Dhaha

    A silhueta da criatura era imensa. A queda da nuvem de poeira apenas a tornou mais ameaçadora.

    Pele acinzentada e robusta, recoberta por músculos enormes e deformados. Marcas de costura cruzavam seu corpo, ligando forçadamente as partes mal encaixadas e não compatíveis. Um machado metálico no braço direito, o mais robusto, e uma adaga no esquerdo.

    Era como ver um quebra-cabeça mal encaixado e pútrido.

    Não bastava a criatura horrenda, pequenos esqueletos humanoides cercavam as pessoas. Alguns portavam armas, de pequenas espadas e escudos até arcos e flechas. Outros portavam correntes e cordas, aprisionando alguns. Um exército ósseo em miniatura.

    Dhaha não se importou com a aparência daquela coisa. Cruzou a praça em uma velocidade atlética, desviando das pessoas que corriam por suas vidas, e golpeando esqueletos no caminho. Eram eles a causa da correria.

    Mesmo com uma espada tão pesada, o garoto se movia sem nenhuma restrição. Não demorou a chegar no gigante, golpeando suas mãos para desarmá-lo.

    O choque do golpe ecoou pelo local.

    — Pra algo tão grande, você até que é rápido — disse Dhaha com um olhar preocupado. A criatura havia o bloqueado.

    A troca de golpes começou. Ambos tinham armas pesadas, seus golpes não eram rápidos, mas o choque da maça com a montante fazia o ar tremer.

    Dhaha não tinha ativado seu controle de carma, mas seu corpo sentiu o peso de lutar com algo tão grande. Precisava tirar vantagem de algo.

    — Força bruta não vai me salvar agora, né? — Dhaha se mantinha em pose de ataque, mas já encarava a realidade.

    — Roaaaaar!!!

    Ele não estava lutando com algo humano.

    O gigante golpeou o garoto, que quase teve sua montante estilhaçada ao tentar se defender. Com uma sequência de golpes esmagadores, Dhaha podia se contentar apenas em se mover de um lado ao outro, como uma presa encurralada.

    Os golpes da criatura eram pesados, cada acerto rompia o chão abaixo de Dhaha.

    Sempre que o garoto tentava devolver o golpe, outro já estava preparado. O ritmo do douradiano estava completamente quebrado.

    “Essa almôndega não dá abertura. O jogo é teu por acaso?”.

    Dhaha saltou o mais longe que pode, se afastando de seu inimigo e buscando tempo para se recuperar.

    “Essa coisa tá golpeando igual louco, e sem padrão. Não posso me descuidar.”.

    Abaixou a espada até a cintura, fechou os olhos, puxou o ar pelo nariz e soltou pela boca. Ao abrir seus olhos, seu olhar queimava como um sol, seu corpo estava coberto pelas chamas brancas.

    Avançou sobre a criatura. O zumbi tentou impedi-lo, mas se viu golpeado pelos flancos. A montante de Dhaha não estava mais em suas mãos, tinha dado lugar a um par de espadas curtas.

    — [Metalóxis]!

    Dhaha começou a pressioná-lo. Os cortes não eram profundos, mas eram mais velozes e constantes que os anteriores.

    O som da carne esponjosa se partindo era como música. Cada corte arrancava um pedaço, que ao invés de espirrar sangue, apenas se separava do resto, como uma grande costura.

    Aquela coisa era uma imensa montanha de carne podre amarrada. Praticamente não estava vivo.

    Não demorou para que o gigante começasse a recuar. Seu corpo era muito lento para competir com armas rápidas.


    Mirena

    — Aventureiros! Em posição! — gritou um dos aventureiros, alto, de cabelos longos e pele levemente bronzeada. Provavelmente um veterano. — Avante!

    Ao ouvir do comando, os mercenários sacaram suas armas. Espadas e arcos foram postas em prática, partindo e perfurando esqueletos.

    Mirena não perdeu tempo, sacou uma espada jogada de canto e correu na direção das criaturas, destruindo alguns esqueletos distraídos. 

    Sua arma brilhava com uma aura branca, como se estivesse encantada. Mesmo para quem não tinha muito, o carma era um grande potencializador.

