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    O armazém dos Blood Sentinels ficava em um quarteirão deserto entre a South Capitol Street e a 1st Street SW. Parte dele estava escondida por trás de uma oficina mecânica e de um mercado latino responsável pela venda de cigarros paraguaios, frango temperado em baldes e uísque falsificado. Dentro do armazém, o ar estava viciado com os odores de óleo queimado, borracha derretida e amônia. Um ventilador industrial zumbia como um helicóptero pairando no teto, agitando levemente o recinto.

    Dois pitbulls dormiam no canto da sala principal, perto de um freezer azul zumbindo baixinho. Sentado no sofá rasgado, Lenny passou o dedo raivosamente pela tela do celular. 

    Ele era troncudo e tinha braços marcados por tatuagens feitas com agulha de máquina de costura. No antebraço estava um palhaço, no pescoço a palavra “FÉ” e, na mão direita, um número 77 mal cicatrizado. A cicatriz que cortava sua testa, da raiz dos cabelos castanhos até a sobrancelha esquerda, mostrava-se antiga, mas viva.

    — Olha isso, Zara.

    Ela levantou a cabeça, tirou os óculos de tiro escuro e piscou os olhos pintados com lápis preto, deixando o pano da carabina cair no colo. Seus ombros largos e sua expressão entediada faziam com que parecesse que nada no mundo valia seu tempo. Ela tinha braços definidos cobertos por tatuagens de caveiras com cigarros apagados na boca e rosas com espinhos negros. 

    — O que que é? — Jogou o cabelo para trás, revelando o corte raspado e o risco costurado.

    Lenny apontou a tela:

    Essa facção é só um circo de malucos que vendem droga e regam as ruas de sangue. Certeza que o chefe deve usar mais base do que a dragqueen do outro lado da cidade.

    — É… parece que alguém tá com inveja do nosso sucesso. — Como se a ideia fosse mais um incômodo do que qualquer outra coisa, ela disse isso com os olhos semicerrados.

    — Enfim, nem liga. — Sorriu, se espreguiçando. — Tô mais preocupado com o que a gente tem que fazer hoje. Esse povo aí vai ter que entender que a gente não tá pra brincadeira.

    Zara apoiou o cotovelo na mesa, cruzou os dedos e descansou o queixo sobre eles.

    — Já ouviu o que o Franklin falou mais cedo? Os moleques dos New Jurors tão correndo feito ratos no ginásio. Deixaram até o recado dizendo que o Congress é  tudo deles. Quer dizer, tão querendo guerra de verdade.

    — Guerra? Essas porras acham que é só porque tem faca que vão virar donos do pedaço. Mal sabem que a gente tem muito mais jogo na manga.

    — É. — concordou, levantando o corpo e ajeitando o pano da carabina no ombro. — Quem quiser guerra vai ter que pagar caro. A gente tá misturando negócio com política mesmo. Não é só bala e faca, tem a parte suja que eles nem imaginam.

    Lenny franziu a testa.

    — Tipo o quê?

    Ela caminhou até a parede, pegou um marcador e riscou um mapa com algumas ruas e prédios.

    — Controle dos pontos de distribuição, infiltração em ONGs, gente na prefeitura pra facilitar os despejos, gente nas ruas pra vigiar a polícia.

    — A periferia tem que sentir isso, ter quem cuide da parada. É isso que a galera espera da gente.

    Zara voltou para cadeira.

    — O lance é equilibrar ou a coisa desanda rápido.

    — Por isso que a gente não deixa esses otários falarem besteira no Twitter. A cidade não tem ninguém olhando, a gente é quem faz o papel sujo.

    A mulher sorriu pela primeira vez no dia.

    — E quem duvidar disso… a gente vai mostrar que não é só base e maquiagem que manda nessa porra.

    Uma risada rouca escapou de trás da mesa de sinuca no canto do galpão, onde Curtis e D’Angelo jogavam uma partida de cinquenta dólares, cercados por garrafas de cerveja barata e por uma caixa de balas 9 mm, que servia de apoio para o giz.

    Encostado na lateral da mesa, Curtis enxugou o suor da testa careca com um lenço vermelho. Ele era um homem grande, com mãos de pedreiro, vestia um blazer bordô manchado de graxa sobre uma camisa de botões desabotoada até o umbigo, revelando uma corrente grossa com um crucifixo de osso. 

