No dia seguinte, fui acordado com o som oco da bengala de Oliver batendo no chão da torre mágica. A luz do amanhecer atravessava os vitrais altos, pintando o espaço com tons suaves de púrpura e dourado. Pers ainda dormia recostada na parede, os cabelos espalhados como neve sobre o chão de pedra.

    — Hoje, nada de lutas épicas nem trovões negros — disse Oliver, com a voz séria e sem o habitual sarcasmo. — Sente-se, Hades. Pernas cruzadas. Coluna reta. Silêncio absoluto.

    Obedeci, sentando-me no centro do círculo mágico que ele mesmo havia traçado. As linhas brilhavam levemente sob minha pele enquanto me posicionava. Pers abriu os olhos devagar, mas não interferiu. Apenas observava, curiosa e serena.

    — Você começou a purificar suas veias — continuou Oliver, andando em círculos ao meu redor como um corvo sábio. — Agora é hora de ouvir o que o seu corpo tem a dizer. Não force. Não conjure. Apenas sinta.

    Fechei os olhos. Respirei fundo. O silêncio caiu como um véu.

    No início, não havia nada além da respiração. O som do ar entrando e saindo, ritmado, constante. Mas com o tempo, à medida que minha mente mergulhava para dentro de mim, comecei a ouvir algo diferente. Um zumbido abafado. Pulsante. Como se pequenos rios de energia fluíssem por dentro do meu corpo.

    Mana.

    Ela escorria pelas veias lentamente, como se estivesse testando cada passagem, sondando cada conexão. Às vezes, encontrava bloqueios — lugares onde queimava e forçava a passagem como ácido dissolvendo ferrugem. Era doloroso. Mas também revelador.

    Eu vi o mapa do meu próprio ser. Não com os olhos, mas com a alma.

    E ali, no escuro, entendi: a purificação não era apenas física. Era espiritual. Era preciso abrir espaço, expulsar medos, dúvidas, fraquezas que obstruíam a fluidez da mana. A morte não aceitava canais fracos. A mana de Pers exigia perfeição.

    Oliver permaneceu em silêncio durante todo o processo. Pers apenas se levantou uma vez, passou a mão pelos meus cabelos, e sussurrou:

    — Deixe queimar. É assim que você nasce de novo.

    Continuei sentado, imóvel como pedra, por horas. O sol moveu-se no céu. As sombras mudaram. A dor tornou-se companheira. A mente oscilava entre lucidez e devaneio, mas eu não parei.

    Não subi de grau. Ainda não.

    Mas algo havia se expandido. Um pouco mais de espaço. Um pouco mais de luz na escuridão. Uma centelha mais próxima do que eu deveria ser.

    Oliver se aproximou ao final do dia, estalando os dedos e desfazendo o círculo mágico ao meu redor.

    — Muito bem, garoto. Hoje você ouviu. Amanhã, vai comandar.

    Pers sorriu. E naquela noite, adormeci entre os girassóis, com a sensação de que o silêncio também podia ser uma arma.

    Nos dias que se seguiram, mergulhei num ritmo silencioso, ritualístico, quase cruel. Todas as manhãs eu acordava cedo, antes mesmo da luz tocar os vitrais da torre mágica, e sentava no mesmo lugar, com as pernas cruzadas, as mãos repousadas sobre os joelhos e a respiração controlada como Oliver mandara.

    No início, a rotina parecia um castigo. Horas inteiras em silêncio absoluto, sentindo apenas o fluxo lento da mana tentando rasgar caminho pelas minhas veias, como se cada centímetro dela precisasse ser esculpido com ferro em brasa. E mesmo assim, por dias… nada aconteceu.

    Nenhum grau novo. Nenhum clarão. Nenhuma iluminação mística.

    A mana simplesmente fluía e travava. Fluía e travava. Como um rio tentando cortar uma muralha com as próprias ondas. Eu sentia a frustração me consumir, mas não ousava abrir os olhos. Era como se tudo aquilo fosse um teste de alguma força além da minha compreensão.

    E então, certo dia, a dor veio.

