Uma nave negra, marcada com os símbolos do Matriarcharum, descia lentamente em meio à chuva densa que castigava a plataforma de pouso. Os motores rugiam abafados pela tempestade. Tartarus era um planeta de porte médio, ligeiramente maior que a lua de Glasurith. Sua atmosfera carregada de aether tornava a respiração perigosa. Sair sem equipamento apropriado era o mesmo que assinar sua sentença.

    Não havia janelas na área de desembarque, mas Lyra acompanhava tudo através de um monitor que exibia o exterior em tempo real. O céu era uma massa pesada de nuvens cinzentas, que pareciam sólidas, e abaixo delas se estendia uma floresta primitiva, com árvores de copas largas e troncos como prédios. No meio daquela vastidão, erguiam-se as estruturas de um complexo imperial.

    À distância, parecia uma prisão de guerra: torres de observação, muros de concreto negro com cercas energizadas, e canhões de luz varrendo os céus e a vegetação ao redor, como olhos atentos. Foi apenas quando a nave se aproximou da plataforma que Lyra compreendeu a escala do lugar. Seria seu novo lar, por semanas, meses, talvez anos. Ela não sabia ao certo.

    Mas sabia que nada daquilo seria passageiro.

    Enquanto a nave se alinhava para o pouso, Lyra fez um inventário mental. Vestia o macacão preto do Império, agora coberto por uma capa grossa para suportar o temporal. Sobre o rosto, o respirador necessário para suportar a atmosfera hostil. Seus únicos pertences eram o tablet entregue por Zyab e suas lembranças.

    A Matriarca não estava ali para se despedir. Mas deixara palavras. “Seja forte. Não se deixe enganar. Vão tentar pisar em você. Faça o que fazia nos controles daquela broca, e vai se sair melhor do que muitos.”

    A nave pousou com um baque surdo. A rampa se abriu, deixando a chuva invadir a entrada da nave como uma avalanche líquida. Lyra desceu. Em segundos, estava encharcada. A água gelada misturada ao vento cortante a desorientou. A visibilidade era quase nula, e o som da chuva abafava tudo. Antes que pudesse se situar, a nave de Zyab alçou voo, desaparecendo nos céus cinzentos sem cerimônia.

    Dois feixes de luz cortaram o aguaceiro. Dois homens, ambos protegidos por capas e respiradores, acenavam para ela junto à porta reforçada do complexo. Com dificuldade, ela protegeu os olhos com a mão e correu até eles, os pés escorregando no concreto molhado.

    Entrar no complexo foi como cruzar um limiar. A umidade e o frio ficaram para trás. O calor artificial e o ruído baixo das máquinas tomaram o ar.

    Lyra ainda sentia um frio na barriga, mas havia uma faísca de empolgação ali. Estava nervosa, sim, mas pronta. Ela confiava em si mesma. E agora era hora de provar.

    — Veyne? Lyra Veyne? — perguntou um dos homens, olhando para um visor em seu pulso.

    Ela assentiu, puxando o ar por trás do filtro do respirador.

    — Ótimo. Me acompanhe. Vou levá-la até a área de processamento. Está com o registro?

    Lyra ergueu o pulso, mostrando o tablet preso ali. Tudo estava pronto. Zyab havia cuidado dos detalhes. Ela só precisava manter a farsa de pé, e sobreviver ao que vinha depois.

    O interior do complexo era frio e impessoal. Concreto armado, aço escovado, cabos expostos e iluminação branca, sem qualquer ornamentação, apenas função.

    Tudo ali era utilitário, a única exceção era o símbolo do Império e da igreja em uma ou outra parede. Os corredores eram largos o suficiente para permitir o trânsito de veículos de carga ou tropas em formação, e ainda assim pareciam apertados diante da escala do lugar.

