Capítulo 85: O Final da Peça
As cortinas se fecharam com um chiado lento, abafando a conversa inquieta da plateia. O holofote ainda zunia nos meus ouvidos, me lembrando do desastre que tinha acabado de acontecer. Meu rosto queimava, e o figurino do príncipe parecia pesar mais do que deveria.
E nos bastidores, o caos já tinha se instalado.
Mai surgiu logo, segurando um bloco de anotações.. O olhar dela assustou Takeshi, que deu um passo para trás.
— Aquele pano solto foi culpa sua, não foi!? — ela começou, batendo o bloco na mão com força. — Eu te falei pra checar tudo, Takeshi!
Ele coçou a nuca, o sorriso nervoso quase escapando.
— Desculpa! Eu… achei que tinha tirado tudo — murmurou, abaixando um pouco a cabeça. Depois virou-se pra mim, tentando forçar um sorriso. — Foi mal, Shin. De verdade. Não achei que aquilo fosse causar… isso.
— Sem problema… — murmurei, sentindo o estômago afundar levemente.
Aiko apareceu logo atrás, ajeitando o chapéu de anão.
— Galera, relaxa! — exclamou, batendo palmas com energia. — Mesmo que aquele acidente aconteceu, nós ainda temos uma chance de ganhar! — Ela deu um soco no ar, competitiva como sempre. — Agora é focar e fechar essa peça com tudo!
— Mas, como vamos finalizar a peça? Já aconteceu praticamente tudo… — murmurei, curioso.
Quase tudo o que a peça tinha pra oferecer já tinha acontecido.
A Branca de Neve já tinha acordado, o final já estava praticamente ali.
O que restava após isso?
— Tá tudo bem! — disse Aiko, piscando pra mim. — A gente só… improvisa o final!
Mai revirou os olhos, mas não conseguiu esconder o sorriso de canto de boca.
— Improvisar… — ela repetiu, batendo o bloco de anotações na mão como se já estivesse arquitetando um plano. — Ok, temos cinco minutos antes de voltarem pro palco! Shin, Yuki, tudo certo com vocês? Nenhuma torção, nada?
— Tudo bem! — respondeu uma voz atrás de mim.
Yuki.
Ela estava num canto dos bastidores, ajeitando o vestido azul e amarelo que ainda brilhava sob a luz fraca dos bastidores. O cabelo dela estava meio bagunçado, talvez pela queda, e o olhar… era uma mistura de nervosismo e determinação que fez meu peito apertar.
— E você, Shin? — insistiu Mai, me encarando.
— Eu… acho que sim — murmurei, a mente longe.
A queda voltou na minha memória. Nossos rostos tão próximos, a respiração dela contra a minha pele, a capa escondendo tudo da plateia.
Meu peito apertou ainda mais.
— Ótimo. — Mai virou, já anotando algo rapidamente no bloco. — E Takeshi, presta atenção dessa vez! Nada de esquecer coisa no palco!
Enquanto o caos continuava, alunos correndo de um lado pro outro, cenários arrastados, adereços caindo, eu respirei fundo e, quase sem pensar, fui até ela.
Não sabia o motivo. Talvez… porque precisava dizer alguma coisa.
Qualquer coisa mesmo.
— Yuki… eu… — comecei, coçando a nuca. As palavras travaram na garganta. — Desculpa. Por… sabe, aquilo. Eu acabei estragando tudo.
Ela levantou o rosto, os olhos arregalados por um instante, como se eu tivesse dito a coisa mais absurda do mundo. Então, um sorriso tímido escapou, e ela cruzou os braços, meio sem jeito.
— Desculpa? — repetiu, a voz mais suave do que o normal. — Shin, a culpa não foi sua. Acidentes acontecem, sabe?
— Sim… — murmurei, encarando o chão. — Mas ainda assim, a peça tá praticamente acabada… e, por minha culpa, virou um desastre.
A frustração pulsava dentro de mim.