    Primeiro como uma pontada discreta no peito, depois como uma chama se alastrando pelas costas, ombros, pescoço, cabeça. Era como se alguém estivesse forçando uma faca invisível por dentro das minhas veias, tentando esculpi-las, expandi-las, quebrá-las para depois refazê-las.

    Meu corpo tremia. Suor frio escorria pela nuca. Cada respiração era um arranhão. Os dedos se enrijeciam como garras, e os músculos se retesavam ao ponto da ruptura.

    Oliver se aproximou calmamente, com o cachimbo aceso e a fumaça roxa dançando como serpentes preguiçosas.

    — Chegou o momento… — disse, sem um pingo de pena na voz. — A dor que sente é o sinal de que o seu corpo decidiu se tornar digno. A partir de agora, não pode mais parar.

    Abri os olhos com dificuldade, arfando como se tivesse corrido por dias.

    — O quê…?

    — Se parar agora — ele continuou, soprando a fumaça que formava símbolos antigos no ar — seus canais vão se fechar de novo. A purificação vai se reverter. Você perderá tudo o que ganhou. Então ou você purifica até alcançar o quinto grau… ou você se quebra tentando.

    Pers assistia em silêncio, braços cruzados, um brilho estranho nos olhos. Ela estava séria, muito mais do que de costume. Quando nossa troca de olhares se cruzou, ela assentiu uma única vez, como se dissesse: é necessário.

    Não reclamei. Não chorei. As pernas doíam, o corpo gritava. A alma… vacilava.

    Mas a decisão estava feita.

    Se essa dor era o preço para ser o que eu precisava ser, então que ela me quebrasse cem vezes.

    Mas que, ao final, me reconstruísse como um apóstolo digno da Deusa da morte.

    As pernas tremiam, os músculos ardiam, e o suor que escorria pelo meu rosto misturava-se à poeira antiga do chão da torre mágica. A dor não dava trégua, como se cada respiração puxasse brasas para dentro do meu peito. Mas agora ela não era apenas um obstáculo físico. Ela era… presença. Constante. Soberana.

    Enquanto o mundo lá fora seguia seu curso, os girassóis se abrindo, os esqueletos cuidando de suas tarefas, a eternidade desabrochando com a calma dos mortos, eu estava ali, travado numa prisão de carne e sofrimento.

    E me peguei pensando no que significava, afinal, sofrer.

    Schopenhauer dizia que a vida oscilava entre a dor e o tédio. Que sofrer era o estado natural do ser. Na época em que li isso pela primeira vez, num intervalo de silêncio entre duas sirenes de ataques inimigos, achei que ele fosse um homem derrotado, um covarde que se rendeu ao peso da própria mente. Hoje, porém… eu o entendia melhor.

    O sofrimento é o único professor que nunca esquece seu aluno.

    Na Terra, eu aprendi isso do jeito mais cruel possível. No final, quando o mundo começou a ruir sob os pés dos que vestiam fardas como armaduras de barro, eu era apenas mais um soldado com uma arma nas mãos e nenhuma alma no peito. Vi minha irmã morrer na explosão que devastou o campo de refugiados. Não tive oportunidade de dizer adeus aos meus pais. E ainda assim, continuei andando. Continuei vivendo.

    Porque não havia escolha.

    Foi ali que compreendi que a dor não nos destrói — ela nos transforma. A questão é no quê.

    Na Terra, ela me transformou em um fantasma. Um corpo que respirava por obrigação e comia para não desmaiar. Eu era mais máquina do que homem.

    Mas aqui… aqui em Chaia, ela fazia mais do que me moer por dentro. Ela me refinava. Como o fogo que molda o ferro. Como a pressão que forma diamantes no âmago da terra.

    Dor era o nome da minha forja.

    A cada dia, a cada segundo de meditação, a cada instante em que o meu corpo gritava e minhas veias de mana se retorciam como serpentes negras, eu renascia. De novo. E de novo.

    Não por escolha. Mas por necessidade.

    Aristóteles dizia que a dor, se bem usada, gera virtude. E talvez, só talvez, fosse isso o que estava acontecendo comigo. Talvez este fosse o processo que todo apóstolo verdadeiro precisa enfrentar: deixar de ser um homem… para se tornar instrumento.