    Vindo do Alabama, ele se envolveu em um lendário massacre regional que resultou na morte de dois xerifes, escapando em seguida em uma lancha com um grupo de haitianos que não falavam sua língua, mas entenderam que seria melhor fugir juntos.

    D’Angelo, sentado do outro lado da mesa, olhava fixamente para a bola sete. Seus dedos, expostos pelas luvas sem dedos, estavam manchados de tinta e cola. A camiseta Hellboy que ele usava estava deliberadamente rasgada e coberta com anotações rabiscadas a caneta preta. As barras de suas calças militares estavam enfiadas em suas botas gastas, e um velho livro de química, coberto por post-its fluorescentes, pendia de seu bolso traseiro. Bukowski era o autor que D’Angelo lia quando sua cabeça ficava muito pesada, o que, segundo o próprio, acontecia todos os domingos à noite, entre oito e meia e a primeira dose do dia seguinte.

    — Tu viu o trampo novo do Jordan? — perguntou D’Angelo, enquanto se abaixava, alinhando o taco com a mão. O olhar escuro e fundo media o mundo inteiro na superfície daquela bola. — Tava mexendo com uns moleque da New Jurors no beco dos fundos do ginásio. Ouvi que meteram o pé quando ele chegou só com um taco de baseball e uma speaker nas costas.

    O taco deslizou na mão e fez a bola branca bater na sete, ricocheteando numa lateral. Voltou de leve e parou longe da caçapa. D’Angelo estalou a língua.

    Curtis pegou o giz e soprou o pó antes de esfregar a ponta do taco. Deu dois passos até a beirada da mesa, arqueando as costas.

    — Jordan é um psicopata dançando salsa com sangue alheio. — Deu uma risadinha, encaixando o taco entre os dedos. — Esses moleque acham que o centro é deles, mas nem conseguem segurar uma boca por mais de dois dias. Tá tudo vindo pra gente. Do pó ao Gatorade. Até os palhaço da Old Guard tão mijando fora do penico.

    Mirou e acertou a bola sete com uma tacada seca, que ressoou pelo galpão. A bola bateu na lateral e caiu limpa na caçapa do canto. Curtis nem sorriu, apenas se ergueu e disse:

    — Deus ajuda quem atira certo. — Limpou o taco com a camisa.

    — Cinquenta é pouco, bora dobrar essa porra.

    — Se tu me deixar tacar de novo, boto o livro na aposta. — Tirou o exemplar surrado do bolso. — Mas só se prometer ler um parágrafo, pelo menos.

    Curtis riu, pegando uma cerveja da mesa.

    — Eu leio tudo, parceiro. Mas só se for em voz alta, pelado, no telhado.

    Lá fora, perto do portão de metal amassado, Jordan finalizava seu grafite. Ele vestia um moletom verde-limão, com as axilas suadas e a manga direita rasgada devido a um tiroteio ocorrido na semana anterior. Ele segurava a lata de spray e pintava o símbolo dos Sentinels: um punho cerrado elevando-se de uma base em chamas. As linhas grossas e nervosas foram rabiscadas pela mesma raiva existente em seus ossos.

    Ao seu lado, três meninos com menos de quinze anos seguravam caixas de suprimentos e o observavam em silêncio. Um mascava chiclete, outro coçava o pescoço, coberto de marcas de alergia, e o terceiro olhava paranoicamente para a entrada do beco.

    Jordan largou a lata de spray no chão e passou a mão suja de tinta pela testa. Virou-se pros três e estalou os dedos.

    — Ah, cês de novo. — Puxou um cigarro amassado do bolso e acendeu com um isqueiro dourado todo riscado. — Aqui só serve pra encher cova.

    Deu uma tragada longa, olhou para dentro da base e depois para os três de novo.

    — Já que cês tão aqui sem fazer porra nenhuma, vão trabalhar e vão sair com dinheiro no bolso.

    Os três ficaram se olhando, meio perdidos.

    — Tu. — Apontou para o do chiclete. — Pega essas caixas e leva direto pra casa da Miss Carla, que fica na rua trinta e dois, no fundo do corredor. Ela cuida das crianças dela e das que a cidade cagou e deixou sem fralda. Entrega e recebe o recibo.