    Ao observar a ardenteriana, os aventureiros sabiam que não podiam deixar ela fazer todo o trabalho sozinha. Alguns começaram a liberar seus carmas, todas aquelas auras iluminaram o campo de batalha. Mirena e Dhaha não eram os únicos com truques nas mangas.

    A guerra estava estabelecida. A horda de esqueletos avançava em cima dos aventureiros, que revidavam com tudo que tinham.

    O som das espadas se chocando era o único que pairava no local.

    “Veteranos são incríveis”, pensou a garota.

    “O caramba que vamo perder de novo pra uma andarilha!”, os veteranos pensaram ao mesmo tempo. Já não estavam tão bêbados quanto antes.

    Mirena voltou sua atenção para a luta principal, Dhaha parecia ter a vantagem, mas aquela coisa não cairia tão facilmente. Ele não venceria sozinho

    Todos estavam ocupados lidando com a horda de ossos vivos, ela teria que ajudá-lo sozinha.

    Ao longe, Dhaha brilhava imerso em suas chamas brancas, como um incêndio vivo e pálido. Era uma visão capaz de deixar qualquer um de queixo caído.

    “Ele tá segurando aquela coisa sozinho…”.

    Uma rápida olhada foi o suficiente para que Mirena percebesse, a praça estava em frangalhos. Bancos e mesas de madeira completamente destruídos, tendas em chamas por conta dos lampiões, pessoas caídas pelo chão. 

    O cheiro do álcool dos Barris quebrados se espalhava pelo local, se misturando ao cheiro quente da fumaça e o cheiro ferroso do sangue.

    — Espera. É isso! — concluiu a garota, deixando seus pensamentos escaparem.

    Correu para perto de uma taverna. A praça já não estava mais lotada de pessoas gritando, seu caminho estava praticamente aberto.

    Vasculhou o local, estava desolado. Mesas viradas, cadeiras espalhadas pelos cantos, canecos quebrados. Um caos.

    Atrás do balcão, encontrou alguns barris de cerveja e os rolou até a entrada. Pegou um lampião no caminho, estava aceso com o pouco óleo que restava.

    Plano montado na entrada, procurou por um arco e flechas, não demorando para se ver pronta para começar.

    — Devagar… — repetia ela, abrindo o barril e levemente banhando algumas flechas.

    Aproximou a ponta da flecha da chama do lampião, incendiando-a. Cuidou para não queimar suas mãos ou o arco e engatilhou a flecha.

    O tilintar do metal de seu braço deixava clara a falta de firmeza. Não tinha tanta prática com sua prótese ainda.

    Respirou fundo, deixando o ar circular por seu corpo e seus membros relaxarem. Seus olhos brilharam em carma, o mundo a sua volta pareceu mais lento.

    — Três… dois… — Ergueu o arco, a chama não duraria muito, mas seria mais que o suficiente. — Um!


    Dhaha

    Pedaços de carne podre voavam pela praça. Dhaha portava um tridente em suas mãos, mantendo as mãos deformadas longe de si.

    — [Metalóxis]! — disse ele, avançando contra o inimigo.

    Um pulso ecoou pelos arredores, seu carma de Dhaha envolveu a arma. Sua forma se distorceu em plena visão, o que antes era um tridente agora se tornava um grande machado de batalha, partindo o braço desarmado da criatura em dois.

    Todos sentiram aquilo novamente, a mesma sensação que Mirena emanava ao usar seu poder. A força misteriosa que movia o mundo, a manifestação de seu servo. Dhaha era um mago.

    O machado voltou a mudar sua aparência, assumindo a forma de uma espada e um escudo, aparando o forte soco do gigante que veio em seguida.

    “Só isso não vai matar ele. Preciso dar um golpe decisivo”. Dhaha sabia que os aventureiros estavam ocupados com o exército de esqueletos, não conseguiriam manter as formações se o zumbi passasse por ele.

    O sol já dava suas caras, tornando aquela praça não mais tão escura. Como um pássaro vermelho, algo cruzou os céus do campo de batalha.

