capítulo 102 - A parte do Cavaleiro
Por um momento, as vozes se aquietam e o único som audível dentro da torre é o dos grilos, misturados ao crepitar da tocha que Byron segura.
O orc encara a succubus com um olhar apreensivo, quase surpreso. E Rubi, com a mão no ombro de Brok, aguarda pacientemente por uma resposta, com sua cauda balançando.
“Que tipo… de teste?”, o orc pergunta, com cuidado nas palavras.
“Só uma troca de ataques com arma”, ela responde, com leveza. “Quero mostrar algo ao Byron. Além disso, acho que vai ser bom para você praticar se mover com o peso extra da armadura, não concorda?”
Brok engole seco, sentindo mais uma vez um calafrio na espinha.
“Um… duelo?”, ele questiona, levemente temeroso.
“Eu não chamaria assim”, corrige Rubi, torcendo o nariz para a escolha de palavras. “Diria que é mais uma lição…”
Byron ergue a sobrancelha, intrigado. “Então já iniciaremos meu treinamento agora?”, ele questiona, interrompendo a conversa.
Rubi desvia o olhar para o demônio, acenando. “Sim. Quero a ajuda dele pra te mostrar o básico”, diz ela. “Vai ser mais simples te explicar assim.”
“Então… são só armas? Sem… magia?”, ele comenta, buscando confirmação.
“É. Seria isso mesmo”, responde ela, desconfiada.
Por que tanto receio?, Rubi se pergunta.
“Quero ensinar o Byron a usar a espada.”
Aliviado, Brok suspira e sente um peso invisível desaparecer antes de aceitar o pedido.
O que ele achou que eu ia fazer…?, Rubi se pergunta, franzindo as sobrancelhas.
Ela se volta para o demônio, exibindo um olhar dedicado. “Enfim, só há mais um detalhe a ser acertado”, afirma Rubi.
“Está certa de que prefere assim?”, o diabo pergunta.
“É só uma forcinha extra”, Rubi fala.
Byron finca sua arma no chão, cravando-a sobre a rocha, e aproxima-se da diaba.
O que eles vão… ?, pensa Brok.
Uma fina aura rosa começa a brilhar sob a pele da diaba.
Ao lado dela, o orc sente a magia fluir, quente, esotérica e estranhamente familiar. Um arrepio o percorre, e ele recua um passo, instintivamente.
… Um acordo, ele conclui.
“Byron, cavaleiro demônio…”, Rubi começa, uma voz firme e decidida. “Como parte da recompensa pelos seus esforços, vou lhe ensinar a manejar uma espada. Aceita?”
O diabo curva a cabeça, dobra o braço em um gesto elegante e fecha os olhos. “Eu humildemente aceito”, ele diz, centrado e grato.
A aura rosada sai da diaba e vai em direção ao demônio como uma leve brisa brilhante. Por um segundo, ela envolve seu corpo até desaparecer em um lampejo sutil.
A sala fica quieta e os sons da noite voltam a prevalecer. Brok apenas observa em silêncio, a expressão dividida entre confusão e uma admiração contida.
“Sou grato pela oportunidade”, fala Byron, antes de retomar sua postura firme.
“Não foi nada”, diz Rubi, num tom casual. “Mas a parte difícil ainda depende de você.”
“Farei por merecer”, diz o diabo.
O tom místico e sério entre os demônios desaparece, como se nunca tivesse estado ali, dando lugar à calmaria rotineira.
“O que foi…”, começa a murmurar o orc, sem entender. “Esse acordo?”
“Foi um pacto bem mais simples do que o seu”, Rubi responde. “Usei minha magia pra ajudar o Byron a aprender a usar a espada mais rápido.”
“E isso é possível?”, questiona o orc.
“Desde que o demônio saiba realizar aquilo que prometeu, é sim”, exalta Byron.
“Hum… impressionante”, comenta Brok.
“É… mas o custo pode ser alto”, diz Rubi, cruzando os braços. “Aparentemente, se a pessoa tiver muita dificuldade ou não for capaz de usar a habilidade por conta própria, o pacto consome muito mais mana. E, nesses casos, ela passa a depender totalmente da magia para continuar usando o que aprendeu.”
“Por exemplo, Brok, seria bem mais caro para a senhorita Rubi lhe ensinar algum feitiço através de um pacto”, Byron acrescenta. “Nesses casos, o demônio só recupera a magia gasta quando o pacto é desfeito ou… a pessoa morre.”
O orc murmura um som pesado, vindo das profundezas da garganta, e acena. “Tudo tem um preço com magia…”, ele comenta.
Apesar disso, Rubi olha para o demônio, com um sorriso tranquilo. No caso do Byron, é simples. Ele já é um combatente experiente. Vai pegar o básico dessa maestria num piscar de olhos, ela pensa. Talvez… eu tenha virado um daqueles NPCs tutores. Até que é divertido.
A diaba ri de leve e foca a atenção na espada que está cravada no chão atrás dele.