    O mesmo assentiu.

    — Ô aí o do pescoço vermelho, vai até o PT. O cara tá no galpão organizando as novas doses. Ele vai te passar umas paradas pra entregar pro pessoal da estação de metrô. Se perder, já sabe o que vai acontecer. Volta com o envelope. 

    — Sim, senhor.

    Jordan se virou pro terceiro.

    — E tu, vacilão, vai pro mercado da 11ª. Toma esse trocado aqui. — Enfiou a mão no bolso e tirou três notas amassadas. — Compra lá papel higiênico, vela, fita adesiva e sacola preta. Leva pra oficina e entrega pro Larry. Tendeu?

    O menino pegou as notas e o papel dobrado, os olhos ainda pulando de um canto pro outro.

    — Vai dar bom, chefe.

    — Só se cê parar de olhar pro céu como se Deus fosse descer de paraquedas. Vai.

    Os três dispararam em direções diferentes.

    Dentro do galpão, Curtis preparava a nova partida enquanto D’Angelo recolhia as bolas com uma rede. A televisão velha no canto passava um noticiário local com o volume quase no mudo. Na tela, uma reportagem falava sobre os tiroteios na zona sudeste. Ninguém ali parecia se importar muito.

    Curtis ajeitou o taco nos dedos e olhou para D’Angelo com aquele brilho competitivo nos olhos.

    — Se perder de novo, vai ter que limpar a caixa de arma do porão. 

    O homem sorriu, rolando a bola branca para frente com o taco.

    — Se eu perder de novo, é sinal de que tô distraído. Mas se eu ganhar, tu vai ter que ler Bukowski pelado mesmo.

    — Com um copo de whisky e um ventilador na cara. — respondeu, antes de dar a tacada de abertura.

    A bola branca correu pela mesa, espalhando o resto. A partida recomeçou.

    E lá fora, no muro recém-pichado, o punho dos Sentinels brilhava sob o pôr do sol tingido de vermelho.

    — Já pegou os remédios? — Zara perguntou pra Lenny.

    — Com o Alex. Chegou ontem com dois sacos de anticonvulsivo e quatro de insulina. Tava vindo de Baltimore.

    — Leva hoje pro porão do abrigo e vê se o Manny não some com mais uma caixa. Se eu tiver que arrancar o outro dedo dele, vou cobrar mais caro.

    A agenda política dos Sentinels estava intimamente ligada ao tráfico de droga. Eram uma mistura de Robin dos Bosques com um cartel. Exploravam brechas legais, como ONGs fantasmas, desvio de fundos públicos e igrejas que faziam campanha para o senador Rowley em troca de terras. Usavam esse conhecimento como um mapa em vez de uma desculpa. Eles vendiam drogas, sim, no entanto, também plantavam drogas em escolas, pagavam rendas às mães solteiras e infiltravam-se na câmara municipal.

    Quando o rádio chiou no volume alto, interrompendo a música Tuff que tocava na caixa ao lado da mesa de sinuca, todos pararam. 

    — Reunião agora na sala de comando. Quero todo mundo aqui.

    Curtis deixou o taco apoiado na borda da mesa. Zara recolheu o pano da carabina. D’Angelo enfiou o livro de química no bolso de trás e chutou levemente a lateral da mesa.

    — A vibe já foi pro saco. — murmurou Lenny, enquanto caminhava com os outros.

    A sala de comando ficava no galpão dos fundos, onde costumava ser uma oficina de metalurgia. Máquinas desmontadas ainda serviam como bases para caixas de munição, bem como armários provisórios escondiam documentos. Um corredor com luzes fluorescentes piscantes levava à porta final preta e pesada, com a marca dos Sentinels gravada nela.

    O grupo entrou um por um, empurrando a porta com os ombros. A iluminação no interior era fraca, filtrada por lâmpadas penduradas em fios expostos, algumas das quais piscavam com a brisa vinda das rachaduras no teto. Franklin estava encostado no quadro tático montado com papelão, fita adesiva e manchas de sangue. Ele segurava uma garrafa de suco de uva, mas todos sabiam que estava cheia de uísque em conta.