Depois de tudo, depois de tanta preparação… parecia que todo o esforço da turma tinha sido jogado fora.
E tudo por minha causa.
— Hã!? Do que você tá falando? — A voz dela ficou um pouco mais firme, carregada de uma indignação que eu não esperava. — Você não estragou nada!
— …Como não? — retruquei, sentindo o peso crescer no peito. — A plateia tá lá, esperando… pensando em… — As palavras morreram antes de eu terminar, o calor subindo até as orelhas.
Não precisei completar. O rubor no rosto da Yuki mostrava que ela tinha entendido. Ela desviou o olhar, mexendo na ponta do vestido como se precisasse de algo pra ocupar as mãos.
— Isso não é verdade — rebateu, com a voz mais baixa, mas cheia de convicção.
Eu pisquei, meio perdido. Yuki deu um passo à frente, os olhos brilhando, carregados de uma intensidade que me pegou desprevenido.
— Escuta, Shin… — disse ela, o dedo apontado pra mim. — Você foi incrível lá fora! Você tava nervoso no começo, claro… mas enfrentou tudo. Não só isso mas também decorou as falas de última hora, improvisou, e fez a plateia rir!
Fiz a plateia rir… sem querer.
— Mas… — tentei argumentar, mas ela não me deu chance.
— E mesmo com o acidente… — a voz dela suavizou de novo, e as bochechas ficaram ainda mais vermelhas. — Você ainda foi incrível.
Fiquei ali, parado, sem conseguir respirar direito. Meu coração batia tão alto que parecia ecoar pelos bastidores.
Eu não conseguia acreditar no que ela tinha dito.
Yuki tinha me chamando de… incrível?
Aquela palavra martelava na minha cabeça, diferente de tudo que eu tinha pensado sobre mim mesmo até aquele momento.
Enquanto eu me culpava, Yuki tinha visto o meu esforço…
Tinha visto… algo bom.
— Eu… uhm… — cocei a nuca de novo, sem saber o que responder. — Obrigado, Yuki. Sério. Mas… ainda sinto que…
— Você não precisa continuar se culpando, Shin — ela me interrompeu, com um sorriso gentil.
Um sorriso tão gentil que, por um instante, pareceu tirar todo o peso que eu carregava.
— A gente vai voltar lá — Ela continuou. — e terminar essa peça como ela merece ser terminada. Juntos. Tá?
Antes que eu pudesse responder, uma voz ecoou no meio do caos:
— Ei, vocês aí! — Um dos anões apareceu, com o chapéu de papelão torto na cabeça. — Tão melhores? A Mai disse que devemos subir no palco novamente!
— Sim! — disse Yuki, ao mesmo tempo que eu soltei um “Já vamos!” meio atrapalhado.
Nós nos olhamos e, sem querer, rimos, um riso leve, como se o peso no meu peito finalmente começasse a afrouxar.
— Vem logo! — chamou o anão, já correndo em direção às cortinas.
O palco parecia diferente quando as cortinas se abriram de novo. A luz do holofote não parecia mais tão forte… ou talvez fosse só eu que já tinha me acostumado com tudo aquilo. A plateia ainda murmurava, sussurros e cochichos espalhados por todo lado.
— Eles se beijaram mesmo? — ouvi alguém perguntar, lá no fundo.
— Olha eles ali!
— Não acredito!
— Tô dizendo que não foi um beijo!
Meu estômago deu um salto desconfortável, mas respirei fundo e forcei o foco no que importava: terminar a peça.
Voltamos exatamente de onde paramos, mas com algumas coisas improvisadas. Os anões entraram primeiro, liderados pela Aiko, que inventou uma fala, no mesmo instante, que arrancou uma risada geral:
— Se o príncipe tropeça… a gente carrega ele até o castelo! — gritou ela, apontando pra mim com um sorriso travesso.
A plateia explodiu em risadas, por algum motivo, mas eu quase deixei escapar uma risada no meio da cena. Ao meu lado, Yuki segurava o riso também, os olhos brilhando com um alívio que parecia contagiar.
