Mirena

    A criatura avançou arrastando os ossos pelo chão, o som de seu andar era grave e úmido, como o de um tronco encharcado sendo arrastado por quilômetros.

    Cada passo do esqueleto fazia as paredes da caverna tremerem. A mandíbula da coisa oscilava, rangendo como uma marionete enferrujada, e sua altura tomava o teto por inteiro. Era impossível ver seu topo sem inclinar o pescoço até doer.

    — Formação recuada! Mirena, flanco direito! — Roger rangeu os dentes.

    Ela não respondeu, os olhos estavam travados na criatura. Sua respiração estava curta e seu peito preso.

    O Aventureiro virou-se rapidamente para ela, mas não gritou. Talvez tivesse percebido que ela não estava apenas hesitante, estava aterrada.

    — Mirena! — chamou com firmeza. — Precisamos de você!

    Ela não respondeu. Olhou para o chão, onde a poeira dos ossos cobria o corpo de mais um aventureiro morto. Seu rosto se contorceu e seu queixo começou a bater sem controle.

    O som de ossos quebrando a trouxe de volta, uma das arqueiras foi esmagada contra a parede, reduzida a um borrão de carne. Os gritos dos companheiros abafavam tudo, menos o som do monstro.

    Mirena cambaleou para trás, esbarrou em sua própria mochila. Seus dedos tocaram algo duro e pontudo, um dos chifres de prata.

    “Não, não, não! Eu não quero lutar com você! Eu não posso! Você é grande demais!”

    A criatura não estava lutando, ela apenas andava, e cada passo, cada pisão, cada movimento, assombrava a garota.

    Roger ainda conseguia se mover, mesmo que suas forças tivessem o abandonado. Corria, usando as pedras como suporte, tentando achar uma abertura na guarda do gigante.

    Ainda haviam guerreiros no local e, mesmo que em menor número, atacavam as juntas da criatura com suas armas. A espada de um deles se quebrou ao entrar em contato com os ossos titânicos.

    — Essa coisa não cai! Ele nem sequer sente esses golpes! — O guerreiro gritou, correndo para o mais longe que podia.

    “Certo… é isso”, pensou a ardenteriana, enquanto estendia a mão para o saco. “Não importa o quão grande você seja, o carma… você ainda é feito de carma!”.

    Com as mãos trêmulas, Mirena retirou alguns dos chifres. O tempo ao seu redor parecia mais lento, cada movimento, cada som, cada segundo. O corpo dela ainda se recusava a se levantar, se arrastou até o mais próximo que pode da criatura, escondida em meio às rochas.

    Pegou um pequeno arco, um que algum dos arqueiros deixou para trás, e preparou o primeiro projétil. O chifre prateado foi encaixado na corda.

    — Não importa o quão grande… o quão forte você seja… você está me ouvindo, não está? Eu não me importo com o quão grande você é, eu vou te matar com as minhas próprias mãos! — A flecha cortou o ar e se enterrou profundamente no fêmur da criatura. 

    O titã parou, o carma parecia estar se esvaindo, a perna se moveu com dificuldade e o peso da criatura a fez se ajoelhar.

    A mulher ergueu-se. Suas pernas ainda tremiam, mas não era mais de medo, e sim de adrenalina. Ela pegou mais um dos chifres, mirando a outra junta da criatura.

    Não muito longe, Roger assistiu a segunda linha de defesa ruir. O escudo do guerreiro à sua frente rachou em dois com um único golpe lateral da criatura. O impacto lançou o corpo contra a parede com força suficiente para apagar a tocha mais próxima.

    O breu começou a se espalhar..

    — Recuem! Recue… —

    Uma pedra arremessada arrancou o elmo de outro homem. Apenas se ouviu um estalo, um grito, e, por fim, o silêncio.

    Roger virou-se, erguendo sua arma envolta de carma, mas o braço tremia. Ele tentou respirar, mas sentiu o cheiro do sangue, de novo.

    Mirena engatinhou por cadáveres e pedaços de armadura, abrindo caminho como podia. Usava os chifres restantes como flechas, atirando nas pernas do monstro. A criatura parecia não sentir, mas ficava mais lenta a cada golpe que recebia.

    — Você não é invencível… — sussurrou ela, tentando convencer mais a si mesma do que a criatura.

    Roger se ajoelhou, estava sozinho, ou quase sozinho. Dois aventureiros ainda lutavam ao fundo, mas um deles estava esmagado entre as rochas agonizando, e o outro já havia perdido ambas as pernas e desmaiado pela dor.

    A criatura soltou um som gutural, profundo, e então, o braço gigantesco desceu sobre o líder dos aventureiros.

    Roger ergueu a espada, o impacto foi ensurdecedor. Por um segundo, achou que havia conseguido bloquear, mas no segundo seguinte sentiu o ombro abrir. Seu braço voou longe.

    Ele caiu de lado, o sangue jorrava quente e sem controle, mas não foi a dor que o derrubou, foi o silêncio que veio em seguida. A ausência de vozes, todos estavam mortos. Todos.

    Mirena ouviu o baque, subiu em uma elevação de pedra próxima e procurou o homem. Roger jazia no chão, um soldado caído sobre uma poça escura.

