As portas de vidro automáticas se fecharam atrás de Lyra com um chiado suave a separando do ruído do lado de fora. Tinha perdido alguns minutos lutando para encontrar as informações certas no tablet, mas enfim havia chegado ao destino.

    O prédio era revestido por placas de vidro escuro, com estrutura metálica visível por trás. Era moderno, eficiente e imponente. Acima da entrada, reluzia a insígnia dos domadores: uma fagulha de aether entrelaçada a uma serpente estilizada, símbolo da união entre espírito e fera. Se sobrevivesse às provações futuras, ela própria carregaria aquele emblema sobre o peito. Nesse momento, ela quem teria os dentes.

    — Por favor… — disse, com mais hesitação do que gostaria, dirigindo-se à recepcionista vestida com o uniforme negro do Império, impecável e severo.

    A mulher a observou sem mudar a expressão.

    — Tributo 1404?

    Lyra assentiu com um pequeno gesto de cabeça.

    — Ele está esperando por você. — A recepcionista fez um gesto com a mão, indicando um corredor lateral. — Elevador, quinto andar. Segunda porta à direita. Bata antes de entrar.

    — Entendido — respondeu Lyra, reunindo o máximo de compostura.

    O prédio, por dentro, era tão sóbrio quanto elegante. As portas eram largas e altas, padrão legado, percebeu.

    Tudo ali era feito pensando em corpos que podiam superar dois metros de altura com facilidade.

    Chegando ao andar indicado, parou diante da porta.

    Deu duas batidas firmes.

    Uma voz rouca respondeu do outro lado:

    — Pode entrar.

    Ao cruzar a porta, Lyra precisou conter a expressão de surpresa. O homem sentado atrás da grande mesa era Logan, e ele era muito mais do que tinha imaginado.

    Além do porte colosso, típico dos legados, parte significativa de seu corpo era composta por implantes cibernéticos. Metade do pescoço e todo o braço esquerdo pareciam ter sido reconstruídos em metal escuro, com detalhes cromados que brilhavam sob a luz suave do ambiente. Os servo-motores emitiram estalos e assobios baixos quando ele moveu o braço.

    Mesmo sentado, sua presença preenchia o espaço. O uniforme negro com o símbolo do Domatorum no peito parecia pequeno para seu corpo. Sobre a mesa de madeira maciça, repousava um charuto aceso, cuja brasa lançava reflexos avermelhados em seus olhos pequenos e escuros, que não desgrudavam dela.

    — O senhor queria me ver? — perguntou Lyra, mantendo a postura ereta, tentando soar mais firme do que realmente se sentia.

    Logan puxou uma longa tragada do charuto, soltando a fumaça em espirais lentas enquanto a observava com olhos escuros e atentos. Depois, se ajeitou na cadeira, e os encaixes cibernéticos em seu ombro e perna, ambos implantes robustos, estalaram de maneira audível, como se a máquina dentro dele estivesse acordando.

    — Queria ver minha nova joia com os próprios olhos — disse ele, a voz grave como metal raspando. — Ver se vai valer toda a confusão que já estou prevendo…

    — Joia, senhor?

    — Sim. A joia mais preciosa que já recebi nesta escola — repetiu com um meio sorriso, afiado como uma lâmina. — E olha que recebo um bocado de herdeiros de Casas nobres por aqui. Gente que acha que talento nasce com sobrenome e carteira cheia.

    Ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos pesados sobre a mesa. A madeira rangeu sob seu peso.

    — Sabe por que veio pra cá, tributo? Sabe o que significa ser um tributo? O valor disso?

    Lyra sustentou o olhar, sentindo o peso da presença dele como se fosse uma gravidade própria.

    — Vim porque fui enviada — respondeu, com firmeza contida. — Não tive muita escolha.

    — Hum. Escolha… — murmurou Logan, sem disfarçar o ceticismo. Mas não a interrompeu.

    Ela continuou, percebendo que estava sendo testada a cada palavra.

    — E quanto a ser tributo… é como um sacrifício, não é? Um tipo de oferenda ao Império. Servir ao Demiurgo com o que temos. Com o que somos.

    Logan soltou um som baixo, algo entre um riso e um grunhido.

    — Você está certa. E ao mesmo tempo, completamente errada.

    Ele se levantou da cadeira num movimento pesado, mas controlado, caminhando até a grande janela reforçada que dava para a abóbada da cidade-escola. A chuva tamborilava no plaxyglass.

    — Tributos não são só oferendas, Veyne. São moedas. Moedas vivas. São jogadas no tabuleiro para que outros ganhem favores, para que alianças se mantenham, para que dívidas sejam cobradas e pagas. E quanto mais valiosa a moeda… maiores as expectativas. E os perigos.

    Virou-se de volta para ela, seus olhos pequenos, mas penetrantes.

    — Você, Veyne, é rara. Talvez preciosa demais. E coisas valiosas tendem a atrair cobiça, e problemas.

    Ele voltou para sua cadeira, com um peso que parecia dobrar o chão. Ficou em silêncio por um momento, apenas olhando.

    — E sobre ter sido enviada… Aqui dentro, isso não importa. Aqui, o que interessa é o que você fará. O que vai se tornar. A joia… só tem valor se resistir ao processo de lapidação. Se ela resistir ao processo, pode cortar até aço.

    Lyra assentiu, engolindo em seco.

    — Obrigada, senhor — disse ela, quase se atrapalhando com as palavras, hesitante.

