Capítulo 21: Velhas amizades
Ao final de incontáveis degraus, Jasper, o Caçador de Ossos e Kaern adentraram o Templo de Narhma, caminhando entre pilares colossais, estruturas que já não sustentavam mais nada, como se o tempo lhes houvesse roubado o propósito.
— Que lugarzinho sinistro, não acha? Parece que, a qualquer momento, um fantasma vai pular em você — comentou o Caçador, no mesmo tom despreocupado de sempre.
Jasper, porém, não reagiu à provocação. Manteve o semblante distante, como se estivesse preso a pensamentos profundos.
— Esquece… acho que já tem um bem na minha frente — completou o ciclope, com um meio sorriso.
De repente, o som estrondoso das engrenagens do portão da pirâmide girando ecoou por todo o templo, fazendo Kaern saltar de susto, os olhos brilhando em alerta.
O Caçador apenas riu da cena; já estava acostumado ao jeito medroso do lobo metálico.
Em poucos segundos, a entrada do templo se escancarou, exalando uma névoa espectral escura e esverdeada, carregada de uma energia densa e opressora.
Os passos pesados do Ceifador ecoaram por todo o subsolo, como se apenas sua presença fosse suficiente para abalar a estrutura inteira daquela Zona Selvagem.
Quando, enfim, a figura do Undead se revelou, toda a pressão no ar se dissipou, dando lugar a um silêncio estranho, quase sereno.
Por um instante, Jasper e o Ceifador se entreolharam. Se aquele ser realmente desejasse lhes causar algum mal, ambos sabiam que precisariam reagir no mesmo instante.
O Malware avançou em direção a eles. Correntes de bronze oxidado envolviam seus membros, e o sangue negro que escorria das feridas cintilava à luz esverdeada da névoa.
Ainda assim, sua expressão calma e quase cadavérica permanecia inabalável.
Parou diante dos três. Sua postura esguia em nada diminuía a presença imponente que emanava.
Por alguns instantes, apenas a respiração pesada daquela criatura ressoou pelo templo, enquanto uma fina gota de suor deslizava pelo rosto tenso do Vulto Negro.
— Bem-vindo de volta, Condor. É bom te reencontrar, velho amigo… mesmo que nós dois estejamos presos entre a vida e a morte neste momento, haha… — soltou um riso fraco, estendendo a mão na direção de Jasper, oferecendo-lhe um simples aperto de mãos.
Diante do temido Ceifador, mestre dos Bestiais do subsolo, Jasper não sabia como reagir ao ser tratado como um velho conhecido.
Manteve-se imóvel, encarando a mão cadavérica estendida diante dele. Hesitante, acabou retribuindo o gesto.
O silêncio constrangedor o incomodava, mas a aura suave e quase tranquilizante do Undead dissipava qualquer resquício de ameaça.
— Peço desculpas por não tê-lo trazido diretamente até aqui desde o início. Devido ao movimento constante, foi difícil encontrar uma brecha para que as centopeias agissem.
— Eu ainda não entendo… quem é você? E por que estava me esperando? — perguntou Jasper, confuso com o nome pelo qual fora chamado: Condor.
O Ceifador recuou alguns passos, soltando a mão do garoto e observando o grupo à sua frente.
— Meu nome é Osíris, pelo que me lembro. E, de certa forma, sim… eu estava aguardando sua chegada. Fiz uma promessa de guardar este templo até o retorno de Condor, e ele está aqui. — Seus olhos se fixaram no elmo do Vulto Negro.
— As coisas escalaram de nível bem rápido. Eu nunca imaginaria encontrar um remanescente do maior grupo opositor da Igreja Amaldiçoada em um estado tão decadente — interveio o Caçador, posicionando-se à frente de Jasper. — Mas parece haver algo errado nessa história.
Kaern rosnou, sentindo a tensão de antes retornar como uma avalanche durante a simples troca de olhares entre o ciclope ósseo e o Ceifador silencioso.
Os segmentos de sua couraça brilharam em um vermelho intenso.
— Condor foi morto há décadas. Eu vi com meus próprios olhos. Quer dizer… quem não viu? Foi uma execução pública da Igreja Amaldiçoada. Mesmo que esperasse uma reencarnação, já teriam corrompido todos os circuitos dele.
— Então foi isso que aconteceu com você, líder… — lamentou Osíris, num tom melancólico.
