Capítulo 6 - Não Deixarei Você Morrer
Num espaço aberto, suspensa no nada, Íris se vê confusa, completamente aérea — como se vários eventos aleatórios que vivera antes do colapso viral passassem diante de seus olhos em velocidade insana.
Ela olha para todos os lados, mas o vazio não oferece respostas. O coração acelera quando, entre cada flash do passado, surge e desaparece a imagem de Bruno, parado, com os olhos vermelhos fixos nela.
A cada vez que ele some, o escuro toma conta e a voz dele ecoa em sua mente, arrastada, quase sufocada:
— San…gue… so…corr…o.
— Bruno! CADÊ VOCÊ?! — gritou, sem saber para onde correr, sentindo que a palavra “sangue” martelava sua cabeça como um aviso e uma ameaça ao mesmo tempo.
De repente, o chão sob seus pés se dissolve e ela despenca em uma escuridão profunda, sem fim. O vento da queda é silencioso, e a vertigem parece eterna.
No meio do vazio, um clarão.
Um instante congelado.
Bruno — ou o que restava dele — com o corpo de uma criança, chorando.
Mas não era só uma visão. Ela sentia. Sentia toda a dor entalada dentro dele, como se fosse sua, queimando por baixo da pele, esmagando o peito.
Assustada, Íris ofega e, num piscar de olhos, desperta.
O ar entra com força, os músculos doem. Ela percebe que havia apagado. Bufando de frustração, pega a agulha e a linha, as mãos trêmulas, e corre até Bruno.
— Droga… quanto tempo será que eu fiquei apagada?! — resmunga, a voz embargada.
A agulha, velha e grossa, não era feita para suturas. Cada tentativa de atravessar a carne dele é um esforço, um arrasto de metal que exige força e precisão, enquanto o sangue insiste em manchar tudo.
Respirou fundo, fechando os olhos por um instante para acalmar o coração acelerado.
— Vamos lá, Íris Margarete… você consegue. — murmurou para si mesma.
Ao abrir os olhos, o brilho vermelho carmesim tomou conta de sua íris, o mesmo que surgira quando enfrentou o mutante de olhos brancos. Determinada a salvá-lo, ela mergulhou a agulha na pele dele — e, como se algo a guiasse, o metal atravessou sem resistência.
Quarenta minutos depois, cada ferida estava fechada. Suor e sangue manchavam suas mãos, mas não havia tempo para descanso. Pegou um alicate e, com cuidado, começou a remover os grampos da carne dele. Sabia que, se ficassem ali, a infecção seria quase certa.
Quando terminou, correu até a cozinha à procura de álcool para limpar os ferimentos. Vasculhou gavetas, prateleiras e armários — nada.
— Merda… — resmungou, a frustração queimando na garganta. — Vou ter que sair para buscar…
Lembrou-se do que ele havia dito: os infectados não se moviam à noite. Talvez tivesse uma chance.
Parou diante da porta, respirando fundo mais uma vez. Olhou para Bruno, imóvel no sofá. Cogitou se valia a pena deixá-lo sozinho. Uma parte dela gritava para não fazer isso; a outra sabia que era a única opção.
Com um último olhar, girou a maçaneta e saiu para a rua, mergulhando no silêncio gelado da noite.
Correndo pelas ruas escuras, Íris se via perdida em pensamentos, repassando cada momento do dia e tudo o que mudara desde que conhecera Bruno — ou melhor, Mohammad, a outra personalidade dele.
A lembrança mais marcante era a do dia em que ele a fizera beber de seu próprio sangue, através de um beijo.
— Ele com certeza me mudou… — murmurou, arfando. — Eu sempre fui medrosa, incapaz de entrar em conflitos ou levantar a voz para alguém. Mas hoje… hoje eu fiz algo que nunca imaginei na minha vida.
A imagem voltou como um soco: sozinha, enfrentando e sobrevivendo àquele demônio de olhos brancos.
