Índice de Capítulo

    Uma tocha crepita, iluminando uma sala constituída de tijolos em tom de carmim. O chão é forrado com palha seca, no canto há um buraco, de onde escapa o som de água corrente. 

    Deitado no centro, um meio-elfo de aparência frágil e feições levemente humanas jaz estirado de bruços, com algumas moscas voando e caminhando acima dele. Ele veste um robe azul, feito de um tecido fino, com detalhes dourados, mas que está rasgado e sujo. 

    O homem respira lentamente e quieto, com um sorriso largo estampado no rosto. Seus olhos estão abertos, estáticos, vidrados e com um brilho amarelado nas retinas, que cintilam constantemente como água turva sob o sol.

    No lugar não há janelas. Uma das paredes possui correntes penduradas com algemas e, em outra, uma tocha e uma porta de ferro negro fechada, com frestas retangulares. Diante dela, repousa uma bandeja com pão, uma jarra de água e um copo limpo.

    O estômago do homem de orelhas pontudas ronca e seus lábios estão secos. E mesmo nessa condição, a bandeja na entrada está completamente intocada.

    De repente, murmúrios do lado de fora começam a ser ouvidos.

    “Senhorita”, diz um homem, em um tom de soldado prestando continência.

    “Como ele está?”, questiona uma mulher, com uma voz suave.

    “Nada mudou…”

    O silêncio toma conta do ambiente por alguns instantes.

    “Abra a sala”, pede a mulher.

    Uma portinhola abre-se na parte baixa da porta de ferro e uma mão vermelha, com garras afiadas, adentra. Ela puxa a bandeja para fora, depois a portinhola é fechada.

    A grande porta estala e range algumas vezes, ecoando ruídos metálicos dentro da sala, como se suas trancas estivessem sendo destravadas.

    O meio-elfo escuta tudo isso apático, sua respiração não se altera e nem pisca.

    E, em segundos, a porta começa a se abrir para o lado de dentro. 

    Uma demônio de pele clara, usando um vestido negro, adornado com pedras roxas, entra na sala. Seu cabelo prateado contrasta com os chifres negros em sua cabeça. 

    A cauda escura dela balança quando ela vê o homem no chão.

    “Olá, Claim”, ela diz, com um sorriso no rosto.

    Algo desperta no homem, e ele inclina a cabeça na direção dela, arrastando-a dificultosamente sobre a palha no chão. 

    “Ca… mélia?”, ele questiona, com a voz arrastada e cansada. Apesar de focar sua atenção na demônia, o brilho turvo de seus olhos se mantém.

    “Faz quase duas semanas. Eu vim te ver.”

    Aquela notícia faz suas sobrancelhas se curvarem e o sorriso em seu rosto desaparece. “Duas?”, ele questiona, como se não acreditasse. “Eu… nem percebi. Pareceram mais, mas… ainda foi pouco.”

    A demônia se aproxima com passos serenos e sente o fedor no ar. “Vejo que andou ocupado. Deve ter aproveitado muito, já que, pelo visto, ficou sem tempo até para… fazer o básico”, ela comenta, torcendo o nariz, enquanto afasta os insetos próximos abanando uma das mãos. “Em qual vida eu te deixei?”

    “Meu irmão…”, diz o homem, vago, mas com uma notável angústia.

    “Um elfo puro?”

    “Ele é… como eu, só que mais humano.”

    “E a vida dele é boa assim?”

    “É… É sim”, ele responde, temeroso, ao mesmo tempo em que exibe fascínio. “A nossa casa é ótima. Acabei de reformar a casa com a minha esposa. E… já temos filhos. Vários deles.”

    “Que interessante. É a esposa do seu irmão também?”

    “Era dele…”, responde Claim, com um fio de raiva e posse. “Agora… ela está comigo, feliz.”

    “Entendi. Entendi. É exatamente sobre isso que eu vim conversar, Claim. Pela manhã, toda informação que você me passou foi confirmada. E, conforme o prometido, você vai poder voltar para a sua casa em segurança e poder esquecer esse sonho em que eu te deixei.”

    O homem se assusta, seu rosto se empalidece ainda mais. “Não…”, diz Claim, à beira do desespero. “Não faça isso. Eu… Não posso voltar. Eu… tenho família agora. Essa vida é tudo o que eu sempre quis…”

    Camélia sorri e se abaixa frente ao meio-elfo. “Mas esse foi nosso acordo, Claim”, sussurra ela com a voz doce, sobre o ouvido do homem. “As suas informações já foram úteis ao meu irmão. Meu débito com você está prestes a ser quitado. A sua aventura já está prestes a acabar.”

    Uma lágrima escorre pelo canto do olho do homem. “Eu posso te falar mais… posso te falar tudo. Só não me faça voltar”, ele implora. 

    “Eu não sei se você ainda tem alguma informação que valha o preço… mas quem sabe se você…”

    “Qualquer coisa!”, Claim interrompe. Seu corpo dá um espasmo, mesmo sem força para erguer a cabeça. 

    Os olhos da diaba começam a brilhar num mesmo tom dos olhos do elfo e uma aura amarelada forma-se ao seu redor. Uma auréola amarela emerge em sua nuca, com o símbolo de um trevo de sete folhas no centro, onde uma das folhas brilha de maneira mais intensa que as demais. 

    “Claim, eu mantenho a minha magia sobre você pelo tempo que você quiser. Até o dia da sua morte, você poderá manter a sua vida nova, com todas as regalias que seu irmão obteve em paz”, ela sussurra, como um juramento. “E tudo o que eu peço é a sua alma. Por hora, vou pegar apenas o seu espírito, e o resto, vou reivindicar totalmente quando você morrer. Você aceita?”

    “Sim! Aceito! É sua!”, responde Claim, sem nem mesmo hesitar. 

    A magia ao redor de Camélia se desprende e voa como uma brisa ao corpo do elfo. 

    O brilho nos olhos dele se intensifica e ele volta a sorrir, relaxando completamente em seguida, dormindo de olhos abertos.

    Do peito dele emerge uma pequena esfera branca, de tamanho similar ao de uma uva, feita inteiramente de luz, com chamas brancas e pulsantes ao redor.

    Ela flutua até a mão de Camélia, que a admira por alguns segundos. Logo a ergue pelos dedos, deixando-a cair sobre a boca.

    A alma do meio-elfo é consumida, desaparecendo no interior da diaba, que lambe as pontas dos dedos em satisfação. Sua cauda relaxa, balançando preguiçosamente sobre o chão.

    Camélia se levanta. “Foi bom fazer acordo com você”, ela diz, e se encaminha até a porta. “É bom você se cuidar, Claim. Aproveite o tempo em que você vai passar com sua nova família.”

    O elfo permanece calado e inerte, como se nenhum estímulo externo pudesse perturbá-lo agora. 

    “Bem… se você prefere assim, acho que vou poder comer o restante da sua alma bem mais cedo do que pensei”, Camélia comenta, olhando para trás uma última vez.

    A diaba deixa a sala e a porta é fechada. A portinhola se abre e a bandeja com pão e água é empurrada novamente para dentro. 

    “Não precisa trancar”, diz a Camélia a alguém que está do lado de fora. “Ele é livre para ir, mesmo que ele não queira.”

    Agora completamente isolado, Claim retorna a definhar, sorrindo em silêncio, com as moscas retornando a voar e caminhar sobre seu corpo. Perdido em uma vida que somente ele é capaz de enxergar.


    Fim do volume 07: O começo da ascenção
    Arte por: @valneeko

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