Sei que o conceito de classe existe aqui, só que não é algo automático como subir de nível. No próprio Brok consigo enxergar habilidades e maestrias típicas de classe, mas tenho certeza de que ele aprendeu isso com tempo e treino. Mesmo se Byron dominar a espada perfeitamente, é improvável que uma classe brote nele do nada. O que posso fazer é usar o que sei e guiá-lo para aprender as habilidades e assumir a mesma função de uma classe.
“Acho que já podemos começar a lição, Brok”, diz a succubus.
O orc assente e os dois começam a se preparar, ficando diante um do outro sobre uma parte do chão sem nada entre os dois.
Rubi saca sua rapieira da bainha, segurando-a firmemente com a mão esquerda. A ponta é erguida com a lâmina voltada na direção do orc, que segura seu machado usando as duas mãos.
Byron, de pé e afastado alguns metros, observa atento os dois.
“O fio sempre pra frente…”, aconselha Rubi. “Para atacar ou se defender. É onde a força é melhor aplicada. Se não for assim, você não tem uma lâmina, você tem um remo.”
O diabo acena.
“Brok, dois golpes devem bastar. Eu vou pegar leve”, diz Rubi. “Você começa. Depois, será minha vez.”
O orc se concentra. O ar quente escapa de suas narinas lentamente enquanto ele cerra o olhar. Ele vê Rubi quieta, aguardando-o. Mesmo a cauda dela não se move. Aos seus olhos, a diaba, esguia, não exala ameaça, nem magia, não fosse a arma nas mãos dela, ela parece quase vulnerável.
Não importa o quão forte eu esteja, sinto meus instintos me traindo…, ele pensa, incomodado, emitindo um rosnar baixo.
O orc parte em uma investida sem hesitação, desferindo um ataque descendente com seu machado. Rubi brande sua espada para o lado com um movimento longo.
Um impacto metálico é emitido e o machado de Brok é repelido em uma defesa fluida.
Por um instante, o orc sente as mãos estremecidas, mas não solta a arma. Ela é forte, ele constata, sentindo em primeira mão.
O contra-ataque de Rubi é calmo. Em contraposição ao ataque de Brok, ela ataca com sua espada de baixo para cima.
O orc defende-se, interpondo seu machado à frente, mas o ataque dela é muito pesado e seu machado recua novamente e a ponta da rapieira ainda resvala na lateral do peito da armadura metálica.
Brok quase perde o equilíbrio e recua um passo. Com o machado ainda firme nas mãos, ele mantém-se em prontidão por um instante, antes de notar a succubus já com a arma relaxada, olhando para o ponto em que a lâmina tocou.
“Você tá bem?”, ela pergunta.
O orc responde com uma bufada curta.
“Ainda bem”, diz Rubi, já guardando a espada na bainha. “Normalmente eu não faço esses movimentos longos, mas, pra uma primeira lição, talvez sejam melhores.”
A tensão nos ombros de Brok diminui. Ele abaixa o machado, exalando fundo. Pensei que a batalha contra Estoratora fosse a maior luta que teria hoje, ele pensa, cansado.
“E então, Byron, acha que deu certo?”, Rubi questiona.
O diabo examina as próprias mãos, os dedos se movendo devagar como se confirmasse algo invisível sob a pele. “Hum…”, murmura ele.
Ele fecha o punho, ergue o braço e o movimenta no ar, como se empunhasse uma espada ausente.
Brok e Rubi o observam repetir os gestos que acabaram de treinar, precisos, mas com a hesitação de quem ainda está se adaptando.
“Parece… que deu certo”, Brok comenta.
“Sinto a memória dos ataques gravada nos meus músculos”, afirma Byron. “Não tenho dúvidas de que funcionou.”
É como uma versão menor do sistema do jogo, algo mais arcaico. E, pelo visto… até a parte em que, com o tempo, ele pode se adaptar, é a mesma, Rubi divaga, introspectiva. De umas semanas para cá, sinto que estou deixando de depender do sistema, ou seja lá o que for, me guiando quando luto ou uso minhas habilidades. Estou começando a entender e usar essas coisas por conta própria. Talvez isso seja bom… mas também é um pouco estranho.
A diaba nem percebe a aproximação de Byron. Ele caminha com calma e para diante dela, seus olhos agora brilham com uma centelha de satisfação. “Sou grato pela oportunidade”, diz ele, reverente e agarrando novamente a atenção da succubus.
Rubi arqueia uma sobrancelha, resistindo ao impulso de recuar. “Tem que agradecer ao Brok também”, ela provoca, jogando o olhar na direção do orc.
“É claro que sou grato ao apoio do Brok”, diz Byron, virando-se para o orc com um sorriso largo, um daqueles que só um diabo conseguiria esboçar. Uma risada breve e estranhamente cortante escapa de seus lábios.
“É…”, murmura Brok, um pouco atormentado. “Eu sei.”
Rubi olha para Byron e Brok, um brilho de satisfação refletido nas pupilas.
Os dois receberam equipamentos novos e já têm objetivos bem definidos do que fazer a partir de amanhã, ela analisa, contagiada pelo entusiasmo. É um bom momento pra descobrir se essa mudança na auréola é um upgrade ou não.
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