Capítulo 11: Tributo
A Matriarca enviou uma bandeja com comida e água. Mandou também uma troca de roupas: um macacão preto justo, com o símbolo das manoplas de guerra cruzadas, o emblema do Império, estampado em um distintivo no peito.
Lyra se trocou e comeu. Não percebera o quanto estava faminta até a primeira mordida. Só então se deu conta: não fazia ideia de quanto tempo havia passado ali.
— Maldito… — murmurou, entre dentes, pensando em Rob. Como pôde ser tão tolo? Tão egoísta?
Ela vira os sinais, os pequenos luxos, os presentes, a avaliação privada. Por que pagar por uma avaliação assim? Agora sabia. Era para descobrir o que ele suspeitava: que ela era filha de um dos Praetorii Primus. Filha de uma lenda.
— Que droga… — sussurrou, andando de um lado a outro na cela. A escolha parecia dela, mas no fundo sabia: não havia escolha alguma.
A porta se abriu de repente. A Matriarca a esperava do lado de fora.
— Já se decidiu? — perguntou, seca. — Não temos mais tempo. Já finalizei as investigações. Não consigo segurar Aliah por muito mais.
Lyra assentiu em silêncio. Zyab lhe estendeu um aparelho retangular para leitura e impressão genética.
Ela sabia o que significava.
Colocou o polegar no local indicado. Sentiu a ardência de uma picada. O visor acendeu em verde.
O acordo estava selado.
Ela era um tributo.
Não uma prisioneira. Não uma cidadã.
Uma oferenda viva ao Império, marcada, e enquanto útil, valiosa.
— Vamos — disse a Matriarca, virando-se. Lyra a seguiu, ainda sem entender onde tinha se enfiado.
A nave era maior do que parecia por fora.
Por dentro, não havia luxo algum, apenas corredores estreitos de metal escovado, luzes frias embutidas no teto e portas automáticas que se abriam com um chiado abafado. Tudo exalava praticidade. Eficiência. Frieza.
A única exceção eram os símbolos do Matriarcharum: a máscara de três olhos estampada em intervalos regulares pelas paredes, como se observassem silenciosamente cada passo.
Lyra caminhava em silêncio ao lado da Matriarca, os pensamentos turvos, o corpo ainda trêmulo.
Passaram pela doca de carga, atravessando uma plataforma com suportes hidráulicos, e seguiram até a rampa aberta, onde a luz externa invadia o interior da nave com um brilho pálido.
Desceram.
Os guardas postados fizeram o sinal dos três dedos na testa e no coração ao vê-las. O local de desembarque não era mais o galpão da recepção. Estavam agora em frente à sede da companhia de mineração.
Uma multidão se aglomerava. Lyra viu rostos familiares. Parentes, trabalhadores braçais. Seu coração subiu à garganta. O ar parecia faltar.
Entraram. Aliah esperava logo na recepção.
— Já não era sem tempo — disse ela, girando o corpo.
Seus olhos pararam em Lyra, vestida com o macacão imperial. Por um instante, seus olhos se arregalaram. Mas recuperou a compostura em segundos. Sabia que Zyab tramava por suas costas.
Zyab estalou os dedos.
O Oculae se formou, girando, registrando cada detalhe.
Lyra entendeu: aquilo era oficial.
— A investigação está concluída — declarou a Matriarca. — O relatório demonstra com precisão as quantias desviadas, as datas e os envolvidos. Neste momento, os receptadores estão sendo presos pela Inquisição em seus respectivos planetas.
— Os contrabandistas, liderados por um homem conhecido como Wayne, foram executados por Lady Aliah Sylaris, terceira filha da Casa Sylaris, conforme as provas apresentadas.
Aliah assentiu, silenciosa, o queixo erguido com orgulho cruel.
— Por lei — continuou a Matriarca — a Casa Veyne deve ser afastada da operação das minas. E Rob Veyne, bem como sua linhagem direta, devem ser executados até a terceira geração, para que sua herança se extinga.