    — Roger! — Ela gritou, mas não obteve resposta.

    A criatura rugiu novamente e girou, quebrando pilares naturais da caverna. Uma imensa quantidade de rochas e pedras caíram na direção dos dois, a luz do sol atingiu a caverna, trazendo a visão do céu e da água do lago.

    A criatura, que agora estava de joelhos, se arrastou em direção a saída da caverna, o braço que ele usaria para matar o líder se virou para a saída e quebrou o restante do teto.

    A mão gigantesca agarrou a borda, puxando o corpo para cima. O esqueleto havia saído do lago.


    Dhaha

    O garoto estava sentado em uma pedra, sua respiração ainda oscilava e sua mente ainda estava assombrada por aquela visão. Ele tentou tocar as águas outras vezes, mas seus resultados foram os mesmos.

    — Maldição! Por que tinha que ser logo um lago? — praguejou ele. Seus punhos cerraram tão forte que quase sangraram.

    Estava preso longe da batalha, ou era o que pensava. Um estrondo ecoou do fundo do lago, o tremor veio logo em seguida.

    — Ei, ei! O que é isso? — O douradiano observava de longe enquanto algo se erguia pelas águas.

    As águas começaram a girar, formando um grande redemoinho. O nível do lago abaixou rapidamente, e o enorme colosso se ergueu em seguida, ainda mais lento que antes. Era imensa, tão grande quanto as bestas mágicas que via nos livros de sua infância.

    — Que droga é essa?! — Seus olhos arregalaram, era inconcebível a ideia de que eles desceram em um lago e despertaram um gigante do tamanho de um arranha-céus. — Calma, Mirena! Roger!

    Seu corpo explodiu em chamas brancas, rodeando o lago o mais rápido que pôde, mas não teve nem sinal dos companheiros.

    A alabarda em suas mãos se moldou e se tornou uma grande espada de duas mãos, imbuída de carma.

    — O que você fez com eles?!

    O garoto correu em direção à criatura como um raio pálido. O corpo do titã se movia lentamente, ainda danificado pela luta.

    A criatura era grande, muito grande, mas o que ela não tinha em velocidade, Dhaha tinha de sobra. Ele escalou a perna do monstro antes que ele tivesse tempo de reagir.

    “Ela tem que estar viva!”, pensou ele.

    — [Metalóxis]! — Um pulso do carma emanou de seu corpo, tornando as veias salientes. Sua espada se moldou em uma lança e ele a cravou nos ossos do monstro, como uma estaca, e saltou em direção ao pescoço. — Você vai cair!


    Mirena

    A garota havia escapado por pouco, aproveitou as pedras caídas como escada e foi para a superfície. Roger estava em suas costas, o último sobrevivente. Fez os primeiros socorros, mas ele já não conseguia lutar, seu olhar estava perdido.

    Ela se virou para o gigante e pode ver um brilho familiar em suas costas, uma chama que agora conhecia bem. Dhaha estava lutando com a criatura, mesmo ferido, ele ainda estava lutando.

    — Dhaha… — Ela disse mais para si mesma do que para Roger.

    O colosso se virou, mas seus braços não alcançaram as costas. A mulher viu que a criatura ainda estava debilitada, era o melhor momento para atacá-lo.

    Com uma última olhada no líder dos aventureiros, partiu na direção do monstro. Não culpava Roger pelo medo que sentia, mas tinha que ajudar o douradiano, ele se jogou em uma luta impossível para salvá-los.

    Suas pernas tremiam ao correr, não tinha certeza se chegaria até a criatura a tempo.

    Dhaha havia chego ao pescoço do monstro, sua lança agora se moldava em um grande martelo e guerra. Desceu o golpe com toda a força, mas não foi como o esperado. Sentiu a pressão do acerto no osso, mas também sentiu a força de rebote em seus ossos, seu corpo ainda não estava em condições de lutar com algo tão grande sozinho.

    — Argh! — gritou ele, cuspindo vermelho.

    O urro da criatura ecoou pela floresta, os gritos de Dhaha foram levados com o vento. Com o descer das mãos juntas, fez o chão partir em centenas de pedaços.

    Em um ato de desespero, Dhaha saltou das costas do titã, mas outro grito o alcançou no alto. O chão abaixo de Mirena se partiu em pedaços e ela caiu para dentro da caverna.

    — Mirena! — Sem pensar, Dhaha se lançou.

    A garota já podia se ver esmagada pelas pedras, seu sangue gelou e suas mãos se estenderam para os céus. Ela não sobreviveria à queda.

    Foi então que um choque, partindo do braço esquerdo, passou por todo o corpo. Em uma fração de segundos, o corpo de Dhaha a pegou no colo e saltou sobre as pedras que caiam até chegar à superfície.

    — Você tá bem?

    — Sim, eu… — Seus olhos se arregalaram. A criatura havia se levantado, mas não tinha mais a mesma compostura. O corpo se moveu de forma descontrolada, a cabeça se virou para o grupo.

    A realidade caiu sobre as costas de Dhaha. A criatura era grande demais para se vencer sozinho, mas se não a parassem, ela destruiria a cidade de Eldon.

