Deu-se a manhã.

    A luz era repelida pelo colosso, que esbanjava névoa como se fosse gás em protesto público.

    O vento trazia um leve frio, suficiente para arrepiar. E lá estava Cael, com o olhar erguido, perdido na imensidão daquela coisa.

    Na sua cabeça, aquilo jamais poderia ser real. Parecia arrancado de um filme antigo de aliens que assistira na adolescência, em uma madrugada insone.

    — Caramba… — murmurou, a boca entreaberta, quase babando, enquanto se espreguiçava preguiçosamente. Os olhos semicerrados brilhavam em um misto de fascínio e certo cansaço — Como diabos isso é funcional?

    — Somente Elohim, sabe!

    À porta que dava para o campo de treino, Asael já o aguardava.

    Estava ali havia uma hora, braços cruzados, a postura impecável e firme, mas o olhar denunciando um quê de impaciência.

    Como uma sentinela… ou, talvez, a namorada ciumenta que observa cada distração.

    — Assombração! — pousou a mão sobre o peito — Ehr… parece… antiquado, não?

    — Parece antiquado! — a voz firme — mas nenhuma arma do seu mundo jamais faria o que essa faz. Se não fosse essa estrutura, o que se passará será nada mais que um massacre… como no passado!

    Cael bocejou, coçando a nuca.

    — Passado? — resmungou, tentando afastar o torpor — Vocês não param de pensar nisso nem por um segundo, né? Sempre guerras, guerras e mais guerras!

    — Nossa sociedade foi construída sobre guerras — Seu tom não era de orgulho, mas de constatação — A sua também, Cael. Vocês só… preferem se esquecer. Cem anos atrás não é nada para a memória de um povo, não acha?

    Suspirou fundo, quase bufando, mas manteve-se ereta. Seu semblante, por um instante, se suavizou antes de endurecer novamente.

    Mas o jovem deu de ombros, erguendo as sobrancelhas em um ar de deboche.

    — Eu nem tinha nascido, soh!

    — E precisava? — inclinou-se levemente para a frente, como se as palavras fossem adagas lançadas contra a comodidade do rapaz — Não sente o peso disso em você? Ou prefere simplesmente ignora?

    — Se não aconteceu comigo…

    — É, tá bom! — o cortou, antes que o afundasse em mais decepção. Em dois passos firmes, já estava de volta ao centro do campo de treinamento como todas as outras manhãs — Você ainda precisa aprender muita coisa, Cael! Mas me deram a tarefa de ensinar apenas como se defender… e usar o que está dentro de si. Nada de aulas de psicologia. Não mais!

    — Ah… que pena! — deixou escapar uma risada curta — Então, velhote, fala aí… o que vamos fazer? Bater em mais cães?

    — Não! — levantou a mão, fazendo um sinal de paz com os dedos.

    — Ih… lá onde eu vivo, isso dá até morte.

    — Duas lições! — o tom sempre firme, quase solene — Primeiro, vou te ensinar a controlar sua manifestação. Depois, vou te mostrar suas fraquezas.

    — Fraquezas? Mais?

    — Sempre há. Mesmo hoje… eu, Elyah… qualquer um está sujeito a tê-las. Mas falo de fraquezas que todo Eco possui. Conhecê-las pode ser a diferença entre sobreviver ou não em combate.

    — Hm… que complexo!

    — Um pouco — inclinou-se levemente para frente — Veja, há três tipos de fraquezas às quais qualquer guardião está sujeito. A primeira… e a mais perigosa: a propagação interrompida. É quando o que você manifesta não alcança seu adversário. Como um som abafado… isso compromete totalmente os efeitos da sua técnica.

    — Ehr… então eu não consigo atacar surdos?

    — Não é isso. — negou com um gesto lento — É preciso ir além. Chamamos de estado de não-presença. Sombras e deuses conseguem reduzir suas percepções em momentos-chave, dissociando-se do ambiente ao redor para não serem afetados.

    — Fudeu, então. O que eu posso fazer? Treinar, treinar até estar no nível deles, ou…

    — Você não vai só manifestar. Vai dizer o que está manifestando — Sua voz soou quase como uma ordem — Vai aumentar a intenção. E, assim, será impossível não afetar seu adversário.

    Fez uma pausa, respirando fundo.

    — Não é apenas sobre ouvir, Cael… é sobre ser atingido por um ataque cheio de intenção. Isso, e não outra coisa, define uma batalha.

    — Dizer? Preciso… sei lá… tipo em animes? — coçou a cabeça, sem acreditar na própria pergunta — Dizer o nome do golpe? Como um feitiço?

    — Exatamente! Espera… — tossindo de forma teatral, como quem lembra de repente que deixou o arroz no fogo antes de sair — Mas não é só gritar palavras no ar. Precisa ser uma ligação mental com aquilo que está prestes a fazer. Como um jogo de conexões: uma palavra, um gesto, um pensamento. É isso que transforma intenção em feito.

    — Tá… — Assentiu devagar, ainda desconfiado.

    — A segunda fraqueza — prosseguiu, a voz mais grave — Você vai precisar levar seu raciocínio a uma conclusão lógica. Todo Eco possui ramificações: como se manifesta, em que estado, quais efeitos gera… Tudo isso depende do seu alinhamento mental. O que ele é? O que pode ser? Se não houver coerência, não vai a lugar nenhum.

    — Ehr… agora você me bugou!

    — Água, por exemplo — levantou um dedo, como um professor paciente — Pode congelar, evaporar, ferver, e ainda assim continua sendo…?

    — Água?

    — Isso! — sorriu de leve; talvez fosse alegria, talvez orgulho… ou apenas o espanto de ver um burro carregando a carga sozinho — O mesmo vale para o seu Eco. Não importa se é uma aura protetora, uma transformação sólida ou um ataque devastador, ele precisa se manter fiel à própria essência. Ser… e estar de acordo com o que é.

    — Mais ou menos entendi… Mas vai, solta logo esse terceiro aí. Treinar com você é pior que fazer prova do Enem.

    Suspirou alto, revirando os olhos.

    — Certo. O terceiro… — endireitou-se — É o seu aprendizado pessoal. Vai precisar falar com o seu interior e descobrir como evoluir suas próprias capacidades!

    Seus olhos pousaram em uma pedra próxima; uma ventania repentina a deslocou.

    — Viu?

    — O quê? Hã? — Piscou, confuso, sem dar importância.

    E o calvo suspirou, quase fechando os olhos de cansaço.

    — Caramba… — incrédulo — Eu acabei de ordenar aos meus ventos que movessem a pedra. Ehr…

    — E? — Arqueou as sobrancelhas, indiferente.

    — Você é um animal mesmo — bateu a mão no rosto, já sem paciência — Eu não manifestei nada além de intenção, e meu Eco agiu por mim. Entendeu agora? Isso porque eu tenho afinidade com ele.

    O olhar dele se tornou mais sério.

    — É isso que você terá de fazer. Não só depender de si… mas se unir ao que carrega dentro. Porque, Cael, só assim você vai sobreviver! Entendido?

    — Ehr… não?

    E então suspirou fundo, fechando enfim os olhos por um instante.

    É… hoje seria longo. Como todos os outros dias.

    Treinadores espirituais e seus alunos, repetindo lições, esperando revelações que nunca vinham.

    No fim, nada diferente da escola.

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