayner denunciavam que estava à beira de um colapso emocional. Foi em meio a um quase desmaio que o livro aberto finalmente escapou, escorregando de seus dedos encharcados,  voou em pequenos círculos e desapareceu entre as árvores como uma folha sendo levada pelo vento. O homem suspirou, decepcionado, ajeitou a mochila nas costas e se prendeu ainda mais na grande corda.

    — Deu certo — disse ele, sorrindo. O tipo de sorriso que precede um pequeno milagre.

    E, de fato, algo aconteceu.

    Um vento suave — e bem-vindo — começou a girar em torno do grupo, convergindo com pressa quase respeitosa na direção de Júlia. A ruiva exclamou ao sentir o corpo se tornar subitamente mais leve, como se uma âncora interna tivesse sido retirada sem aviso. E então, em uma corrida que mais parecia salto de fé, lançou-se na direção dos demais.

    Ana arregalou os olhos. Até aquele momento, Brayner não havia explicado muito sobre sua habilidade. E, com o mínimo de tato que restava em sua alma cansada, ela não havia insistido. Sabia que ele manipulava mana — o que já era suficiente para um grupo carente de magia —, mas ainda tinha dúvidas. Queria uma luta durante a viagem para observá-lo, entender como estava em relação a antiga manipuladora do grupo, mas os dias tinham sido tranquilamente inúteis nesse sentido.

    Só agora, no meio do improviso mais absurdo, é que descobriu: o rapaz era uma variante. Isso sim era uma surpresa. Ficou ansiosa. Era alguém de seu grupo, e não poderia deixar de lado a chance de estudar tal raridade, tão escassa nos poucos livros que tinha à disposição.

    Mas não agora, pois agora o assunto era Júlia. A ruiva ainda parecia longe demais, e a tensão congelou por um segundo o sangue de quem assistia. Foi quando Alex, bufando como quem aceita que a estupidez dos outros é um fardo constante — e bem consciente de sua própria —, enrolou a corda nas pernas, esticou-se ao máximo e, no último segundo, agarrou a garota pela cintura.

    Com esforço visível, conseguiu se erguer, girando o corpo e jogando Júlia sobre o ombro como quem carrega um saco de batatas particularmente agressivo.

    — Mais cuidado, idiota! — resmungou, a raiva um disfarce apressado para o medo que ainda martelava o peito. Não queria parecer grata. Nem vulnerável. Sabia que a culpa era sua, então escondeu o rosto, como quem tenta guardar a dignidade junto com os gritos que quase soltou.

    Se estabilizou com dificuldade, enquanto o mundo, borrado pelo vento, passava rápido demais para permitir uma quantidade decente de dignidade.

    Foi Felipe quem quebrou o clima morno de sorrisos tortos que aos poucos começava a se instalar.

    — Todos estamos aqui, isso é ótimo, mas… e agora?

    Alex piscou, confuso.

    — Como assim “e agora”? Agora a gente sobe, não?

    — Com que forças, espertão? Eu só tenho um braço. Se eu soltar… bom, não acho que precise desenhar.

    — É a qualificação pra entrar em Leviathan — disse Brayner, com a casualidade de quem achava que isso era um dado básico de ficha técnica. Todos se viraram para ele, confusos. — Que foi? É conhecimento comum. Quando vi que vocês eram rank E e estavam tentando esse tipo de missão, achei que tinham um plano genial pra essa parte…

    Envergonhados por terem ignorado as histórias que cresceram ouvindo — ou por nunca terem prestado atenção nelas —, os olhares se voltaram para a líder da equipe, em busca de qualquer centelha de direção.

    — Eu… sabe como é… não pensei que ia ser tão alto.

    Não teve coragem de acrescentar que nem sequer sabia que Leviathan era uma baleia voadora.

    Houve silêncio.


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