    Eu não era mais o soldado da Terra. Eu não era mais o corpo morto encontrado por Pers.

    Eu era… algo no meio.

    E entre o grito e o silêncio, entre a lembrança do sangue da minha irmã e o toque suave da Deusa que agora dormia ao meu lado, encontrei uma pergunta que ardia mais que a dor:

    Até onde estou disposto a ir… para nunca mais perder ninguém?

    A resposta não veio com palavras.

    Veio com o chiado profundo da minha respiração.

    Veio com o calor da mana escorrendo como lava pelas minhas veias.

    Veio com o silêncio de Pers, que não me interrompia, mas que em seu olhar dizia: Eu estou aqui.

    E então, respirei fundo.

    E continuei.

    A luz que vinha de lugar nenhum oscilava suavemente, como se respirasse comigo ou por mim. Meus olhos estavam fechados, mas dentro de mim havia uma guerra em curso.

    Dor. Um conceito que eu julgava conhecer melhor do que a maioria. A cada dia de meditação, a cada tentativa frustrada de purificação das veias, a dor voltava, mas de um jeito diferente. Não era a lâmina rasgando a carne ou o impacto de uma explosão. Era mais íntima. Uma dor que não se gritava, se engolia.

    Sofrer é existir em alta resolução”, eu me lembrava de ter lido. Talvez fosse Kierkegaard. Talvez fosse só coisa da minha cabeça cansada de morte. Mas fazia sentido. Porque enquanto a dor física me mantinha no presente, a dor real, a que gritava no silêncio das veias se contorcendo sob a carne, era a dor de quem se lembrava.

    Me lembrei de minha irmã, pequena demais para entender o que era guerra. Ela morreu porque eu caí em uma emboscada. A culpa nunca saiu de mim. Me lembrei do meu pai, um soldado rígido, um homem de poucos sorrisos que me ensinou a montar um rifle antes mesmo de aprender a ler. Ele morreu defendendo uma base que caiu em questão de horas. E minha mãe… Médica de guerra. A única que ainda me dizia “vai ficar tudo bem” mesmo com os olhos cheios de sangue. Morreu num bombardeio. Não sobrou nem o corpo.

    Eu carregava cada uma dessas memórias como runas queimadas em minha alma. Era por isso que agora, quando a dor subia pelas minhas veias, queimando por dentro como ácido, eu não gritava. Porque já havia gritado demais. Porque aquela dor… era familiar.

    Talvez fosse isso que Pers via em mim. Não apenas um corpo forte ou uma mente ágil, mas alguém que já havia morrido em vida. Alguém pronto para viver de novo com propósito.

    — Sofrer é aprender — murmurou Oliver, sem sequer me olhar, mas como se tivesse lido minha mente. — É bom que a dor esteja te ensinando, garoto. Porque o que vem depois disso… não é mais humano.

    Abri os olhos. As bordas da minha visão tremiam, como se o mundo à minha volta estivesse em chamas silenciosas. Eu ainda não tinha alcançado o quinto grau. Mas estava perto. Tão perto que podia sentir o limiar daquilo que me transformaria não apenas em mago sobre humano, mas em algo novo.

    E, no entanto… mais um dia se encerrava. Mais uma noite cairia nos campos de girassóis silenciosos.

    E o quinto grau ainda me escapava.

    Passei dias ali.

    Não dias quaisquer, mas dias que pareciam arrancados do tempo e mergulhados em agonia. Cada minuto era uma navalha percorrendo minhas veias. A purificação não era gentil, não era gloriosa como as lendas de magos iluminados que tocavam o cosmos com dedos suaves. Era brutal. Crua. Solitária. Uma luta interna onde meu corpo queimava por dentro e minha alma se estilhaçava pouco a pouco.

    Eu perdia noção do tempo. Às vezes pensava que a torre mágica havia se tornado meu túmulo. Outras, acreditava que ainda estava morto desde minha primeira morte. O chão sob minhas pernas cruzadas parecia vibrar em algum idioma oculto e cruel, e as dores, as malditas dores, eram como martelos tentando quebrar o que restava de mim.

    Comecei a falar sozinho.