Aquilo só aumentou a desconfiança do Caçador, que decidiu continuar forçando o assunto até arrancar uma resposta convincente.
— E então? Por que caralhos você ficaria esperando por tanto tempo, igual a um idiota, o “retorno de Condor”, sendo que as chances disso acontecer eram praticamente nulas? — questionou, com veneno evidente na voz.
A acidez causou desconforto até em Jasper, mas não arrancou um único resmungo do Ceifador.
Após um longo silêncio, Osíris levou a mão ao peito e arrancou com força uma das placas de bronze oxidado.
Sangue negro escorreu em jatos grossos, revelando um enorme buraco onde o Núcleo, partido em pedaços, mal se sustentava.
O fraco brilho âmbar do cristal pulsava de forma irregular, e a visão causou repulsa imediata no Caçador; o estômago se revirou, algo raro para quem já havia presenciado horrores de todo tipo.
Núcleos mutantes podiam se regenerar parcialmente, mas aquele estado ultrapassava qualquer distorção natural: era sofrimento puro, sem descanso, sem cura.
— Sofri um golpe quase letal de um Amaldiçoado durante uma missão. Perdi grande parte da minha força… e das memórias contidas nos meus Códigos de Essência — explicou Osíris, sem demonstrar tristeza ou ódio, apenas uma serenidade fria.
Recolocou a placa de bronze sobre o peito e prosseguiu:
— Normalmente, a radiação concentrada em mim se dissiparia, e as informações que constituem meu ser retornariam ao Núcleo Catalisador que me deu origem. — Um turbilhão de fórmulas e projeções etéreas se formou diante dele. — Mas, com meu domínio sobre o assunto, consegui reunir manualmente os códigos restantes… apenas o bastante para me manter ativo, o suficiente para cumprir minha promessa.
Depois de tamanha explicação, a reação do Caçador não poderia ser outra: um bocejo longo e sonoro, cheio de desinteresse.
Virando-se para Jasper, exibiu um sorriso torto.
— Olha só… eu nunca pensei que fosse encontrar alguém mais infantil que você, moleque — zombou, dando alguns passos preguiçosos até uma pilastra próxima. Encostou-se nela, cruzando os braços e fechando os olhos. — Continuem aí, eu vou tirar um cochilo.
Com um suspiro aborrecido, Jasper tomou a frente da discussão. Sinceramente, preferia que o Caçador ficasse fora da conversa.
— Você está debilitado, eu entendi. Mas por que me chamou pelo nome do seu amigo? Tudo isso é novo pra mim… — disse, tentando manter a calma.
— Porque vejo claramente os Códigos de Essência de Condor dentro de você — respondeu Osíris, com a voz firme e sem hesitação. — Eles estão entrelaçados ao seu próprio Núcleo. Ele me deixou uma mensagem: que eu esperasse pelo seu retorno, não importando como.
O coração de Jasper disparou; um pânico silencioso o tomou por completo.
A ideia de carregar parte de alguém que nunca conheceu era sufocante, como uma mão invisível apertando sua garganta.
— O quê? Não… isso não pode ser verdade — murmurou, a voz trêmula.
Suas mãos, cobertas de poeira e arranhões, tremiam sem que percebesse. O aperto involuntário na cruz de prata quase partiu a corrente.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha, e seu Sentido do Vento, mesmo enfraquecido, captou apenas um zumbido oco, como se o mundo inteiro houvesse desaparecido ao redor.
Sem perceber, seus joelhos cederam. Quando notou, já estava no chão, apoiando as mãos sobre o concreto frio, marcado por inúmeras rachaduras, assim como sua própria mente.
A cada minuto que passava, Jasper afundava mais no abismo da incerteza. Não sabia quem era, nem de onde viera, muito menos se algum dia teria uma vida melhor.
Mas a pergunta que mais o feria ecoava em silêncio, como um corte invisível: O que eu realmente sou?
Antes que as lágrimas pudessem escorrer por seus olhos marejados, uma mão pousou em seu ombro num gesto de consolo.
Erguendo a cabeça, Jasper viu Osíris.
Os olhos cor de âmbar do Ceifador, mesmo refletindo a decadência que o consumia, ainda carregavam uma determinação inabalável.
— Qual é o seu nome, amigo? — perguntou com voz serena, quase paternal.
— Meu nome é Jasper… só Jasper.
A luz da lua acima do templo parecia se intensificar a cada palavra do Desperto.