    — Mirena, sai daqui…

    — Mas ele está mais fraco. Temos como derro…

    — Não!

    A garota perdeu o ar com a resposta, esperava isso de qualquer um, menos Dhaha.

    — Como é?

    Dhaha respirou fundo. Seus olhos passaram por ela, a roupa rasgada, as mãos tremendo, e o olhar assustado.

    — Você não tem mais seu arco, nem os chifres de prata. — Ele estava certo, a mochila da mulher havia ficado na caverna, agora esmagada. 

    Dhaha abaixou a cabeça por um instante. Depois olhou novamente para o colosso.

    — Você mal conseguia correr, eu vi. Eu entendo… porque eu também tô com medo.

    Houve um silêncio, tão pesado quanto o martelo que carregava.

    — É difícil admitir isso, mas eu não consigo vencer sozinho.

    — Mas Dhaha…

    — Mas você não consegue lutar sem suas armas, nem eu consigo lutar por muito tempo do jeito que tô… — Ele massageou o ombro machucado, depois cuspiu sangue outra vez. — Se aquilo só fosse mais fraco, talvez…

    — Então por que tá indo?! — A voz dela quebrou, quase soluçando. — Vai morrer à toa?

    — Se eu não fizer isso… ele vai pra Eldon.

    Mirena queria gritar com o amigo, mas suas palavras entalaram na garganta. Ela sabia que ele tinha razão, nunca conseguiria ajudar sem uma arma, seu braço não era uma arma.

    — Vai até a cidade e chama ajuda da guilda, eu vou segurar essa coisa o quanto conseguir. Com sorte, eles chegam a tempo.

    Mas então, como se quisesse quebrar aquele momento e não ouvir mais nenhuma palavra:

    — [Metalóxis]! — As chamas explodiram, mais fracas do que antes, e o garoto avançou na criatura. Seu martelo se moldou em uma montante curvada, seu fio era o melhor que conseguia.

    “Não…”, a ardenteriana pode apenas observar, como uma garota indefesa.

    A raiva subiu pelo sangue, odiava tudo aquilo. Estava indefesa, fraca, novamente se via na posição daquela que é protegida. Cerrou os punhos e socou o chão, amaldiçoando a própria fraqueza.

    — Por que você não me ajuda, [Caleidogênese]!

    Outro soco, e outro, e mais um, socou o chão até seus punhos sangrarem. As lágrimas escorriam com o peito apertado, sabia que não chegaria na cidade a tempo de salvar o amigo, não conseguiria salvar ninguém.

    — Se eu fosse… sniff… forte como ele… — murmurou a garota, com a voz engolida pelos rugidos da criatura. — Se eu fosse mais parecida com o Dhaha!

    O céu se enegreceu, nuvens carregadas colidiram umas com as outras e trouxeram a chuva à floresta. O garoto saltava pelos ossos do monstro, desviando de alguns golpes, recebendo outros.

    Com o estrondo de um raio, o titã golpeou o garoto e o arremessou ao chão.

    “Droga…”, pensou ele, ofegante. “Mal consigo acompanhar”.

    O monstro ergueu o punho, pronto para esmagar o garoto como fez com os aventureiros.

    “Acho que… eu fui um bom herói. Né, mãe?”.

    Mirena estremeceu, algo dentro dela rompeu, como um nó apertado demais finalmente cedendo.

    — Não — disse ela, baixo.

    Suas pupilas contrairam e suas veias pulsaram. Num misto de raiva, tristeza e adrenalina, correu até a criatura. Ignorou as dores, ignorou o medo, ignorou as palavras do amigo.

    — Se eu fosse como Dhaha — disse ela

    “Fraca”, uma voz sussurrou em sua mente.

    — Se eu fosse forte como ele…

    “Fraca”.

    — Se eu pudesse fazer o que ele faz…

    “Fraca”.

    — Se eu pudesse ser a heroína.

    O choque ressoou pelo corpo mais uma vez, da ponta da mão esquerda, subindo pelo braço, chegando ao tronco e se espalhando por todo o corpo. Aquela mesma sensação de quando estava na corrida, a mesma sensação que não sabia controlar, aquela sensação de poder.

    Por uma fração de segundo, Mirena entendeu como tudo funcionava, entendeu o que realmente desejava, sua verdadeira ambição. Ela queria ser como os outros, ela precisava ser como os outros, precisava ser como Dhaha.

    Uma explosão de chamas brancas iluminou a chuva, mas não era Dhaha. Como um raio pálido, a nova heroína avançou sobre a criatura, seu braço direito, agora na forma de uma imensa montante curvada, reluzia ao brilho dos trovões.

    — [Caleidogênese]! — disse Mirena, cortando os dedos da criatura. Os olhos da garota brilhavam como sóis. — Você está bem, herói? 

    O medo de Mirena se esvaiu com o erguer da espada. A criatura recuou com um rugido de dor.

    Com o outro braço, estendeu a mão ao Dhaha, ainda caído e confuso. Ele a encarava como quem via um milagre, Mirena não precisava ser protegida.

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