    No começo, frases desconexas. Depois, nomes. Os nomes dos que perdi. Minha irmã. Meu pai. Minha mãe. Sussurros que se arrastavam pela garganta seca como vidro.

    “Não sou eu”, pensei. “Isso não sou eu”, mas era. E era esse o problema.

    Na penumbra da minha mente, comecei a ouvir vozes. Risos que não existiam. Vi vultos no canto dos olhos fechados. Vi meu pai me chamando de fraco. Minha mãe me dizendo para parar. Minha irmã… pedindo ajuda.

    Eu estava quebrando.

    E teria quebrado. Teria me perdido ali, no meio de um torvelinho de lembranças falsas e dores reais, se não fosse por ela.

    As mãos dela tocaram meu rosto, frias como o luar, mas cheias de ternura. A mana que dela emanava era um bálsamo silencioso, não para o corpo, mas para a mente. Uma presença que costurava os pedaços fragmentados do meu eu.

    — Volta pra mim… — ela sussurrou. — Volta, Hades…

    Meus olhos se abriram como se emergissem de um mar profundo. Vi Pers ali, ajoelhada à minha frente, cabelos brancos caindo pelos ombros, o vestido negro ondulando suavemente apesar de não haver vento.

    — Você quase se perdeu. — disse ela, seus olhos vermelhos marejados com uma dor contida.

    — Eu… quase não voltei. — minha voz era um eco rouco, quase irreconhecível.

    Ela assentiu, colocando uma mão em meu peito.

    — Mas eu estava aqui. Sempre estarei. — E num tom mais leve, quase provocativo, como se tentasse me arrancar de volta da beira do abismo, completou: — Eu que decido se você morre. E ainda não te dei permissão.

    Sorri, fraco, mas verdadeiro.

    A partir daquele dia, Pers ficava mais próxima durante minhas meditações. Não interferia. Apenas vigiava, silenciosa, como um santuário vivo. Sua simples presença me impedia de afundar novamente. E, com isso, continuei.

    Continuei a purificação.

    Dor. Silêncio. Suor que cheirava a sangue.

    A mente reconstruída, agora mais forte. Mais firme.

    Mas mesmo com tudo isso… mesmo com os gritos silenciosos das minhas veias… mesmo com cada fragmento meu lutando para ascender…

    O quinto grau ainda escapava de mim.

    Como uma estrela escondida por trás das nuvens, sua luz tocava minha pele mas não minha alma. E eu sabia, ele viria. Mas não sem custo.

    Dias se passaram, e a dor já não era mais uma visita inesperada. Era companheira. Silenciosa, cruel e constante. A cada segundo, ela voltava, como se dissesse: “Você ainda não está pronto.” Mas então, numa noite onde o silêncio parecia pesar mais que o corpo, um pensamento se enraizou fundo em minha mente.

    E se… eu aceitasse a dor?

    Não como algo a ser vencido. Não como inimiga a ser resistida. Mas como parte de mim.

    Pensei em Oliver. Um mago genial, sim. Mas ainda assim… um mortal. Um homem que venceu a dor com técnica, com paciência, com estudo.

    Mas eu era um apóstolo da morte.

    E se, ao invés de resistir à dor como um mago comum… eu me tornasse um com ela?

    E se, ao invés de purificar minhas veias à força, eu deixasse que a própria morte as abraçasse?

    Pensei em todas as mortes que já vi.

    A da minha irmã, despedaçada sob os escombros de nossa casa, a de minha mãe, sob os escombros de um hospital bombardeado, a de meu pai, deixado para trás numa base que caiu silenciosa.

    Lembrei-me daquelas que causei. Do sangue em minhas mãos. Das ordens que obedeci. Das vidas que apaguei, sem nunca olhar para trás.

    E percebi…

    A dor está em todas as coisas, no nascimento, na saudade, na perda, no amor, ela não é castigo. É parte do ciclo.

    E se a morte é o fim inevitável de tudo que vive, então a dor é o fio que costura toda existência.

    Eu não precisava resistir, eu precisava mergulhar.

    E então eu mergulhei.