— Essa é a prova de que você é único. Para nós, Undeads, a morte nunca foi o fim, mas sim um ciclo de reaproveitamento, onde somos tratados como máquinas recicláveis, forçados a ceder corpo e alma aos poderes corrompidos.
Ele fez uma breve pausa, a voz carregada de um respeito quase reverente.
— Já você… carrega um brilho diferente. Algo que desafia o destino imposto pelos outros à Mana. Por isso, peço, com toda a humildade que ainda me resta: não permita que o legado de Condor se perca.
O Ceifador estendeu a mão novamente, não em saudação, mas em convite. Seus dedos, longos e rígidos como garras de bronze gasto, tremiam levemente.
— Para despertar as habilidades adormecidas em você e liberar todo o potencial do seu poder, é necessário sincronizar seu Núcleo de Mana com um receptor. No seu caso… a armadura — falou sem pausas. — Está disposto a aceitar esse processo?
Jasper respirou fundo, o ar frio preenchendo seus pulmões.
— Certo… me diga o que devo fazer para alcançar essa tal Sincronização.
Os olhos do Vulto Negro brilharam em um azul profundo por entre as sombras do elmo, refletindo a luz pálida da lua.
Num movimento decidido, ele aceitou a mão do Ceifador e se pôs de pé.
As risadas brincalhonas dos Coletores ecoaram pelas escadarias. Eles surgiram saltitantes, cada um carregando uma parte da armadura do Vulto Negro e exibindo-a com orgulho.
Junto delas, traziam sacos cheios de um material metálico, ou algo muito parecido.
Osíris sorriu, satisfeito ao ver que os preparativos estavam quase concluídos.
De forma despreocupada, os Bestiais espalharam o conteúdo dos sacos pelo chão: pequenas plaquinhas feitas de um material semelhante a metal negro, cobertas por fórmulas e códigos gravados por toda a superfície.
O Caçador despertou no mesmo instante ao ouvir o barulho daqueles artefatos preciosos.
Até mesmo Kaern, que normalmente se mantinha de lado, satisfeito em ser apenas um espectador enquanto nenhuma ameaça surgisse, foi atraído pelo brilho das plaquinhas.
— Puta merda! Quem diria que esses anõezinhos tinham uma fortuna dessas acumulada debaixo da terra? — exclamou, com o olho vidrado nos pequenos artefatos.
A energia concentrada que cada uma delas emanava instigava os instintos do lobo metálico e inflamava a ganância do ciclope ósseo.
— O que é isso? — indagou Jasper, sem entender o motivo de tanta comoção.
— São Fragmentos de Essência — esclareceu Osíris, enquanto as peças da armadura de Jasper flutuavam em sua direção junto das plaquinhas negras. — Servem para moldar a própria realidade da forma que quisermos… claro, se você for poderoso o bastante para tal feito.
Esses itens surgiam naturalmente nas Zonas Selvagens, mas era um processo lento e ainda era trabalhoso demais extraí-los sem perda significativa de energia.
Apenas um estalar de dedos do Ceifador foi o suficiente para que uma maré de códigos emergisse dos objetos, formando uma espiral de dados ao redor deles.
O ciclope ósseo ficou surpreso; Mestres de Códigos eram raros de se encontrar e, mesmo havendo alguns espalhados pelas diversas Zonas Selvagens, Osíris ainda se destacava entre eles.
Esse cara… nem está usando as mãos para manipular tanta informação. Que poder mental absurdo!
— Pronto, os preparativos estão concluídos. — Fez uma pausa, o tom mais contido. — Sobre sua pergunta, Jasper… eu não sei.
— O quê?
— Para ser sincero, dediquei a maior parte do tempo em que permaneci escondido neste lugar a recuperar o conhecimento que perdi. — Abaixou a cabeça, desconfortável. — Até ensinei um pouco sobre Códigos a esses pequenos Bestiais; aprendem rápido. Mas, infelizmente, as informações sobre como realizar a Sincronização se perderam. Tudo o que sei é que preciso eliminar as impurezas antes de iniciar o processo.
Jasper respirou fundo. Seu olhar percorreu as peças negras que flutuavam ao redor, agora pulsando com os códigos recém-implantados por Osíris.
A superfície metálica parecia viva, vibrava sutilmente, como se abrigasse um coração próprio.
— Eu aceito o risco. Vamos acabar logo com isso.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.