A Matriarca Zyab desceu da nave com passos firmes, como se cada movimento carregasse o peso de uma sentença. O piso metálico da rampa vibrava sob os saltos, como se algo mais denso que a gravidade preenchesse o hangar.

    O cargueiro, outrora uma embarcação de transporte comum, agora se erguia como um palácio-fortaleza em órbita, o chamado Villagio. Tão grande que jamais ousaria cruzar a atmosfera de um planeta. Uma cidadela suspensa, feita para projetar poder. Para lembrar a todos que estavam ao alcance da vontade de uma herdeira de  uma Casa soberana.

    As luzes de pouso refletiam no chão, desenhando geometrias pálidas ao redor dos pés de Zyab. Ao vislumbre de sua figura, a tripulação interrompeu qualquer atividade, fazendo imediatamente o sinal dos três dedos na testa e no coração. Um corpo coletivo de devoção e medo. O ar, já saturado pelos recicladores, pareceu ganhar outra densidade.

    A máscara cerimonial, branca como a de uma boneca de porcelana, e o véu escarlate deixavam claro quem ela era. Em seu manto liturgias estavam bordadas em dourado como cicatrizes que percorriam as costuras, traçando símbolos de autoridade e de condenação.

    Um secretário, com a túnica sóbria dos servos administrativos, apressou-se em recebê-la. Mantinha a cabeça baixa, quase em submissão absoluta.

    — Levante a cabeça, filho.

    — Obrigado, Matriarca… Lady Aliah a aguarda. Se puder me acompanhar.

    — Mostre o caminho.

    Ele se pôs à frente, os passos rápidos e contidos, cuidando para não demonstrar pressa nem desleixo.

    Estava acostumado a lidar com figuras de poder.

    Zyab avançou pelos corredores, notando a transição gradual. Do aço cru das áreas técnicas ao mármore artificial, tapeçarias e painéis dourados nas alas internas. Um luxo que, para olhos treinados como os dela, não passava de encenação para iludir os mais impressionáveis.

    Mas não deixava de ser incrível. Quase poderia esquecer que ainda estava dentro de uma nave, cercada por blindagem e armamento orbital.

    Saindo dos corredores, o secretário a conduziu até uma sala ampla. Um jardim interno, oculto no ventre daquela fortaleza de metal. Árvores reais, flores de cores vivas, uma fonte de água corrente. Zyab reconheceu de imediato a pulsação de energia vital. Nada de flora sintética.

    Aquilo era vida de verdade. Caríssima. Obscenamente fora de lugar.

    Sentada num banco de pedra, no centro daquele cenário improvável, estava Lady Aliah. Quem a visse ali, com aquela silhueta perfeita, jamais imaginaria que ela já passava dos cento e sessenta anos.

    Sua pele dourada e cabelos prateados reluziam sob a luz filtrada. E antes mesmo de se aproximar, a Matriarca percebeu o leve estremecer no corpo da mulher. Veias sob a derme acendiam-se num brilho etéreo. Uma dose de Aether líquido. Um prazer e uma necessidade ao mesmo tempo.

    — Lady Aliah, a Matriarca Zyab está aqui para vê-la — anunciou o secretário, antes de recuar com uma última reverência contida.

    Aliah se ergueu com um sorriso medido. Executou uma meia mesura, calculada, polida.

    — Muito obrigada por atender meu chamado, Altíssima.

    — Não foi nada. Ainda tinha uma dívida com sua mãe… — respondeu Zyab, a voz firme, como quem dita veredictos, não frases de cortesia. — O que deseja de mim, minha filha?

    — Descobri uma conspiração, Altíssima. Algo que pretendo usar… para melhorar minha posição dentro da família.

    Zyab a olhou de esguelha. Uma pausa breve.

    — Intrigas das Casas não são assunto nem da Igreja… nem do Império.

    — Nem mesmo quando envolvem contrabando de Aether? — retrucou Aliah, o sorriso afilando-se como uma lâmina.