    Senti a dor de cada ser que já viveu, o lamento da mãe que perde um filho, o vazio do guerreiro que enterra seus irmãos, a agonia do último suspiro e o silêncio que vem depois.

    Aceitei tudo, abracei a morte, aceitei seu toque gelado, seu beijo final, seu chamado eterno.

    E então, no fundo do abismo, algo rompeu dentro de mim.

    Como se correntes antigas tivessem se partido. Como se uma represa tivesse cedido e a mana escura da morte, finalmente, fluísse livremente.

    Meus olhos se abriram. O mundo parecia imóvel, o campo ao meu redor não tinha som, nem vento e, mesmo assim, eu sentia tudo.

    A pulsação da vida e da morte em cada folha, a quietude vibrante que só um apóstolo da morte poderia entender.

    Foi então que ouvi a voz de Pers. Não com os ouvidos, com a alma.

    — Você fez aquilo que eu jamais consegui. Você se tornou um com a dor. Agora você me entende de verdade.

    Olhei para as minhas mãos, mana negra, pura e serena, escorria pelos dedos como névoa viva, meus canais de mana estavam… limpos, não, não apenas limpos. Consagrados.

    Grau cinco.

    Um nível que só os maiores da história alcançaram, mas eu não cheguei ali como um homem, cheguei como o apóstolo da morte.

    E ao longe, Oliver apareceu na torre com os olhos arregalados, quase deixando o cachimbo cair da boca.

    — Pela barba das sete… — sussurrou. — Ele… conseguiu.

    — Pela BARBA das Sete… — repetiu Pers, franzindo o cenho, olhando para Oliver como se ele tivesse acabado de recitar um encantamento profano.

    Ela cruzou os braços, ainda deitada no chão da torre, o sol poente iluminando os fios prateados do seu cabelo. Seus olhos vermelhos brilharam com uma mistura de incredulidade e sarcasmo.

    — Sério mesmo, Oliver? “Pela barba das Sete”?

    — Isso foi o que mais te impactou? — ele respondeu com a maior naturalidade, girando o cachimbo entre os dedos. — Você viu o que o garoto fez? Ele purificou as veias de mana até o quinto grau como se fosse só mais uma terça-feira com chá de crisântemo!

    — Eu vi, sim — Pers respondeu com um sorrisinho contido, abaixando os olhos até mim. — Eu senti. Mas ainda acho que essa sua frase devia ser punida com dois séculos de silêncio.

    — Protesto indeferido, meritíssima. — Oliver soprou uma espiral de fumaça púrpura que desenhou um pentagrama no ar antes de desaparecer. — Agora, vamos ao que interessa!

    Ele bateu a bengala contra o chão da torre mágica. O ambiente brilhou, e os girassóis lá fora sumiram como névoa diante da aurora. Estávamos de volta à sala circular com runas brilhando no teto e paredes pulsando com mana viva.

    — Hades! — disse Oliver, os olhos faiscando como se tivesse descoberto um novo feitiço proibido. — Está na hora do próximo passo.

    Assenti, ainda sentindo a quietude poderosa que havia me preenchido na meditação. Eu estava exausto, mas algo em mim queimava. Como uma chama escura, silenciosa, mas faminta.

    — Você já aprendeu a purificar parado, focando só nas veias. Agora, vamos elevar isso para um novo patamar. — Oliver começou a andar em círculos ao meu redor. — Purificação em movimento. O corpo se move, a mana flui, o foco precisa se manter. É como… dançar com uma espada atravessada no peito. Entendeu?

    — Não. — respondi com sinceridade.

    — Ótimo! — gritou ele, empolgado. — Porque se tivesse entendido, estaria errado. Agora levante-se. E corra.

    — Correr?

    — E purifique. Ao mesmo tempo. — Ah, e se parar de purificar por um segundo sequer… você vai sentir como se um exército de vermes etéreos tivesse decidido morar dentro das suas veias. Não é doloroso. É indescritivelmente pior. Vamos, garoto!

    Pers se aproximou, flutuando levemente como sempre fazia quando queria parecer desinteressada, mas estava atenta a cada respiração minha.

    — Ele vai gritar na metade — murmurou ela baixinho, com um sorriso de canto.