    Ele vestia uma camiseta regata preta na qual era possível ver várias cicatrizes em seus braços; um corte recente ainda sangrava de seu ombro esquerdo. Olhava fixamente para uma foto presa no centro do mural, uma imagem escura e borrada demais para se identificar qualquer rosto. Abaixo da foto estava uma lista escrita com caneta vermelha:

    Tyrell “Bonez” McQueen; Mika “Crow” Santoro; David C.O; Dri Saint; German “Sparks” King; Lxpe Skinner; Lwnnon Freeman; Wade Jefferson; Jamal Tate.

    Franklin levantou a mão e bateu o dedo na foto.

    — Esse filho da puta aqui… Elias Monroe. Ou pelo menos é o nome que tão usando agora. Ninguém nunca sabe de nada, mas todos os corpos têm a mesma assinatura. Um corte limpo com a garganta aberta. — Virou-se e olhou para o grupo. — Wade e Jamal foram mortos hoje, e isso deixou um buraco grande nos nossos mapas. E cês tavam aqui… rindo, jogando sinuca, limpando arma. Eu também. Ninguém aqui é santo. Mas agora tá na hora de fechar a mão de novo.

    Zara encostou-se na parede, cruzou os braços e girou o pescoço, rangendo a tensão no maxilar.

    — A gente tá falando de um grupo agora, não é só mais Elias?

    Ruthless. — disse Lenny. — Escutei esse nome sair da boca de uns novatos no centro. Um deles jurou que viu Elias entrando num carro blindado com mais dois sujeitos armados até os dentes. 

    — Ruthless? — Jordan repetiu, franzindo a testa. — Nome genérico da porra. 

    — É genérico, mas tá fazendo barulho. — retrucou Curtis, olhando para lista. — Dri, Lxpe, Lwnnon… esses nomes tão pipocando nas escutas da rua. A maioria desses aí era de gangue rival ou miliciano reciclado. Gente que já era cão solto e agora encontrou uma coleira que serve.

    Zara chutou a base da parede com a sola da bota.

    — Elias tá mandando algum tipo de recado e a gente tá recebendo calado.

    — Eles só querem nosso território. — disse Franklin. — E cês tão aí discutindo o nome do grupo. Não importa se chama Ruthless ou sei lá o quê. O que importa é que os filhos da puta tão nos estudando e tão levando nossos melhores.

    — Tá dizendo que tem espião?

    — Eu não tô dizendo porra nenhuma, mas se for verdade, então Ruthless já tá mais dentro do que fora. E cada minuto que a gente gasta discutindo é mais uma rua que eles pintam de vermelho.

    Curtis ajeitou o boné e bufou.

    — Essa porra de guerra suja vai acabar virando guerra civil se continuar. A gente tá com moral no chão. 

    Jordan levantou-se da cadeira e começou a andar pela sala.

    — A gente precisa virar o jogo e mostrar nossa força, cortando o suprimento dele, isolando os pontos de apoio. Esses nomes aí na lista, se tão vivos, precisam sumir. Se tão mortos, temos de saber onde foram enterrados.

    — Tô com o Jordan. — disse Zara. — A gente caça os Ruthless do mesmo jeito que tão caçando a gente, corta os tentáculos antes da cabeça. Cês sabem como a gente cresceu. Essa cidade enterra o fraco e esquece o nome. Não vou deixar queimar o legado dos nossos.

    Franklin assentiu com a cabeça. Os seus olhos concentravam-se na lista, à medida que ia assinalando os nomes com o dedo manchado de tinta.

    — Quero cada base em alerta. Cada ponto de venda com cobertura dobrada e todo mundo com o olho em duplicata. Se virem qualquer movimentação do grupo, me avisem direto. 

    O grupo concordou. O foco daquela sala já não se centrava apenas nas perdas, isso marcava o início de uma nova fase em terreno minado que começava a engolir os seus próprios arquitetos.

    Jordan puxou a porta.

    — Bora, porra. Já tamo atrasado.

    Zara foi atrás, seguida por D’Angelo, Lenny e Curtis. 

    Quando pisaram no corredor, o corpo coletivo parou. Se fosse uma máquina, diria que travaram ao mesmo tempo.

    O que ninguém esperava era que Darcy estivesse ali, parada no centro, entre duas colunas. 

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