Capítulo 075 - Orgulho negro!
Capítulo 075 – Orgulho negro!
O local estava silencioso e frio, tal qual uma cripta, com um hálito moribundo que exalava incansavelmente. O recinto era conhecido como sala das emersões, mas volta e meia até mesmo a dona mudava o jeito como chamava o local.
Havia duas longas mesas do mais escuro mogno, polidas delicadamente com um brilho lúgubre quase sepulcral.
Em cada uma dessas mesas estavam dois cadáveres, meticulosamente preparados, com seus corpos pálidos, cheios de adornos negros, com runas escritas por um punhal, ervas e pedras preciosas.
Além do odor da morte, o ambiente propagava alguns cheiros, induzidos para cessar a podridão. Era mirra.
Naquele centro, erguia-se Kassandra, assemelhava-se a uma sacerdotisa negra no meio daqueles dois altares, seus cabelos cobre, curtos e bastante desalinhados estavam presos em seu rosto suado. Aquele manto negro ainda estava em farrapos, arrastando pelo chão do Mausoléu do Sofrimento.
— Hoje me despeço de Aldmond e Phellege completamente, hoje eu darei vida aos seus mais novos propósitos. — Dissera consigo.
Naquelas mãos frias e magras, ela apertava a orbe.
Um vidro translúcido, cujo oscilava entre tons de um roxo tão profundo e negros tão assustadores. Soava como uma prisão de elementos tão poderosos que trafegavam entre as paredes circulares e transparentes.
A mulher fechara os olhos, ocultando os exícios. Murmurou1 em voz baixa.
— Cháthikes, gia na anastitheís xaná…2
A porta pesada fora empurrada, gemeu com o som do ferro forjado, era Rodrick e Cium, que adentraram na cripta não mais silenciosos desde a chegada anunciada pelo ranger.
O homem era alto e magro, parecia uma lança, utilizava um manto negro que arrastava no chão, seu rosto era pálido e vincado. Sombreado por olhos que demonstravam o cansaço. As suas unhas pintadas de preto seguravam levemente uma caixa com algo que pingava sangue do seu interior, na outra mão havia um frasco que se assemelhava a uma seiva negra.
Já a mulher ao seu lado acompanhava com uma postura bastante firme e ereta.
Sua pele pálida brilhava fracamente sob o clarão da lua que passava pelas janelas, que passeavam por toda a cripta e repousavam nas mesas de mogno. Seus cabelos cacheados estavam presos em um coque bastante apertado, que sustentava por um osso humano como adorno.
Nos braços, ela carregava um punhado de raízes escuras, três crânios de corvos, e um punhado de dentes humanos.
— Mestra… Finalmente conseguimos encontrar um coração de Kelpie, foi o ingrediente mais difícil… Estava caríssimo. — Rodrick quebrou o silêncio.
Os Kelpies eram descritos como seres que assemelhavam-se principalmente como cavalos e assombravam diversos rios e lagos em florestas místicas, eram normalmente pretos, embora já existiram relatos de diversas outras coisas. Suas lendas afirmavam que o monstro atraia seres humanos, crianças principalmente, de modo a fazer com que montassem em suas costas. Assim que fossem posicionadas, ele grudava as vítimas ao seu corpo e mergulhava no fundo das águas, afogava e devorava seus alvos.
Por conta da morte da magia como era conhecida, faziam eras que nenhum Kelpie sequer foi visto, não que isso fosse o suficiente para concordar estarem extintos, mas talvez, raros.
Rodrick precisou comprar, e isso advinha de diversos mercadores negros ou pontos de necromancia.
— Ótimo… Deixem metade de cada um desses ingredientes sob os pés, tanto do Espúrio quanto do Pútrido… Depois quero que risquem dois pentagramas, um sobre o outro… De forma que envolva a mim e os corpos. — Dissera Kassandra, ela não abrira os olhos, apenas inclinara a cabeça, como se estivesse esperando que os dois aparecessem logo.
Seus dois criados necromantes prontamente obedeceram. Rodrick desenhara as linhas riscando-as com um osso pontudo, que quando arranhava o chão escuro, soltava um branco poroso, enquanto a Cium colocava as oferendas com uma precisão quase cirúrgica, murmurava em língua morta algo baixo, como se ela estivesse tentando acalmar os espíritos ao redor que rodeavam o trio.
O ar era quase irrespirável, o cheiro de sangue, enxofre e podridão estava muito presente.
— Hoje mais cedo, minha mestra… Um dos guardas reais bateu aqui no Mausoléu, ele procurava por você. — Cium dissera, antes do ritual iniciar.
A Morta-viva não se moveu, mas era perceptível que as veias do seu pescoço saltaram ao escutar:
— Eu pensei que tivesse sido clara quando disse que não desejava visitas até que eu completasse o que pretendo fazer.
— Sim, minha senhora… Por isso, eu… — Cium calou-se rapidamente, ao perceber a energia que seria sugada.
Ela havia dito a palavra proibida, poderia perecer por isso.
— Não me chame de senhora. — Kassandra rasgou a frase como se fosse uma assassina.
Ela inclusive era mais nova que os dois que a serviam, ela odiava ser tratada como se fosse mais velha do que era.
— Me perdoe, mestra… Mestra.
— Ótimo, continue.
— O guarda havia informado que o rei Ayel deseja falar com você. O mais emergente possível.