    Bastou uma única frase para cortar o ar entre elas e atingir o centro do interesse da Matriarca.

    Aether.

    A palavra pairou no ambiente como uma sentença.

    A substância mais valiosa e perigosa do Império. Tóxica, viciante, transformadora.

    Fonte de poder, de maldição e de heresia. O aether não era apenas um recurso. Era um dogma materializado.

    Alimentava as máquinas impossíveis do Império, as armas das Legiões, poderes dos psíquicos, os rituais da Igreja e as mutações que separavam nobres de plebeus. Alterava carne, mente e espírito.

    Seu comércio? Um monopólio absoluto. Controlado com mão de ferro pela burocracia imperial. Nenhuma gota extraída, refinada ou transportada fora das vias autorizadas passava despercebida. Ou sem punição exemplar.

    As Grandes Casas Soberanas tinham o direito, concedido e revogável, de explorar aether, mas toda distribuição e comercialização era feita exclusivamente pelo Estado. Casas que falhassem nas cotas de produção podiam perder território, contratos, até mesmo a existência política.

    Contrabandear aether… era desafiar o próprio fundamento do Império.

    Zyab permaneceu em silêncio por um longo segundo. Um silêncio frio e calculado, apenas o suficiente para deixar claro que a conversa agora tinha mudado de escala.

    Quando por fim falou, sua voz veio baixa, medida, mas com o peso de uma execução:

    — Fale… minha filha. Quero ouvir cada detalhe, mas saiba que não sou uma inquisidora.

    Aliah fez um gesto discreto com a mão.

    — Por favor… me acompanhe.

    As duas atravessaram uma porta lateral, entrando em uma sala de estar silenciosa, envolta por tapeçarias de seda espessa e escura. Esculturas de obsidiana e vidro negro adornavam cantos e prateleiras, projetando reflexos opacos sob a iluminação indireta. O ar tinha um leve aroma de incenso sintético, metálico, quase imperceptível. Mas o que realmente capturou a atenção de Zyab foi a estação de comando no centro da sala.

    Vários monitores holográficos projetavam gráficos, códigos e fluxos de dados em velocidade estonteante.

    Era quase impossível entender algo com o olhar nu. Ligados à estação, dois homens pálidos e magros estavam sentados em poltronas reclináveis. Seus crânios, desproporcionais e bulbosos, exibiam translucidez suficiente para que pontos de luz cintilassem sob a pele, como relâmpagos microscópicos viajando através de suas sinapses. Cada fio que saía de suas cabeças vibrava com uma leve pulsação azulada. Eram calculadores.

    — Tenho monitorado todo o tráfego de aether que sai e entra nas propriedades da Casa Sylaris — disse Aliah, com a naturalidade de quem falava de clima. — Como terceira filha, estou sempre à procura de brechas, formas de subir na hierarquia. E finalmente encontrei algo. Algo pequeno… mas real. Eu e meus calculadores identificamos um desvio. Infinitesimal, dentro da margem de erro. Mas consistente.

    Zyab se aproximou devagar, os olhos percorrendo a sala, depois fixos nas figuras conectadas às máquinas.

    — E você quer que eu lhe empreste o peso do Império para validar a denúncia — afirmou, e não perguntou.

    — Exato — sorriu Aliah. — Poderia agir sozinha, claro. Mas não sei o que vou encontrar. E ter uma Matriarca ao lado envia uma mensagem que nenhum malfeitor conseguiria ignorar.

    — Posso ver as evidências?

    Aliah se moveu até seus calculadores, seus passos medidos, felinos. Ajoelhou-se suavemente ao lado de um deles e, com a ponta das unhas, acariciou o contorno do rosto quase inumano. Como se despertasse alguém de um sonho leve.

    Os olhos do homem se abriram devagar, úmidos e confusos.

    — Mostre para a Altíssima os relatórios dos desvios de aether — disse ela, com uma doçura dissonante à frieza do ambiente.

    — Claro, herdeira — respondeu ele, voz lenta, arrastada, como se ainda estivesse entre dados e carne.