Lyra prendeu a respiração. O ar ficou espesso. Aliah sorriu. Um deleite cruel, calculado.
Mas Zyab continuou:
— Contudo, em razão de Lyra Veyne ter se apresentado voluntariamente como tributo imperial, e por apresentar uma tolerância ao Aether superior a quinze por cento, o que a torna um recurso imperial de valor estratégico, apenas Rob Veyne e seus cúmplices diretos serão executados. A Casa Veyne permanecerá responsável pela mineração de Glasurith… sob vigilância permanente. A esposa e filho de Rob Veyne serão poupados, uma vez que não se envolveram nos ilícitos.
Lyra soltou o fôlego. Respirou pela primeira vez em minutos.
Aliah, mesmo sob o olhar atento do Oculae, deixou escapar um suspiro de frustração. Sua expressão se torceu, o deleite desapareceu, dando lugar a uma máscara de ódio gélido. Lyra entendeu naquele instante: Aliah já devia ter negociado os direitos da mina com outra Casa vassala. E agora tudo estava perdido para ela.
Lyra sentia alívio. Tinha salvado Virna, o pequeno Elias, e o nome da Casa Veyne. Mas, junto com o alívio, veio o peso.
Pensou no sorriso de Ciel. Em como, dias antes, ela mesma havia salvado sua vida no abismo. O momento em que o alcançou, o puxou de volta, sentindo o calor do aether e o peso do destino. Seu primo mais velho, que sempre tentava agradá-la, que fazia piadas idiotas só para vê-la sorrir… agora estava vivo por causa dela. Um sorriso involuntário surgiu em seus lábios, curto, triste, mas verdadeiro.
Lembrou-se também da expressão fechada de Caine. Em como o velho rabugento, com seu pavio curto, fora quem lhe ensinou os primeiros movimentos com a broca. Sentiu os músculos do antebraço se contrair, como se ainda segurasse o controle da cabine. Como se o corpo lembrasse, mesmo que a alma doesse.
E então pensou em Rob. Imagens da sua gentileza e consideração passaram como flashes. Ele ensinando a ela as primeiras posições de espada, ou lendo uma história na penumbra do quarto, quando era pequena demais para entender tudo aquilo.
Seus joelhos cederam por um instante. Precisou se apoiar na parede. O homem que a criara como filha, que a amara e protegera a vida toda, agora estava condenado. E ela não pudera fazer nada.
Quando recuperou o equilíbrio, a realidade voltou em estalos secos. Ainda estava na sede, ainda ouvia a voz abafada da Matriarca selando seus destinos.
Ela era uma tributo. E essa seria sua nova vida.
Zyab recitava os nomes dos condenados, vinte e dois ao todo, entre administradores e membros da família ligados ao contrabando. A voz dela era impassível, sem hesitação.
— Levem os condenados para o patíbulo — ordenou, com um gesto seco, já se dirigindo para a saída. O Oculae flutuava atrás dela, registrando tudo. Lyra a seguiu, tonta com a velocidade dos acontecimentos.
Do lado de fora, próximo à multidão reunida, uma plataforma metálica havia sido montada às pressas. Zyab subiu os degraus com passos firmes. A multidão silenciou e fez o sinal dos três dedos, testa e coração. Lyra veio logo atrás e viu quando a Matriarca retirou uma adaga de uma bainha oculta na coxa.
Lady Aliah chegou em seguida, seus passos lentos e calculados. O Oculae posicionou-se para filmar de frente. A Matriarca assentiu, autorizando-a a conduzir a execução como representante da Casa Soberana daquele setor galáctico.
Aliah abriu seu sorriso perfeito, teatral. A voz, alta e clara, cortou o ar como uma lâmina:
— A Casa Veyne, por meio de seu gerente Rob Veyne, cometeu crimes contra a Casa Sylaris e contra o Império.
Fez uma pausa. Um silêncio tenso se fez presente.
— Foram condenados pela heresia de contrabando de Aether… e serão executados como exemplo para todos que ousarem quebrar as leis imperiais.
