Capítulo 5 – Alter Ego
Tudo era escuridão. Como se os próprios olhos de Bruno se recusassem a abrir, ou como se o mundo tivesse sido apagado.
Ao fundo, entre breves flashes de consciência, ele escutava o desespero de Íris.
— Droga, droga, droga! Por que você não para de sangrar?! — a voz dela vinha em rajadas, abafada, cortante. A urgência tremia em cada palavra, pouco antes do silêncio absoluto engoli-lo de novo.
Mas logo algo mudou. Um som. Passos.
— Que porra é essa…? — pensou, a mente oscilando entre lucidez e delírio. — São… passos? Tem alguém vindo?
Uma presença se aproximava, densa, incômoda. O tempo parecia distorcido. Ele tentou chamar por Íris, mas nem voz tinha. Só pensava: “Íris… cadê você?”
— Finalmente, hein, seu bosta! — disse uma voz familiar, debochada.
Era a dele mesmo. Mas mais jovem. Muito mais jovem. Uma versão infantil, com olhar afiado e postura desafiadora, como se fosse o próprio Bruno criança encarando seu eu adolescente.
— Quem é tu? Tá se achando demais pra falar comigo assim, pivete — retrucou ele, indignado, mas sentindo-se fraco, como se não tivesse forças nem pra sustentar a própria raiva.
De repente, a visão clareou. Estava de pé, parado, bem em frente à casa da sua mãe. Mas tudo ao redor parecia… congelado.
As folhas das árvores pairavam no ar, imóveis. Um cachorro no portão, travado no meio do latido. Até cocôs de pombo flutuavam no céu, paralisados como sujeiras suspensas no tempo. Era como se o mundo tivesse sido pausado. Um glitch na realidade.
E foi aí que veio o golpe.
Um soco monstruoso atingiu seu estômago com força sobre-humana. O impacto foi tão violento que ele sentiu o ar sendo arrancado do corpo. O golpe atravessou sua barriga como se fosse feita de papel, abrindo um buraco grotesco. O corpo dobrou, forçado a olhar para baixo.
E lá estava: o vazio. Um rombo escuro no próprio ventre. Uma ausência absurda. Como se estivesse olhando pra morte… de dentro pra fora.
***
— Escuta bem, Bruno Mohammad… — a voz dela veio como um trovão cheio de veneno. — Se eu perceber que você tá indo por esse caminho podre, se eu sentir que você quer se transformar nesse tipo de lixo imundo… torturar ou matar uma vida inocente… eu juro por Deus, mesmo sendo sua mãe, eu mato você!
Ela gritou com tanta raiva que a faca em sua mão parecia vibrar. A lâmina lisa refletia a luz estática daquele mundo congelado. Ela o encarava nos olhos com um nojo tão profundo que parecia querer atravessar o peito dele com aquele olhar. O ódio dela era quase tangível, uma mistura de medo, frustração e amor envenenado.
Bruno ficou paralisado, engolido pela vergonha, pela culpa e por um vácuo estranho no peito.
— Quantas enxadadas você deu? — ela perguntou, a voz ainda tremendo, mas agora num tom mais contido… mais frio.
— Várias… porque a enxada tava cega… — respondeu Bruno, sem encarar. O olhar perdido no chão, como se tentasse cavar dentro de si uma resposta. Mas não encontrava nada.
Ele não sabia o que estava sentindo. Ou se estava sentindo algo. Era como brigar com o próprio coração e não saber se ele ainda batia do mesmo jeito.
***
Bruno então ergueu o rosto devagar, lançando um olhar sombrio, carregado de fúria, para seu eu mais jovem. Era um olhar com sede de sangue, de alguém prestes a matar.
— Tira esse pé nojento de cima de mim… — rosnou, com a voz baixa e ameaçadora.
— Ah… finalmente a ficha caiu, né, filha da puta?! — respondeu a versão mais nova, rindo com desprezo enquanto tirava o pé do peito dele.
Bruno se levantou com dificuldade, o corpo pesando como chumbo. Quando olhou na direção da antiga casa de sua mãe, o que viu congelou sua alma: ele mesmo, ainda criança, batendo a enxada repetidamente no pescoço de um cachorrinho indefeso. O sangue espirrava, mas o movimento nunca parava, como se aquela cena estivesse presa em um loop eterno.
— Memorável, não é…? — disse a criança, se aproximando lentamente. — Quer saber de uma coisa interessante sobre você… que talvez você ainda não tenha entendido?
Bruno não respondeu. Apenas observava, em silêncio, o horror diante dele.
— O lance é que… você não é o verdadeiro Bruno Mohammad.
— O quê…? — ele perguntou, com um nó na garganta. — Como assim… eu não sou o verdadeiro Bruno Mohammad?
A figura começou a se transformar diante dele. Os traços infantis se distorcendo, crescendo, mudando… até assumir a aparência idêntica à dele hoje.