A jovem de cabelos acobreados cerrou os punhos ao escutar a sua subalterna, sua face praticamente tremulou.
— Que inferno… Não posso simplesmente ignorar o Ayel. Terei de completar o ritual ainda hoje e poderei vê-lo sem que isso interrompa o meu propósito.
A orbe precisava ser dividida, uma das metades deveria ser puramente negra e a outra, puramente roxa. Kassandra decidira que a parte preta residiria no peito do Espúrio, já a parte roxa no coração de Pútrido.
Assim que fossem substituídos os corações por essas essências vivas, eles renasceriam, não como meros fantoches da necromancia conhecida, mas como necromantes dotados de vontade própria.
A matriarca do Mausoléu do Sofrimento respirara fundo, seu manto de farrapos estava ondulando, ela sentia-se pronta para conceder nova vida àqueles dois. O som dos passos de Cium e Rodrick enquanto terminavam de fazer os preparativos eram os únicos estalos no meio do silêncio funerário.
— E os destinos deles, minha senhora? — Rodrick indagava o papel que seria desempenhado pelos mortos reerguidos.
— Cogitei diversas vezes, acredito que quando despertarem vou deixar o Espúrio para cuidar das nossas tropas mortas, como se fosse um general… Já o Pútrido, cuidar das defesas do nosso Mausoléu, com runas mortas.
— Impressionante.
Cium admirava-se enquanto afastava alguns passos para permitir que Kassandra esperasse.
— Sinto a força dessa orbe mesmo estando tão distante, devo dizer que isso vai ser um grande feito, mestra. Nenhum outro necromante no mundo conseguiu fazer algo como isso, minha mestra… Algo dessa magnitude, algo como esse ritual dessa noite. — Completou a subalterna enquanto observava a Morta-viva.
— Não busco algum tipo de reconhecimento, na verdade, o que os outros necromantes têm feito não nos apetece… Outras guildas poderiam ter nos abraçado, mas nada fizeram, se não fosse o Ayel quando alcançamos Sihêon…
Por mais que houvesse um período conturbado e ele não mais existisse, ainda afetava. Não apenas Kassandra, mas todo homem e mulher com conhecimentos de mana negra que a seguia.
Haviam sido expulsos repetidas vezes, caçados e maltratados até o imperador bárbaro estender a mão.
Assim que retomou a atenção, a senhora dos mortos voltou ao seu raciocínio:
— De qualquer forma, esses dois faleceram em circunstâncias que desaprovo… Eu sei que não é meu dever, mas… Dentro de mim, sinto que eles poderiam ter algo a mais.
Kassandra, que agora estava no centro do duplo pentagrama que havia sido meticulosamente riscado mediante sua ordem, ergueu a orbe de vidro acima do seu rosto, aqueles fios cobre da sua franja haviam grudado em sua testa devido ao suor.
As escleras cinzentas permaneciam lá, sem sinal de vida, enquanto a esfera começara a pulsar em suas mãos como se fosse um coração vivo que latejava em diversas ondas.
— Vai começar… — Rodrick alertou a companheira de guilda, recuando ainda mais. Cium imitou.
O chão iluminava-se com diversas ondas de tons arroxeados e negros.
O homem alto magro ajoelhou-se prontamente enquanto espalhara alguns dentes humanos triturados em pequenos círculos ao redor dos cadáveres, entoava alguns cânticos em língua morta, fazia ode a energias malignas e sádicas… Forças abissais que brincavam com a morte.
A mulher com as tranças, à direita, segurava um punhal de osso com uma certa delicadeza, ela inclinava-se para o Espúrio e Pútrido enquanto verdejava, gota a gota, o sangue coagulado que havia conseguido em cima dos cortes abertos no peito dos mortos.
Kassandra inspirou-se profundamente, sua voz ecoara no salão como um rugido:
— Ô mychion tou skotous kai kálymma lēsmēnēmenōn mystēriōn… Hypotáchthēti tē boulē hētis se deuro kalei!3
Naquele instante, ela começara a puxar a energia para o centro da orbe, tentava parti-la ao meio com o poder da sua própria mana enegrecida.
Os braços da jovem estremeceram, diversas veias negras surgiram sob a sua pele, espalhavam-se como raízes daninhas.
Por mais que tivesse feito tanto, a esfera permanecia igual, sem qualquer sinal de avaria.
Uma batalha silenciosa estourou, de um lado, a necromante líder contra a orbe relutante.
— Mestra! O selo do vidro é forte demais, ele tem aguentado suas investidas! — gritou Rodrick com os olhos fundos cheios de terror.
— Não desista, mestra! Não permita que essa essência vença! — Cium gritara, ainda segurando o punhal.
A mulher dos olhos mortos apertou os dentes, os farrapos das suas vestes tremulavam violentamente e seus pés subiam como se ela fosse levitar.
Em um grito rouco, os cabelos cobre começaram a subir, criando clarões negros que explodiam da orbe para fora.
— Eu não irei ceder… — lamentava Kassandra.
Rodrick e Cium sentiram o poder da batalha, poder grande demais para que pudessem cogitar participar.
O homem recuara, usando os braços para proteger o seu rosto enquanto a mulher, ainda com os olhos arregalados, observava as faíscas arcanas e rajadas negras que pulavam da orbe para a Kassandra, queimando a sua pele levemente.
Aquela disputa não encerraria tão rápido assim.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.