Capítulo 5: O profeta
Lady Aliah, terceira filha da Casa Sylaris, atravessou os aposentos com a altivez de quem domina não só o ambiente, mas o tempo e as vontades alheias. Os corredores polidos da nave Villagio, seu templo móvel, reverberavam o som delicado de seus passos. Sua pele dourada reluzia sob a luz artificial, refletindo um brilho preciso, quase calculado. O sorriso largo, que esculpia com perfeição seu rosto belo e inumano, anunciava mais que simples boas novas.
— Trago notícias, Altíssima — disse, sem conter certo prazer nas palavras.
Zyab ergueu-se devagar do divã onde repousava, um gesto estudado, envolto em veludo negro e incenso sutil. Seu olhar atravessou Aliah como uma lâmina reta, sem pressa. A herdeira avançou com elegância fluida, fez uma mesura impecável, e prosseguiu:
— Encontramos registros de uma nave que coincide exatamente com o que procuramos. Todos os desvios cruzam com as datas em que ela transitou pelos setores investigados. Contratei observadores em dois entrepostos comerciais onde ela costuma operar. Ambos relataram indícios claros de comércio ilegal de aether.
— Temos que denunciar a heresia — declarou Zyab, seca como poeira.
— Eu sei, Matriarca. Já os orientei a encaminhar as provas aos escritórios policiais locais. Assim que eu colocar minhas garras nesse cargueiro, claro.
— Posso tolerar esse atraso — disse Zyab, num tom cansado. — Quais os próximos passos?
— Descobrir as rotas com precisão e esperar o reaparecimento do sinal. Quando surgir, emboscamos. Intercepção cirúrgica. E de preferência mantendo boa parte da tripulação viva. — O tom de Aliah endureceu levemente. — Preciso saber de onde estão extraindo esse aether. Mortos, infelizmente, não sabem contar histórias.
Zyab assentiu, mas não sem hesitar. Algo naquele entusiasmo mal disfarçado da herdeira a incomodava.
— Certo… mas…
Aliah soltou uma risadinha breve, quase debochada, como se tivesse esperado por essa deixa.
— Acontece que eles não se deram nem ao trabalho de esconder o trajeto. Na verdade, neste exato momento, estão em rota direta para um de nossos territórios de patrulha. Podemos surpreendê-los em menos de meio dia estelar.
Zyab arqueou uma sobrancelha, sutilmente.
— Deixe seus homens prontos. Eu estarei preparada.
Pouco tempo depois, um aviso sussurrou pelos corredores da Villagio. A voz do sistema tinha o tom sereno de um sacerdote, mas o peso de uma sentença:
— Alvo identificado. Trajeto confirmado. Proximidade estimada: quatro milhas orbitais. Tempo para intercepção: doze minutos.
Na ponte de comando, Aliah observava o holograma da nave-alvo flutuar em miniatura, suspensa no centro do salão como um inseto preso em âmbar. Era um cargueiro civil adaptado, com um casco carcomido e brasões apagados. O registro: 18KUH1977. Dois séculos de serviço. E, ainda assim, equipado agora com propulsores de nova geração, claramente instalados para uma coisa só, fuga.
— Eles não imaginam o que os espera — sussurrou Aliah, com uma satisfação que não fazia questão de esconder. — Vou pegar todos eles. Um por um.
Zyab entrou no hangar doze 12. Sua máscara perolada cintilava sob as luzes do hangar, e o véu escarlate fluía como sangue, esvoaçando atrás de si. Em vez da túnica cerimonial longa, trajava uma versão curta, que deixava visível a armadura justa, selada sobre o corpo como uma segunda pele. Estava pronta. Para guerra ou para julgamento.
Os homens da segurança dos Sylaris, enfileirados, vestiam trajes brancos protetores que brilhavam com perfeição simbólica. Ao vê-la, curvaram-se em sincronia, fazendo o sinal dos três dedos, em reverência e obediência.