— Simples… porque eu sou o verdadeiro. — disse sua outra versão, agora com a mesma voz de Bruno, porém carregada de sarcasmo e amargura. — E você? Você é só a parte fraca. A parte patética. Aquela que ainda sonha em ser valorizada pelos outros.
Ele se aproximou mais, com o rosto a centímetros do de Bruno, cuspindo cada palavra como uma lâmina.
— Você me envergonha. Você é a parte mais merda de mim mesmo. Mesmo contra a nossa vontade, você continua se arriscando por gente nojenta, inútil… que nunca me serviu pra nada. Gente que nem lembra que você existe.
Bruno recuou um passo, o coração disparando.
— E o pior… — continuou dizendo — …o pior é que você perdeu a vontade de viver. Não porque quer morrer… mas porque sente que não tem mais nada. Vazio. Um buraco onde já teve alma.
Ele sorriu, um sorriso cruel, sádico.
— Então sabe qual vai ser sua sentença? Toda vez que tu dormir… eu vou estar lá. Eu vou te torturar. Te fazer reviver cada pesadelo, cada memória suja, cada erro que você cometeu. Até você implorar pra nunca mais acordar.
***
Íris, desesperada, corre contra o tempo enquanto a escuridão toma conta de toda a casa. Bruno permanece inconsciente, largado no sofá, o corpo coberto por feridas abertas que não paravam de sangrar.
Assim que termina de apagar cada luz e vedar as janelas, ela dispara pelos cômodos, vasculhando freneticamente tudo o que pudesse servir para estancar o sangue ou improvisar um jeito de fechar os cortes. Os minutos viram uma tortura. Quarenta longos minutos de puro desespero.
Enfim, numa das gavetas de um quarto, ela encontra uma agulha enferrujada. E logo depois, dentro de uma caixa de ferramentas debaixo da pia da cozinha, ela encontra um grampeador de tapeçaria — robusto, sujo de poeira, mas com peso suficiente para passar por qualquer coisa.
— Ótimo… agora só falta linha! — resmungou ofegante, aliviada por um instante.
Sem pensar duas vezes, correu para outro quarto onde havia visto uma pipa pendurada na parede. Subiu na cama sem hesitar e alcançou o topo do guarda-roupa, encontrando ali um pote de Mucilon com uma linha nova enrolada dentro, como se o destino tivesse deixado aquilo ali só para ela.
Agarrando o pote com força, ela correu de volta até a sala, onde Bruno ainda jazia apagado. O sangue manchava o sofá e se espalhava pelo chão.
Íris checou o grampeador. Para sua sorte, estava carregado de grampos.
Respirou fundo, tentando controlar a tremedeira nas mãos. O coração batia tão alto que parecia ecoar pela casa inteira. Foi nesse momento que uma voz fraca, sussurrada, deslizou em sua mente como uma cobra: “Sangue…”
Ela congelou. Olhou para Bruno. Por um segundo, achou que ele havia falado — então se aproximou, encostou o ouvido em sua boca. Silêncio. Nenhum som, só a respiração fraca e irregular.
Sacudiu a cabeça, ignorando o calafrio.
Segurou o grampeador com firmeza em sua mão dominante. Com a outra, puxou a pele de Bruno, tentando unir os cortes abertos, mesmo com o sangue ainda escorrendo. Suas mãos tremiam. Seus olhos marejavam. Mas ela não podia parar.
Nem por ele. Nem por ela.
Após grampear todas as feridas do corpo de Bruno — cada estalo seco do metal ecoando como um grito abafado —, Íris cambaleou até o banheiro, suada, ofegante, com as mãos e o rosto cobertos de sangue.
Quando se viu no espelho, a imagem a paralisou.
Ela tremia dos pés à cabeça. Estava irreconhecível — como se tivesse saído de um pesadelo. O sangue seco grudado em sua pele parecia tinta de guerra, mas a guerra estava longe de acabar.
Um enjoo brutal subiu do estômago, incontrolável.
Sem tempo nem pra respirar fundo, ela se ajoelhou diante do vaso e vomitou com força, o corpo todo contraído, como se estivesse expurgando o horror da cena que acabara de viver.
Quando terminou, apoiou-se na pia, lavou a boca e, de repente, num gesto de puro instinto, deu um tapa no próprio rosto.
Estalo seco. Pele contra pele. Realidade na veia.
— Chega de tremedeira… chega de fugir ou de ser covarde. A vida dele depende de mim! — sussurrou, com a voz trêmula, mas firme, encarando o reflexo como se fosse uma versão fraca dela mesma.
Respirou fundo.
Voltou para a sala com o corpo leve, mas a mente pesada. O sangue ainda escorria do sofá, e Bruno, embora remendado como um boneco de pano, continuava imóvel.
Assim que seus olhos bateram nele, a adrenalina que a mantinha de pé começou a desabar. A pressão subiu tão rápido quanto o medo que ela tentava enterrar.
O mundo girou.
As pernas falharam.
Íris caiu no chão, desmaiando, como se o peso daquela noite finalmente tivesse a derrubado.

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