    Enquanto avançava, Lyra observava em silêncio. Já havia duas castas visíveis. Os técnicos e operadores, vestidos com macacões bege, circulavam com ferramentas, pastas de dados e olhares cansados. E os outros, figuras em uniformes militares pretos, com o emblema das manoplas cruzadas do Império estampado nos ombros. Guardas, talvez. Instrutores. Ou algo ainda pior.

    Ainda tentando se orientar, caminhando atrás do homem de capa que a guiava, Lyra foi surpreendida por uma presença que parecia deslocada naquele espaço, um homem colossal, surgindo de uma das curvas do corredor.

    Ele vestia uma armadura amarela, pesada e reluzente, com uma cabeça de leão gravada em alto-relevo nas espaldeiras. Havia algo de monstruoso naquela presença. Uma força bruta contida em forma humana. Era um legado da Nona Legião, e Lyra reconheceu as cores e o símbolo mesmo tendo o visto apenas em registros antigos e ilustrações oficiais.

    O homem era gigantesco. Devia ter mais de dois metros e meio de altura, com ombros tão largos quanto a porta de uma nave de transporte, e seus passos pesados faziam o chão vibrar sutilmente, como se anunciassem sua passagem antes mesmo de ele se fazer visível.

    Quando cruzaram no corredor, seus olhares se encontraram por um instante. O que surpreendeu Lyra não foi o tamanho, nem o uniforme reluzente, mas a expressão: o homem parecia jovem. Jovem demais para aquele corpo construído para a guerra. E então ele sorriu, um sorriso amplo, revelando dentes brancos e perfeitamente alinhados.

    Mas algo naquele gesto estava fora do lugar.

    Aquilo não tornava o homem mais simpático. Pelo contrário. O contraste entre o rosto jovial e o corpo forjado como uma arma de cerco apenas o tornava mais desconcertante. Aqueles dentes, tão humanos, pareciam deslocados naquele conjunto quase artificial. Era como se tivessem sido colados ali, tentando disfarçar o que realmente habitava sob a armadura.

    Ela se sentiu encolher. Não apenas pela diferença de estatura, mas pelo que ele representava.

    Os legados eram filhos “deles”. Produtos dos mesmos Praetorii e Matriarcas que, como dissera Zyab, geravam seus descendentes fora de úteros, moldados artificialmente para serem armas vivas do Império. A simples ideia de ser, de alguma forma, “irmã” deles… fez um frio estranho se espalhar por sua espinha.

    Ela afastou o pensamento. Não agora. Não era hora de pensar em identidade, em linhagem, em sangue. Para todos os efeitos, ela era filha de Rob e Virna. Isso era o que constava no sistema. Era o que precisava ser.

    Seguiram adiante até alcançarem um átrio imenso, onde o movimento era constante. Gente indo e vindo, veículos de carga puxando reboques, trabalhadores escaneando dados, transportando caixas, comunicando-se por rádio. Mais uma barreira, mais um portão. Um scanner os identificou, e eles cruzaram para um novo setor. O ar ali tinha um cheiro diferente,  menos agressivo, mais seco. A luz parecia mais amena, reconfortante.

    O guia retirou o respirador com um estalo suave. Sua voz saiu mais nítida sem os filtros.

    — Aqui já temos um ambiente filtrado. Pode tirar o seu também.

    Lyra hesitou por um instante. O respirador ainda parecia uma barreira segura contra o desconhecido. Mas, diante do gesto do homem retirando o dele com naturalidade, ela obedeceu.

    O ar tocou seu rosto como um bafo morno. Ao inspirar, sentiu o peso na atmosfera, denso, quase palpável. O cheiro do aether estava presente, sutil, mas inconfundível, uma doçura metálica que parecia se fixar na garganta e nas narinas.

    Lyra fechou os olhos por um segundo, permitindo-se sentir o impacto daquela nova realidade. Estava dentro. Sem filtros. Sem mais voltas.