— Alvo confirmado? — perguntou Zyab, sem rodeios, sua voz transmitida pelo comunicador com nitidez glacial.
— Confirmado — respondeu Aliah. — Os sensores térmicos identificam mais de trinta a bordo. E há compartimentos com blindagem incomum. Algo foi modificado.
— Se transportam aether de forma ilegal, isso era esperado — disse Zyab.
— Vamos seguir como combinamos. Eles vivem se colaborarem. Morrem se resistirem. Mas quero os nomes — disse Aliah, com um leve brilho predatório nos olhos. — Principalmente os dos produtores. Os que roubam dos Sylaris.
Zyab assentiu, contida, e Aliah sorriu. A caçada se aproximava.
O capitão da unidade de elite Sylaris se adiantou, a voz firme e reverente:
— Altíssima, abordagem preparada. Esta é a Unidade Ophis. À sua disposição.
— Então vamos. Evitem mortes desnecessárias. Mas sejam rápidos. — Sua ordem caiu como sentença.
Com precisão ritual, entraram em uma nave menor e esguia, a carapaça escura desenhada para infiltração orbital. As portas do compartimento se abriram, e o silêncio do vácuo tomou o ambiente como um suspiro de reverência. A nave deslizou do hangar com elegância letal, girou no eixo e disparou, cortando o espaço como uma flecha sagrada.
Logo pairavam sobre o cargueiro contrabandista. Uma nave velha, mas com alma rebelde.
A voz do piloto ecoou:
— Travamento magnético em curso.
Um solavanco seco sinalizou o impacto. O casco selou. Zyab se ergueu, sacando duas adagas curvas, de lâminas escuras como tinta cerimonial.
— Maçaricos ativados. Abertura em andamento. Pressão equalizada — anunciou o piloto.
No centro da nave menor, a escotilha se abriu com um estalo. A passagem era estreita, projetada para infiltração rápida, mal maior que um homem.
O capitão da Ophis se moveu para descer primeiro, mas Zyab ergueu uma mão. Um gesto simples, absoluto.
— Há duas presenças esperando abaixo. Sei onde estão. Deixe comigo.
E antes que alguém pudesse protestar, deixou-se cair pelo vão.
Os tiros vieram como previsto.
Se fosse outro, teria morrido no impacto. Mas Zyab não era um qualquer, consagrada pelas Câmaras, treinada sob o olho do Véu. Ela caiu girando, desviando com uma rotação precisa, os disparos raspando onde ela não estava mais.
Em um único movimento, arremessou as adagas. Cada uma encontrou seu alvo com precisão fatal. Uma atravessou o visor do primeiro atirador. A outra perfurou a junta exposta do segundo. Ambos tombaram sem tempo de gritar, os corpos batendo no chão com o som seco da rendição final.
Uma corda deslizou do buraco acima. Por ela desceram os homens da Unidade Ophis, espalhando-se como um enxame treinado. Invadiram os corredores da nave contrabandista com método e disciplina. Poucos ofereceram resistência. Alguns foram abatidos. A maioria largou as armas antes mesmo de ver quem os enfrentava.
Mas a cabine de comando era outra história.
Era o último reduto. E também o mais perigoso. Um disparo errado ali poderia comprometer não apenas a missão, mas a integridade da nave.
Do interior da cabine, uma voz grossa trovejou:
— Não vamos nos render. Se tentarem entrar, explodimos tudo.
Um dos soldados avançou, tentando alcançar a lateral da porta avariada. O mecanismo hidráulico a mantinha semiaberta, um vão pequeno demais para invadir, e grande o suficiente para morrer.
O disparo veio rápido. Uma escopeta plasmática. O soldado foi atingido no peito. O impacto abriu um buraco fumegante que o lançou para trás. Ele caiu já morto.
Imediatamente, uma sirene começou a tocar. Luzes vermelhas piscavam pelos corredores.