    Um dos monitores mudou de ritmo. Códigos foram substituídos por gráficos detalhados, colunas de tempo, mapas logísticos, registros cruzados. Aliah conectou um tablet ao terminal, transferiu a exibição para o visor portátil e entregou-o à Matriarca.

    Zyab passou os olhos com atenção sobre cada tela. Seus dedos se moviam com precisão, como se estivesse habituada à linguagem dos números. A cada nova página, seus olhos se estreitavam. E, sem perceber, começou a assentir com a cabeça.

    Aliah observava com o canto dos olhos. Quando viu o gesto, sorriu. Sabia que tinha vencido.

    — Concordo com seu pedido, Lady Aliah — declarou a Matriarca, por fim. — Estarei com você nessa investigação. Quero garantir que tudo seja feito dentro dos preceitos imperiais. Me diga… quem são os infelizes?

    — Ainda não sei — respondeu Aliah, se recostando em uma cadeira de espaldar alto. — Mas pretendo descobrir. Agora que tenho você comigo… não será difícil.

    Zyab inclinou levemente a cabeça.

    — Estou com você nessa caçada, herdeira. E com isso, considero minha dívida com sua mãe quitada.

    O sorriso de Aliah cresceu, lento, encantador. Tinha o brilho frio de alguém que acabava de mover uma peça essencial no tabuleiro.
     
     


    Em Glasurith, Rob Veyne conversava com dois homens de confiança no antigo escritório convertido em centro de operações. Saluh, seu primo e chefe da segurança das minas, e Caine, o capataz geral, estavam ali desde o amanhecer.

    — Alguma informação nova? — perguntou Rob, olhando de um para o outro.

    — Nenhuma — bufou Caine, coçando a barba por fazer. — É como se a mina tivesse simplesmente sumido do mapa. Nem sinal do assentamento. Nada.

    — Se o prato do satélite caiu, não teremos qualquer tipo de contato — murmurou Saluh, cruzando os braços. — Precisamos ir até lá pessoalmente.

    Rob assentiu, pensativo. O rosto marcado pelas noites mal dormidas endureceu ainda mais. Caine era seu braço direito há anos, conhecia as rotas subterrâneas melhor que ninguém. Já Saluh, apesar de não ter servido nas Legiões como ele, era um veterano do exército comum. Alto, de presença intimidadora, mantinha a disciplina como um credo.

    — Vou pedir para prepararem o transporte — disse Rob, por fim. — Sal, reúna um time confiável. Quero seguranças que saibam o que fazem. Pode incluir de tudo: veteranos, técnicos armados, batedores. Mas se fosse só uma antena avariada, a manutenção local já teria resolvido. Alguma coisa deu errado lá dentro.

    Saluh estreitou os olhos.

    — Piratas?

    — Pode ser. Mas não me convence — Rob respondeu, o tom firme. — Estamos no coração do território. Se fosse nas bordas, tudo bem. Mas aqui… não é comum.

    — Vou reunir os homens — respondeu Saluh, já sacando seu comunicador.

    — Quero que Ciel vá também — disse Caine, direto.

    Rob ergueu uma sobrancelha.

    — O garoto? Tem certeza?

    — Ele precisa endurecer. Não vai aprender nada só levantando peso e seguindo Lyra pra todo lado.

    Saluh virou o rosto para Rob, em busca da palavra final.

    Rob refletiu por um instante. Ciel ainda era cru, mas vinha mostrando vontade. E se quisesse sobreviver naquele mundo, teria que encarar o risco cedo ou tarde.

    — Está bem — disse, por fim. — Mas ele vai sob minha responsabilidade.

    — Vai fazer bem a ele — disse Caine, já se levantando. — E se tiver problema mesmo, vamos querer alguém da família vendo com os próprios olhos.

    Rob ficou em silêncio por alguns segundos, antes de responder, quase para si mesmo:

    — Eu vou junto, é minha obrigação. Vamos descobrir o que aconteceu lá. E se alguém se meteu nas nossas minas… vai pagar por isso.

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