Os diálogos finais, cheios de piadas vindas dos anões e da Rainha Má tentando se redimir, correram muito melhor do que eu imaginava.
— Esse reino precisa de menos maçãs envenenadas… — improvisei, com uma reverência exagerada.
— Exato, mas… de príncipes menos atrapalhados também! — Yuki rebateu, arrancando mais uma risada do público.
Quando as cortinas desceram, nos curvamos juntos no palco. O som dos aplausos atravessando o auditório, e pela primeira vez no dia, senti que… talvez a peça não tenha dado tão errado assim como imaginava.
Nos bastidores, o clima era uma mistura de cansaço e entusiasmo. Alunos se espalhavam, alguns jogados no chão, outros tirando os figurinos suados. Aiko estava no meio da confusão, contando a mesma piada dos anões pra quem quisesse ouvir, o sorriso dela dizendo tudo:
Nós conseguimos.
— Se tudo der certo, a gente vai pegar o primeiro lugar — disse Takeshi, esticando os braços quase sem força. — Mesmo com o acidente…
Do repente, Mai surgiu e deu um tapa leve no ombro dele, alto o bastante pra ele soltar um “Ai!” exagerado.
— Hã!? — reclamou Takeshi, massageando o ombro. — Que foi agora?
— Se desculpa direito por aquele pano, Takeshi! — retrucou Mai, cruzando os braços com autoridade.
— De novo? Tá, tá, foi mal! — ele disse, rindo e coçando a nuca. — Juro que não acontece mais. Prometo!
— Melhor mesmo — ela respondeu, já virando as costas com o bloco de notas em punho.
Eu ri baixo, enquanto tirava a capa quente e grudenta do príncipe. O cheiro de tinta, madeira e suor misturado parecia… estranho e acolhedor ao mesmo tempo.
Respirei fundo.
Apesar de tudo, a peça tinha sido um sucesso.
— No fim… deu tudo certo, né? — murmurei pra ninguém em especial.
— Deu certo? — repetiu Yumi, virando pra mim com uma careta indignada. — A gente, tipo, arrasou completamente! A plateia tava morrendo de rir!
— É melhor não cantar vitória antes da hora — brincou o garoto que fazia o espelho mágico, mas até ele tinha um sorrisinho no rosto.
Por um momento, fiquei ali parado, observando tudo, os risos, as brincadeiras, o brilho nos olhos de todo mundo.
E senti. Um calor crescendo no peito.
Apesar de tudo, as cortinas, a queda, os diálogos engraçados e até os cochichos, nós tínhamos feito algo incrível.
Algo que valeu cada segundo.
Mas então, uma voz cortou o clima.
— Cadê o Kazuki? — perguntou alguém, olhando pros lados.
Como se tivesse sido chamado, Kazuki apareceu na entrada dos bastidores. O rosto dele estava mais sério do que o normal, as sobrancelhas franzidas, e um pouco suado de provavelmente correr pela escola.
Meu estômago deu um pulo. Eu esperava ouvir boas notícias, mas aquele olhar dele já deixava claro que esse não seria o caso.
— Infelizmente — disse ele, a voz baixa, quase engolida pelo barulho. — …Não tenho boas notícias.
Todos pararam. O riso de todos nos bastidores, que estavam alegres com a peça, parou no mesmo instante.
— O que aconteceu, Kazuki? — perguntei, dando um passo à frente.
Ele hesitou, os olhos passando por mim antes de virar para todos
— A Sasaki — disse ele, finalmente. — Não achei ela em lugar nenhum pela escola… Acho que…
O ar nos bastidores ficou pesado, como se o ar tivesse sumido no mesmo instante que ele disse aquilo.
Olhei pros rostos da turma e ninguém disse nada.
Mas eu sentia. Um peso maior, maior que a peça, maior que o festival.
Um peso que me deixava… nervoso.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.