    — Ali — apontou ele, indicando uma recepção à direita. — Faça seu registro. Eu espero aqui. Depois vou te levar para a área de convivência. Vai ser seu dormitório e campus por um bom tempo.

    Lyra assentiu em silêncio. Os primeiros passos já estavam sendo dados. Não havia mais volta.

    O procedimento de registro foi direto e impessoal. Scanner ocular, verificação biométrica, assinatura digital, tudo realizado com a frieza metódica de quem processa dezenas como ela todos os dias. Nenhuma palavra além do necessário. Nenhum olhar que durasse mais que o exigido.

    No fim, colocaram em suas mãos um crachá metálico. Frio ao toque, pesado apesar do tamanho. Gravado nele, em letras austeras: Lyra Veyne, Tributo 1404. Domatorum.

    Apenas mais uma peça num tabuleiro vasto e indiferente. Apenas um número. Na verdade não servia para nada ali dentro, apenas para desumaniza-la.

    Lyra observou o crachá por alguns segundos, como se aquilo fosse uma afronta silenciosa. Pegou o objeto entre os dedos com nojo contido, como quem segura algo contaminado. E mesmo assim, prendeu-o à gola do macacão.

    Logo depois, seguiu seu guia até um grande elevador de carga. A cabine subia devagar, acompanhada por um zumbido contínuo e uma leve vibração sob seus pés. Conforme subiam, ela percebeu que estavam indo muito alto, o painel indicava níveis que se acumulavam além do centésimo andar. Quando as portas finalmente se abriram, Lyra perdeu a fala.

    O que viu à sua frente não era apenas uma área de convivência. Era uma cidade inteira, encapsulada sob uma cúpula translúcida de aço e plaxyglass. Uma imensa abóbada abrigava prédios, gramados, torres de treino, corredores elevados e passarelas suspensas.

    Acima, a chuva ainda caía, visível através do domo transparente, junto com relâmpagos que cortavam o céu cinzento com violência silenciosa.

    A estrutura parecia viva. Havia pessoas andando, drones voando, luzes piscando, e a sensação de que tudo estava em movimento, funcionando em um ritmo próprio. Era um mundo à parte.

    — Essa é a área de convivência — explicou o homem. — basicamente o Domatorum fica aqui.

    O homem suspirou, como se sua paciência estivesse sendo testada além do limite, e continuou a explicação apontando para o pulso de Lyra.

    — Seu tablet já deve ter recebido todas as informações que vai precisar. A descrição dos prédios, horários, refeitório, dormitório… Enfim, tudo o que precisa saber para sobreviver aqui. Boa sorte no seu treinamento, tributo Veyne.

    Sem esperar qualquer resposta, ele se virou e entrou no elevador. As portas se fecharam com um chiado seco e abafado. E então, silêncio.

    Lyra permaneceu imóvel por alguns segundos, apenas observando o vazio à sua frente. Era como se o peso de tudo só tivesse sido colocado sobre seus ombros agora. O coração batia forte, num ritmo apressado, não apenas pela magnitude do lugar, mas pela certeza de que, a partir dali, nada mais seria simples.

    Respirou fundo. Virou o visor do tablet em sua direção. A tela se acendeu imediatamente, reconhecendo seu toque.
     
    LYRA VEYNE — TRIBUTO 1404
    Alojamento: Dormitório Central
    Quarto Comunal 08
    Status: Novata
    2 mensagens não lidas
     
    Abriu a primeira.

    Era uma mensagem padronizada, impessoal e quase robótica. Dava as boas-vindas à novata e destacava, com ênfase no final, a importância de ler o regulamento e se familiarizar com as instalações.

    A segunda era diferente. Mais direta, sem saudações.

    “Novata Veyne, Comparecer imediatamente ao prédio administrativo. Nosso reitor, Legado Logan Crass, a aguarda.”

    Lyra sentiu o frio na barriga voltar. A escola mal havia começado, e já era chamada na diretoria.

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