Capítulo 21 - O sol que nunca tocamos - parte 1
A voz corta o ar, no entanto, meu cérebro demora para processá-la. Não é a voz familiar do homem dos múltiplos olhos. É mais grave, mais cortante, carregada de uma autoridade que não pede licença.
— Cinco minutos! Entrem na broca!
Korvak assume o comando. O gigante de 3 metros, que mais parece um tronco de árvore em sua fúria silenciosa, agora dá as ordens com a calma de quem sabe que o poder já lhe pertence.
O homem de múltiplos olhos, aquele que foi comandante até então, desaparece na sombra, deixando para trás não só sua autoridade, mas tudo o que eu conhecia: um vestígio de fragilidade esmagado pela imensidão do desconhecido.
Meus pés se movem no impulso coletivo, seguindo os outros exploradores rumo à cápsula, porém, uma pergunta corrói minha mente: por que eu?
Nunca pilotei uma broca. Nunca fui um navegador. A única coisa que sei fazer é dissecar cadáveres e catalogar mortes.
O metal da cápsula se fecha ao meu redor com um clique definitivo. Não sei se isso é salvação ou caixão.
Uma faixa luminosa vaza dos olhos do Oráculo, cortando a penumbra da cabine, com a aparência de um farol distorcido, e se fixa em mim.
— NÃO SE PREOCUPE. VOCÊ FOI FEITO PARA ISSO. — diz Oráculo, com a precisão exata de sempre, fazendo da falha que quase o desligou algo irrelevante, um simples erro temporário.
Começo a rir. Não é alegria: é o riso desolado de quem finalmente compreende o escárnio imenso do universo. Durante toda a minha vida, Axion sempre disse que eu era especial, contudo, nunca disse que especial significava descartável.
— Feito!? — murmuro para o vazio metálico que me cerca — Não treinado. Não escolhido. Feito!
O sabor das palavras é amargo, fazendo com que minha língua pareça corroída pela verdade que sou incapaz de engolir, e cada som saindo da minha boca assemelha-se a uma ferida aberta.
— Dez minutos! Posições para partida!
A urgência me atinge, tal qual uma pressão crescente nas paredes do túnel, apertando tudo ao redor. Não há tempo para dúvidas, não há espaço para medo. Só resta a opção de seguir em frente, mesmo sem saber para onde.
Meus olhos varrem a câmera de controle com atenção real. Três assentos dispostos em triângulo dominam o espaço. Hesito diante deles.
— Ali é seu lugar — diz uma voz às minhas costas.
Sigo a direção indicada pelo dedo estendido de Korvak. O assento central.
Sento-me e o assento me abraça como se me conhecesse desde sempre. Cada curva da espuma se molda às minhas costas, cada apoio encontra exatamente o ponto certo da minha coluna. É reconhecimento mútuo entre criatura e máquina.
Mas quando olho para os controles à minha frente, uma ironia amarga me invade. As alavancas e botões poderiam ser hieróglifos antigos. Não me dizem nada. E agora estou curioso, quase ansioso, para descobrir de que forma essa contradição vai se resolver.
— Sete minutos! Sistemas de segurança ativando!
O zumbido dos sistemas ao redor é interrompido por um ruído quase imperceptível. Movimento nas periferias da minha visão.
Viro a cabeça e vejo duas sombras se destacando da escuridão que engole os cantos da câmara de controle. Conforme se aproximam da luz dos painéis, suas formas se definem: duas crianças.
Eles se posicionam ao lado dos assentos restantes. Sem uma palavra, sem um gesto, se acomodam simultaneamente. O sincronismo é perturbador.
Elas me encaram com olhos que não piscam. Meu corpo se enrijece. Não porque sejam crianças. Mas porque são crianças que conheço.
Dois meninos-soldado.
Meu coração não para, ele implode, engolindo a si mesmo em uma espiral de angústia que me consome por dentro.
O mesmo rosto angular que descia pelos tubos do laboratório de Axion, semana após semana, ano após ano. Os mesmos olhos vazios que eu desmontava na mesa de cirurgia, procurando respostas entre órgãos ainda mornos, catalogando os implantes, tentando entender o que havia falhado desta vez.
— Vocês… — minha voz raspa igual a lixa contra madeira — Vocês são iguais às que eu… às que eu desmontei.
— Às que Axion matou? — completa a criança à minha esquerda, sem hostilidade, sem acusação. Apenas constatação fria.
E isso é infinitamente pior do que raiva.
Olho para a outra criança à minha direita, no entanto, ela nada diz. O silêncio entre nós corta o ar com mais urgência que qualquer comando que já tenha sido dado.
— Cinco minutos para ignição!
O som dos mecanismos de segurança me traz de volta à realidade imediata. Dispositivos metálicos começam a se mover ao meu redor com precisão cirúrgica, criando uma sinfonia de cliques e zumbidos que ressoa pelos meus ossos.
Um clique. As braçadeiras se fecham.
Segundo clique, mais pesado, mais definitivo. Agora, um segundo conjunto de segurança me prende totalmente, uma medida para garantir que a fuga é impossível, nem mesmo na morte.
A cicatriz no meu pescoço não coça. Ela queima. Como se reconhecesse algo familiar no ar, algo que dormia e agora desperta faminto.
Minha mão vai ao losango marcado na pele e…
…o mundo explode em sensações que não são minhas.
Medo. Raiva. Uma fome antiga por algo que tem nome, contudo, que não ouso pronunciar: liberdade. E por baixo de tudo isso, uma solidão tão profunda que ameaça me engolir.
Não são meus sentimentos. São delas. E através desta conexão estranha e íntima, percebo que elas podem sentir os meus também.
…as crianças-soldado olham diretamente para mim.
Não é olhar casual. É conexão.
— Vocês sentem o que eu sinto? — indago, sabendo que a resposta já está estampada em seus rostos.
A outra criança-soldado corrige a primeira com um olhar, pela primeira vez deixando de mostrar o vazio e expressando uma compreensão terrível:
— Sentimos o que você se recusa a sentir.
A voz dela me rasga, fria e implacável, trazendo à mente o som de um osso quebrando. Durante anos, sonhei com o que aconteceria se um daqueles corpos na mesa de Axion de repente falasse. Agora sei: é devastador.
A criança sentada à minha esquerda, seu olhar refletindo os mesmos horrores que eu presenciei, não hesita. Sua voz sai, implacável, feito um eco perfeito da fala da outra:
— Como o medo.
— E a raiva.
— E a vontade de resistir.
O silêncio que se segue não é vazio. É carregado de verdades que nenhum de nós ousa verbalizar. E enquanto a contagem regressiva ecoa em nossa mente, percebo que estamos unidos por algo mais profundo que conexões neurais: estamos unidos pela mesma sentença de morte.


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