A multidão gritava, xingava os culpados.
Ela estendeu o braço silenciando todos.
— Tragam os condenados.
A ordem fez os guardas surgirem trazendo os prisioneiros em fila. Algemados, curvados, escoltados com firmeza. Rob vinha por último.
Os olhos dele encontraram os de Lyra. Ele chorava.
Os homens à frente eram rostos conhecidos, supervisores, colegas, parentes distantes. Estiveram em sua casa, em jantares, em reuniões. Mas agora… agora seus nomes pareciam escapar da memória de Lyra, como folhas levadas pelo vento.
— Sua tia não quis presenciar isso — murmurou Zyab ao lado dela. — Não é praxe, mas… respeitei a vontade dela. Por você.
A Matriarca estava em pé, imóvel. Os homens foram alinhados sobre a plataforma. Um a um, forçados a se ajoelhar.
Quando Rob passou por Lyra, ela não conseguiu conter um soluço. As lágrimas caíram sozinhas.
— Obrigado, filha… — sussurrou ele. — Por salvar Virna. Elias. A Casa. Mesmo que isso… lhe custe tudo.
Ele sabia da escolha de Lyra. Zyab já tinha lhe contado.
Ele ajoelhou-se na linha de frente, exatamente onde Lyra podia vê-lo.
Zyab deu um passo à frente, o Oculae girando ao redor, olhos piscando em movimentos frenéticos, gravando tudo.
— Todos foram considerados culpados. As provas são abundantes. Façam suas últimas preces.
Houve choro. Tremores. Um último silêncio.
A Matriarca foi rápida. Precisa. Fria. A adaga negra estocava uma única vez por vítima, afundando na base do crânio, e mais nada. Nenhum grito. Nenhuma hesitação.
Rob caiu. Como os outros.
Como se nunca tivessem existido.
Lyra caiu de joelhos. As lágrimas vieram em enxurrada. Sentia-se quebrada. Uma parte dela havia sido enterrada junto daqueles homens.
A multidão explodiu em gritos. Chamavam os mortos de hereges, amaldiçoavam seus nomes. Gritavam em defesa do Império.
Mas Lyra… só ouvia o eco do vazio.
O silêncio onde antes havia amor.
— Levante-se e vamos — disse Zyab, com a voz sem emoção, enquanto descia da plataforma e seguia em direção à nave.
Lyra se obrigou a mover o corpo. Os músculos doíam, e cada passo parecia pesar o dobro. Não notava mais os detalhes ao seu redor. O mundo parecia embaçado, distante. Subiu a rampa com os pés arrastando, sentindo a nave vibrar levemente sob seus passos. Ela sabia não ser mais dona de seu próprio destino.
Ouviu Zyab murmurar algo dentro da máscara. Provavelmente se comunicando com a tripulação. Conforme a rampa era recolhida e as portas se fechavam atrás delas, o som da multidão foi sendo abafado, sumindo até se tornar um eco fantasma.
Antes da vedação final, Lyra lançou um último olhar para fora, apenas uma fresta. Por um instante, pensou ter visto rostos conhecidos entre a multidão, distorcidos pelo vidro e pela distância. Não sabia se era real ou se sua mente começava a inventar despedidas.
Dentro da nave, uma mulher se aproximou. Não usava máscara, mas seu rosto estava obscurecido por um véu branco, como uma cortina sutil que ocultava sua expressão. A Matriarca fez um gesto breve com a cabeça e se despediu.
— Tenho negócios a tratar. Nia vai lhe mostrar as áreas da nave que você pode acessar. Sua cela foi adaptada para servir como um aposento.
Sem esperar resposta, Zyab virou-se e desapareceu por um dos corredores.
A mulher de véu se curvou levemente, o gesto contido e formal.
Quando ficaram a sós, sua voz veio firme, mas não ríspida:
— Sou Nia, e vou lhe mostrar como as coisas funcionam por aqui.

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