— Autodestruição ativada — rosnou Zyab, os olhos ardendo por trás da máscara.
Sem hesitar, lançou-se pela fresta.
Ainda no ar, sua voz irrompeu, densa, imperiosa, carregada por algo que não era apenas som, mas um comando ancestral:
— Parem e se entreguem.
A ordem não foi apenas ouvida. Foi sentida. Como um peso no peito. Como um gelo sob a pele.
As armas caíram ao chão com um tilintar coletivo. Os ocupantes da cabine estavam paralisados. A imposição psíquica da Matriarca fizera efeito.
Os soldados invadiram logo atrás, rendendo os contrabandistas sem resistência.
Zyab caminhou até o homem na cadeira de comando. Era um veterano, cabelos longos, cavanhaque grisalho, olhos marcados por derrotas e pequenas vitorias. Mas havia algo em seu olhar: não medo. Nem ódio. Apenas… ausência.
Um vazio estranho. Como se já estivesse longe dali. Como se não fosse mais ele.
Zyab parou diante dele, seu olhar cruzando o dele como uma lança.
— Desative a autodestruição.
Ele obedeceu sem dizer palavra. Os dedos trêmulos digitaram a sequência no console. Um alerta soou, e a contagem foi interrompida. O risco, suspenso.
Dois guardas o imobilizaram. Ele não reagiu. Estava em transe. Ainda não tinha acordado o suficiente.
Dentro de uma mina, nas entranhas de Glasurith, Rob, Lyra, Ciel e alguns homens da Casa Veyne continuavam a exploração dos níveis inferiores da instalação de número 19, tentando, em meio à poeira e ao silêncio quebrado, entender o que, de fato, havia acontecido naquele lugar condenado.
Desceram mais alguns túneis. Os corredores estreitos estavam mergulhados em escuridão opressiva, exceto por uma luz de emergência que piscava em vermelho a intervalos regulares, pulsava como um aviso sinistro, mais perturbador que protetivo, mais angústia que proteção.
Foi então que o som grave voltou. O tambor.
Cada batida parecia vibrar nos ossos, reverberar no peito como um coração monstruoso, doente, enterrado sob a rocha viva.
Lyra soltou um grito baixo, abafado pelo capacete.
Ciel, trêmulo, deu um passo atrás.
Mas continuaram.
As batidas cresceram em volume e presença. Um ritmo lento, infernal, que não vinha apenas do som, mas da própria terra, como se o mundo estivesse sendo cavado de dentro para fora.
Era como um chamado. Como se algo os esperasse.
Avançaram em formação cerrada, rifles erguidos, respiração controlada. Os corredores se fechavam ao redor deles, como se o próprio ventre da mina se recusasse a deixá-los passar incólumes.
Ciel foi o primeiro a notar movimento.
Dois corpos surgiram das sombras, emergindo de trás de uma tubulação rompida, nus, deformados, cobertos de tatuagens feitas com ferrugem misturada ao próprio sangue. Os olhos tremiam nas órbitas, as pupilas dilatadas demais. As bocas, inchadas, balbuciavam ruídos desconexos. Mas havia um brilho no olhar: dor. Ódio. Devoção.
— Contato! — gritou Rob, a voz cortando o ar.
Os disparos vieram secos. Curto alcance. Fogo e aço.
Um dos seres caiu imediatamente, o peito aberto num rombo que fumegava. O outro correu, gritando como uma criança ferida, até ser atingido por Ciel. Tombou com um ruído oco, tremendo até o último espasmo.
O cheiro de carne queimada preencheu o ar.
— Isso não são apenas deformidades — murmurou Lyra, os olhos arregalados. — Eles… parecem organizados de alguma forma, pretendem alguma coisa.
Mais alguns metros adiante, encontraram sobreviventes. Quatro mineiros presos numa cela improvisada, construída com barras metálicas e pedaços de andaimes. Estavam desnutridos, os olhos fundos e sem brilho, a pele encardida pelo pó e pelo medo.