    — Pare com isso. Se você não se impuser… vai ser esmagada — rosnou o legado, a voz grave como um motor mal calibrado.

    Lyra ergueu a cabeça. Seu olhar encontrou o dele por um instante — firme, mesmo que por dentro tudo tremesse. Logan notou. E assentiu com um leve inclinar de queixo, como quem reconhece uma centelha.

    — Não espere piedade de ninguém. Nem de mim — continuou, a voz agora mais baixa, mas não menos intensa. — Eu não sou seu inimigo. Mas também não sou seu protetor. O máximo que posso lhe oferecer… é justiça.

    Fez uma pausa. O charuto queimava lentamente entre seus dedos metálicos, o cheiro acre pairando no ar.

    — O resto, tributo… é com você.

    Ele soltou a fumaça com um suspiro lento, encerrando a conversa com o peso de uma sentença.

    Quando saiu do prédio, Lyra ainda tremia, mas era um tremor diferente, não mais de medo, e sim da tensão acumulada que agora se transformava em determinação. Apertou os punhos com força. Não deixaria que pisassem nela. Não mais. Iria se tornar aquilo que Logan esperava… uma joia capaz de cortar aço.

    Conferiu o mapa projetado em seu tablet de pulso e seguiu até o dormitório. Seus passos eram firmes, embora sua mente ainda estivesse agitada. Mal notava os olhares que a acompanhavam, alguns curiosos, outros indiferentes. Um ou outro talvez até, hostil.

    Após uma caminhada considerável por entre os blocos internos do complexo, chegou a um conjunto residencial cercado por construções menores. O prédio central, para onde se dirigiu, era uma estrutura retangular, com janelas alinhadas em intervalos regulares. Como a maioria das edificações do Domatorum, era funcional, sem adornos ou pretensões estéticas.

    A entrada principal ficava sob uma marquise ampla que servia como pátio coberto. Ali, dezenas de alunos se espalhavam em grupos. Alguns riam e conversavam. Outros pareciam estudar, concentrados sobre tablets.

    Um grupo jogava uma partida de algum esporte desconhecido, com uma bola que quicava em padrões erráticos. Mas o que realmente chamou a atenção de Lyra foi um jovem que, de maneira improvisada, treinava uma criatura azulada de seis patas. O animal, ou fera, não sabia, imitava movimentos simples, como um cão atento, mas seu olhar era estranho… quase consciente demais.

    Ela passou por todos, sem apressar o passo, recebendo alguns acenos de cabeça e olhares curiosos. Não respondeu. Subiu os degraus e entrou no prédio.

    Percorreu o corredor até encontrar a inscrição “Dormitório 08” acima de uma das portas metálicas. Respirou fundo e entrou.

    A cena que encontrou a fez congelar por um instante.
    Sete alunos estavam perfilados em frente a suas camas, imóveis como soldados diante de inspeção.

    Dois oficiais imperiais de uniforme preto montavam guarda. Uma mulher de cabelos vermelhos, também em trajes de segurança, recolhia, de forma metódica, os pertences de alguém. A cama vazia ao lado indicava que o dono dos objetos não voltaria.

    Quando terminou de empacotar tudo em uma bolsa cinza, ela se virou para os alunos e declarou, com voz seca:

    — Após a conclusão da investigação sobre o acidente, vocês serão oficialmente notificados. Por ora, considerem-se sob observação.

    Em seguida, saiu da sala levando consigo os guardas.
    Lyra recuou um passo para abrir espaço. Os três passaram por ela em silêncio com passos firmes, pesados, que pareciam carregar mais do que apenas autoridade: carregavam o aviso de que a morte ali não era algo incomum.

    Por fim, ela olhou ao redor. Seus novos companheiros de dormitório continuavam imóveis. Quatro rapazes. Três garotas. Nenhum deles disse uma palavra, mas todos a observavam com atenção.

    Entrando no quarto, Lyra sentiu os olhares pesarem sobre si. Fechou a porta com um estalo discreto e se manteve firme.

    — Você é a garota nova? — perguntou um rapaz bonito de olhos verdes intensos e cabelo raspado rente ao couro cabeludo. Sua voz era arrastada, com um toque de cansaço e sarcasmo.

    Sem esperar resposta, ele apontou com o queixo para a cama vazia.

    — Ponha suas coisas ali. Será sua cama… pelo menos até se formar, ou morrer — murmurou, com um meio sorriso que não chegava aos olhos. — Dessa vez, os desgraçados não deixaram nem a cama esfriar.

    — Até parece que você se importava — retrucou uma garota baixa e pálida, feições orientais, a voz cortante como gelo fino.

    O silêncio que se seguiu foi espesso, denso como neblina pesada e ainda assim frágil, como se qualquer palavra pudesse romper o véu tênue da ausência que pairava ali.

    A presença do antigo ocupante parecia ainda colada às paredes, persistente como poeira que se recusa a assentar.

    Lyra apenas assentiu, caminhou até a cama indicada, retirou a capa grossa de chuva e a dobrou com calma antes de se sentar sobre o colchão. Não tinha nada ali que pudesse chamar de seu.

    Ainda assim, aquele espaço agora era dela.

    Manteve o olhar firme, desafiador, como se dissesse sem palavras que não iria recuar. Que estava pronta.

    Ela ia se provar ali.

    E nenhum daqueles sete olhares iria impedi-la disso.

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