Capítulo 9 – O passado de Kino
“Por que eu nasci?”
Naquela noite fria e chuvosa, Kino, um jovem de vinte anos estava parado sobre uma ponte. Seus cabelos, negros como carvão, balançavam ao vento, enquanto o terno vinho e a gravata carmesim colavam no corpo úmido.
Ao longe, o som das buzinas se misturava ao ritmo suave da chuva.“ Não havia sentido em eu estar vivo.”
Sua respiração ficou pesada, e uma estranha fadiga tomou conta de seu corpo, como se um nó invisível apertasse sua garganta.
Num gesto impulsivo, arrancou a gravata e a lançou ao vento, observando-a cair lentamente. Por incrível que pareça, aquilo trouxe um alívio inesperado, como se tivesse se livrado de um peso que carregava há muito tempo.
Um relâmpago iluminou o céu, revelando por um instante a vastidão escura ao seu redor. A chuva não dava trégua, escorrendo pelo rosto dele, misturando-se às gotas que pingavam do corrimão.
“ Por que? Por que? Por que diabos eu nasci?”
Essa pergunta, que já tinha cruzado sua mente inúmeras vezes, ecoava mais alta naquela noite fria. Mas antes de chegar à ponte, antes do vento gélido e da gravata voando, houve um dia inteiro — talvez uma vida inteira — que o empurrou até ali.
Kino era um jovem de vinte anos, mas parecia carregar décadas nos ombros. Trabalhava como atendente em uma pequena gráfica de bairro, um lugar impregnado com cheiro de papel queimado e tinta fresca.
O balcão estava sempre coberto de notas amassadas, cartazes mal recortados e xícaras de café esquecidas. O patrão, um homem careca de mau humor constante, raramente levantava os olhos para ele.
“Mais rápido, Kino. Os clientes não têm o dia todo.”
Kino respondia com um aceno e um “sim, senhor” quase automático. No fundo, não se importava com a pressa.
Sua vida já era feita de repetições: acordar, vestir a mesma camisa social gasta, tomar café preto amargo demais e caminhar até o ponto de ônibus com a mochila pendendo de um ombro.
Não havia ninguém esperando por ele em casa. Seu apartamento era um cubículo no quarto andar de um prédio antigo, com paredes descascadas e um chuveiro que falhava sempre nos dias mais frios.
Havia um colchão encostado no canto, um guarda-roupa com mais poeira que roupas, e um rádio antigo que ele mantinha ligado quase o dia todo — não porque gostasse da programação, mas porque o silêncio o incomodava.
Kino não tinha amigos próximos. Os colegas da gráfica raramente conversavam com ele sobre algo que não fosse trabalho. Às vezes, no almoço, sentava-se sozinho no banco da praça, assistindo crianças correndo e mães reclamando do preço das frutas na feira.
Não invejava aquilo, mas havia uma estranha melancolia ao perceber que, mesmo cercado de pessoas, sentia-se invisível. A infância dele não tinha sido melhor.
Crescera com uma mãe doente e um pai ausente. Passou boa parte dos primeiros anos cuidando da casa, lavando pratos com água gelada e aprendendo a cozinhar arroz para que a mãe não passasse fome.
Quando ela morreu, ele tinha apenas quatorze anos. O pai apareceu no velório, chorou durante alguns minutos e sumiu novamente. Desde então, Kino aprendeu a não esperar nada de ninguém.
No trabalho, seu único passatempo era observar as pessoas que entravam na gráfica. Gostava de imaginar como eram suas vidas fora dali. Um homem de terno podia ser um escritor fracassado; uma mulher com flores na bolsa talvez fosse uma pianista aposentada.
Ele criava histórias mentais, porque inventar vidas para os outros era menos doloroso do que encarar a própria.
Naquele dia específico, uma chuva fina começou ainda de manhã. O vidro da gráfica embaçava, e o cheiro de papel molhado se misturava ao da tinta. Kino fez entregas, carregou caixas, atendeu clientes que reclamavam do preço.
Quando o relógio bateu seis, ele recolheu as chaves e saiu sem dizer nada. O patrão nem percebeu.O vento gelado bateu contra seu rosto assim que colocou os pés na calçada.
O mundo parecia mais lento, como se cada passo fosse arrastado. No lado de fora ele olhou para a gráfica. Um lugar que o ajudou a pagar suas contas.
Se sentiu grato pela oportunidade e sorriu. “ Meu último dia de trabalho…”Em vez de ir direto para casa, Kino pegou um caminho mais longo. Passou pela praça onde costumava almoçar, agora vazia, as árvores sacudindo galhos encharcados.
Passou por vitrines iluminadas, onde famílias riam em restaurantes quentes. No reflexo dos vidros, viu seu próprio rosto: pálido, olheiras profundas, cabelo bagunçado. Parecia um fantasma caminhando entre vivos.
Ao chegar no apartamento, jogou a mochila no chão e acendeu a única lâmpada do quarto. Sentou-se na beira do colchão e ficou olhando para o rádio, que tocava uma música melancólica. As palavras da canção pareciam falar com ele: sobre perda, sobre um tempo que não volta.
Pegou um caderno velho, daqueles que usava para anotar contas. Abriu numa página em branco e escreveu uma única frase:
“Não há nada para mim aqui.”
Ficou olhando para a frase como se esperasse que ela mudasse sozinha. Mas não mudou.Kino vestiu o terno vinho que guardava para ocasiões “especiais” — embora nunca tivesse usado para nada além de entrevistas que não deram certo.
Colocou a gravata carmesim, ajustou o nó, e, por um instante, se viu no espelho. Parecia outro homem, um que talvez tivesse uma vida para ir a algum lugar importante. Mas o reflexo não mentia: ele ainda estava vazio por dentro.
Saiu sem trancar a porta. O corredor do prédio estava silencioso, exceto pelo som distante de uma televisão em algum apartamento vizinho. Desceu as escadas lentamente, sentindo cada passo ecoar.
A rua estava quase deserta. A chuva aumentara, pingos grossos batendo no asfalto. Kino caminhou sem pressa, como se o destino não fosse tão urgente. Mas cada quarteirão que passava, a ponte ficava mais próxima.
Quando finalmente chegou, o vento cortou seu rosto. Ficou de pé, olhando para a água escura lá embaixo, que se movia como uma criatura viva, pronta para engoli-lo.
Suas mãos tremiam, não de frio, mas de um medo estranho.
— Não havia sentido em eu estar vivo — murmurou, mais para si mesmo do que para o mundo.
Respirou fundo. Arrancou a gravata e a lançou ao vento, observando-a dançar até desaparecer na correnteza. Por incrível que pareça, aquilo trouxe um alívio breve, como se estivesse devolvendo um fardo ao mundo.
Fechou os olhos e deixou o som da chuva preencher tudo. Pensou na mãe, no pai ausente, nas ruas vazias, nos rostos que nunca se lembrariam dele.
Sentiu o corpo inclinar.
“Se eu pudesse recomeçar tudo de novo…” — pensou. Mas logo respondeu a si mesmo: “Não, é tarde demais.”
Desta vez, não houve hesitação. Ele caiu. O vento arrancou o ar dos pulmões. Viu a ponte desaparecer no horizonte. Pensou, com uma calma quase irônica:
“Essa foi mesmo uma vida péssima.”
A água o engoliu. O som se apagou. Por alguns segundos, não sentiu nada. Então… uma luz branca surgiu diante dele.Tentou abrir os olhos, mas não conseguiu.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.