Um deles não possuía mais olhos. Nem língua.
Outro tremia sem parar, repetindo em voz baixa, como um mantra esquecido:
— Ele vai voltar… ele vai voltar…
— Quem? — perguntou Rob, se agachando.
— O Homem do Véu… — respondeu um terceiro, a voz falha e úmida. — Ele traz visões. Leva os fracos… ou os que resistem…
— Não há ninguém lá em cima. Onde estão todos? — insistiu Rob.
— Ou mudaram… ou foram levados ao fundo… com ele…
Silêncio.
Rob trocou olhares com Ciel, depois com Lyra, e por fim com seus homens.
— Fiquem aqui. Voltaremos — disse, mesmo sabendo que era uma promessa que talvez não pudesse cumprir.
Continuaram a descida, agora mais devagar. O caminho levava a uma passagem estreita que se abria em um espaço amplo, uma espécie de mezanino natural, escavado na rocha com ferramentas improvisadas.
Abaixo deles, a trinta metros, uma fogueira ardia, alimentada por óleo, trapos e talvez… algo mais.
As sombras projetadas pelas chamas não pareciam humanas.
Rob fez sinal para que todos se abaixassem, protegidos pelas saliências da parede.
O tambor estava lá.
Imenso. Macabro. Feito de couro esticado, translúcido, de um tom doentio que Lyra nem quis imaginar de onde fora retirado. Cada batida ecoava com um peso que não era apenas acústico, era espiritual, distorcido.
Era um culto.
Centenas de corpos se amontoavam no fundo da câmara. Sujos. Deformados. Ajoelhados. Balbuciavam em uníssono uma prece incompreensível. Alguns tinham a pele rachada como cristal trincado, outros exibiam costuras de cobre e pedaços de ferro fundido no lugar de membros.
Crianças e mulheres estavam presas em andaimes enferrujados, penduradas como oferendas. Guardas vigiavam-nas com olhos vidrados e ferramentas transformadas em armas.
E no centro, elevado sobre uma plataforma feita de tubos corroídos, restos metálicos e ossos fundidos, estava ele.
O Homem do Véu. O profeta do abismo. O primeiro deformado.
Vestia um manto costurado com farrapos de uniformes dos mineiros, tecidos rituais e faixas marcadas com inscrições caóticas. A pele visível brilhava com um tom azulado profundo, como se estivesse impregnada de aether.
Seus braços eram longos demais, e do peito emergiam dois braços menores, trêmulos, convulsivos, como se lutassem por independência.
Onde antes havia um olho, agora havia um cristal dourado preso com arames, enfiado na órbita vazia. Exalava um brilho quente, mas morto. A pele suava um líquido negro, viscoso, que gotejava pela estrutura metálica sob seus pés.
Quando ele falou, sua voz ecoou com força anormal — uma ressonância que parecia atravessar a carne e atingir direto a mente.
— Meus filhos… não sejam mais servos dos titãs que devoram nosso sangue em nome de uma civilização podre!
O véu foi rasgado! E o aether nos revelou o que verdadeiramente somos: deuses embrionários, libertos das correntes da humanidade!
A câmara rugiu em resposta.
Gritos, balbucios, orações invertidas. Uma fé desfigurada, feita de espasmos e êxtase.
— Os puros que resistem serão purificados. As crianças, nossas sementes. As mulheres, nossas pontes. E os que restam… cordeiros para o renascimento.
Lyra tremeu ao escutar as palavras. Ciel tentou tapar seus ouvidos por cima do capacete. Os homens atrás de Rob todos exibiam feições assustadas.
Rob recuou lentamente, com a respiração presa no peito. Seus olhos estavam fixos naquela cena.
Fez sinal para os outros. Precisavam sair. Precisavam de reforços. Precisavam de um novo plano.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.