— Quando minha mãe e minha tia foram infectadas… — sua voz embargou. — Eu corri e me escondi debaixo da cama, como uma covarde. Fiquei lá, tremendo, mijada de medo, incapaz de sair, mesmo ouvindo tudo acontecendo ao meu redor… fiquei dias assim, até que ele apareceu…
De repente, avistou vários infectados espalhados pela rua. Todos parados, cabeças baixas, imóveis, como se estivessem em transe. A visão gelou sua espinha, mas ela não diminuiu o passo.
— Acho que deixei de ser humana… e isso mudou meu comportamento, meus pensamentos… tudo.
Encontrou a porta de uma mercearia e entrou, iluminando o interior com a luz fraca do celular. As prateleiras estavam cobertas de poeira e o ar tinha cheiro de ferrugem e mofo. Vasculhou cada canto, procurando desesperadamente álcool ou alguma bebida forte que pudesse servir.
Finalmente, em uma prateleira esquecida, encontrou uma garrafa de nome incomum: Maria Louca. O rótulo indicava um teor alcoólico impressionante — 92%. Sem pensar duas vezes, agarrou a garrafa e saiu correndo de volta para casa, determinada a terminar de tratar as feridas de Bruno.
Chegando até ele, Íris não perdeu tempo: entornou a bebida diretamente sobre as feridas. O líquido forte escorria pelo sofá, misturando-se ao sangue dele, o cheiro ácido se espalhando pelo ar.
Em seguida, correu até o quarto onde havia encontrado a linha de pipa e pegou uma peça de roupa infantil limpa. Ao abrir o armário, notou presa na porta uma fotografia: várias crianças e um adulto reunidos num campo de futebol de terra batida. Um sorriso breve escapou dela… mas logo a preocupação voltou a pesar.
— Vou aproveitar que a casa ainda tá com energia e vou limpar você. De novo… espero que isso não vire rotina… — resmungou, tentando se manter firme.
Pegou um balde limpo na área de serviço, encheu-o de água e voltou para a sala. Molhou o pano e se aproximou de Bruno, mas algo a fez congelar: o corpo dele estava gelado, quase sem vida, e seu coração… quase não batia.
O aperto no peito foi imediato.
— Mas nem morta que você vai me deixar sozinha assim! — gritou, a voz embargada, enquanto lágrimas queimavam seus olhos. Desesperada, pressionou as mãos contra o pescoço dele, tentando sentir qualquer traço de pulso.
Foi então que uma ideia insana surgiu.
— Espera… e se eu der meu sangue pra você? — murmurou, arfando. — Eu te escuto pedindo isso na minha cabeça o tempo todo…
Sem pensar duas vezes, levantou-se e correu até a cozinha. Revirou gavetas até achar uma faca afiada, o metal frio refletindo a luz fraca do cômodo. De volta à sala, posicionou-se diante dele, estendendo o pulso sobre seu rosto.
Ela respirou fundo. Nunca havia se cortado por vontade própria. A lâmina parecia mais pesada do que deveria, e a hesitação se arrastou como uma eternidade.
Ela fechou os olhos e respirou fundo, tentando silenciar o próprio pânico.
Num impulso cego, deslizou a lâmina contra o pulso — não quis ver, mas sentiu na hora. A dor foi aguda, cortante, e o calor do próprio sangue escorreu rápido, denunciando que o corte havia sido profundo demais.
O susto a fez estremecer. O vermelho escorria muito mais do que esperava, tingindo sua pele e pingando no chão, mas ela não podia recuar agora. Com a outra mão, segurou o queixo dele e forçou a boca a se abrir.
— Vai… bebe… — sussurrou, mais para si mesma do que para ele.
O sangue caiu em fios grossos dentro da boca dele, cada gota carregando a esperança desesperada de que fosse o suficiente para trazê-lo de volta.

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