    Em um piscar de olhos, a criatura em sua frente teve seu ombro esquerdo em combustão. 

    — Roaaaaar!!! — Pela primeira vez a criatura urrou de dor.

    A perna direita acompanhou o ombro, atingida por uma seta brilhante.

    — Fogo?

    Quando se deu conta dos arredores, Dhaha reparou nas ossadas carbonizadas que se espalharam pela praça.

    O terceiro alvo foi a ferida aberta no braço esquerdo do monstro.

    Dhaha voltou para postura de combate 

    — De onde ela tira essas ideias? — falou ele, aproveitando o sofrimento do gigante e o cortando nas regiões em chamas.

    Não muito longe dali, outra flecha flamejante foi disparada. Se aproveitando os barris de cerveja, Mirena produzia a munição incendiária em larga escala.

    Em uma mistura de dor de fúria, a criatura soltou sua arma no chão, tentando apagar o fogo em seu corpo. 

    “Uma abertura!”

    Dhaha se aproveitou do peso da maça e a usou como escada, se impulsionando para cortar o restante do braço esquerdo da criatura.

    — Roaaaaar!!! — A criatura não sangrava, mas podia sentir dor. Sua pele queimava por cada flechada, o transformando em uma imensa fogueira viva. As chamas foram rápidas em se espalhar para a carne apodrecida.

    O garoto golpeou as juntas da perna do monstro, o forçando a se ajoelhar. Suas armas se moldaram em uma outra vez, uma grande montante.

    Ficou a espada no centro do peito do gigante, o rasgando em direção ao ombro. Por último, ergueu sua espada o mais alto que pôde, golpeando o pescoço da criatura como uma estrela cadente e separando sua cabeça do corpo.

    — Queime no inferno!

    A cabeça atingiu o chão, declarando o final da luta. As chamas fizeram o resto do trabalho, carbonizado a imensa montanha de carne podre.

    Dhaha se voltou para a praça, os aventureiros terminavam de suprimir os esqueletos. 

    Mesmo que alguns tivessem escapado, o ataque havia sido repelido com sucesso. Os aventureiros saíram vitoriosos sobre seus inimigos.

    — Nós… conseguimos… — Dhaha cambaleou em direção à multidão. Seus músculos relaxaram e seu corpo pôde sentir o peso da luta que ocorreu.

    Os outros aventureiros não tinham ideia de como o garoto ainda estava de pé, e ainda por cima não tinha perdido ou quebrado nenhum membro durante o embate. Dhaha era definitivamente um monstro.

    Mirena o avistou ao longe. Não tardou em abrir uma das caixas de sua barricada, carregando um saco de grãos a frente de seu corpo

     Os aventureiros abriram o caminho para sua passagem, ser a campeã de um torneio tinha suas regalias. Ao chegar próximo do garoto, arremessou o saco para os pés dele.

    — Você parou aquela coisa sozinho, meus parabéns — disse a garota, também ofegante. Sua prática com arco nunca foi das melhores, seu corpo estava exausto.

    — Eu… não sei do que… você tá… — A exaustão tomou seu corpo. O douradiano despencou em cima do saco de grãos. Mal conseguia sentir seus braços e pernas — falando…

    — Tsk! Exibido.

    Mirena se virou para as pessoas, muitas choravam por terem repelido o ataque, outras choravam em cima de cadáveres estendidos no chão. Uma vitória ainda era uma vitória?

    As casas agora estavam acabadas, sonhos haviam sido destruídos. O cheiro carbonizado da fumaça se misturava à essência ferrosa do sangue, invadindo os pulmões daqueles que ainda estavam no local. A festa estava arruinada, a cidade estava arruinada.

    A angústia amarrou seus peito, apertando como uma corrente. Ela não tinha uma resposta para isso, mas tinha certeza de uma coisa.

    Ela se aproximou de uma das ossadas, pegando um dos membros carbonizados. Ele esfarelava com o vento, soltando um leve brilho branco.

    Sua expressão se fechou, era a confirmação que mais temia.

    “Essas coisas eram feitas de carma, isso foi planejado por um mago…” 

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