    — Ele sempre grita. Mas sempre sobrevive. — respondeu Oliver, sem virar o rosto, como se também ouvisse tudo.

    Respirei fundo, me levantei, dei o primeiro passo e comecei a correr.

    Mana fluindo. Pulmões queimando. Coração martelando. Dor? Sim. Desistir? Jamais.

    Depois da décima volta, meus pés já não tocavam o chão, eles tropeçavam sobre ele, como se cada passo fosse o último que minha carne conseguiria suportar. A dor queimava como ferro quente em minhas veias. A purificação em movimento era uma tortura que nem mesmo os meus piores pesadelos poderiam prever.

    Senti os joelhos falharem. A torre girou, as runas no teto pareciam dançar uma valsa zombeteira, e então… Caí.

    A respiração veio em arfadas. Meus pulmões pareciam dois animais em guerra dentro do peito, Oliver aproximou-se com sua bengala ritmando o chão. Ele não falou nada a princípio. Apenas tirou uma pequena bolsinha de couro do manto e a estendeu para Pers.

    Ela pegou com um sorriso de satisfação contida.

    — Ei… — murmurei, ainda deitado. — O que foi isso?

    Oliver suspirou teatralmente.

    — Uma aposta. Eu disse que você cairia na sexta volta. Ela disse que aguentaria até a décima. — Ele olhou para mim com aquele ar de quem estava mais animado do que deveria. — E eu perdi. Como sempre.

    Pers sentou-se ao meu lado, balançando a bolsinha na mão como quem não fazia a menor questão do que havia dentro. Seu olhar era um misto de triunfo e ternura.

    — E eu aqui achando que você esperava mais de mim… — provoquei, tentando sorrir apesar da dor nos músculos.

    — Esperar mais de você? — ela riu, e sua voz soou como um sino feito de luar. — Eu aposto com o Oliver só pra ganhar dele. Ele é péssimo com previsões.
    Ela se inclinou, me olhando com aquele brilho malicioso nos olhos. — É a única chance que eu tenho de fazer dinheiro fácil… mesmo que eu não precise.

    — Ei! — protestou Oliver, apontando com o cachimbo como se ele fosse uma arma de honra ferida. — Não é culpa minha se o garoto está sempre se superando de formas absurdas!

    — Então pare de apostar contra ele — disse Pers com uma piscadela para mim.

    — Jamais! — Oliver respondeu com orgulho. — A esperança de estar certo um dia é o que me mantém jovem… ou o que sobrou de mim.

    Rimos. Mesmo que fraco, mesmo que com as costelas doendo, eu ri.

    E naquele riso ali, suado, deitado no chão da torre mágica, entre uma Deusa zombeteira e um mago velho de sobrancelhas arqueadas, eu senti algo verdadeiro:
    Progresso.

    E talvez, só talvez… um pouco de felicidade também.

    Os dias foram passando como sombras que se arrastam no chão de pedra da torre mágica. As manhãs tinham gosto de suor e as noites, cheiro de mana queimada. Meu corpo já sabia o que era dor, meu coração já havia compreendido o que era perda. Mas agora… Oliver queria que eu entendesse algo ainda mais profundo: domínio.

    Na vigésima volta, quando caí de joelhos sem desmaiar, sem vomitar sangue, apenas ofegando como uma besta exausta que não quer mais fugir, ele assentiu com um brilho raro de aprovação nos olhos.

    — Parabéns, garoto. — disse ele, girando o cachimbo nos dedos. — Vinte voltas sem quebrar. Agora vem a parte divertida… e letal.

    Olhei pra ele sem entender.

    — Você vai lutar — disse com naturalidade assustadora — enquanto continua a purificar suas veias de mana.

    — Como é que é? — murmurei.

    Antes que qualquer resposta viesse, o ar se distorceu, e do lado de fora da torre, o céu se tingiu de um tom acinzentado. Pers se adiantou, tirando as luvas lentamente com um sorriso no rosto. Um sorriso que já dizia tudo.

    — Eu vou te ajudar com isso. — disse com uma doçura que mais parecia ironia. Ela ergueu as mãos. — Horda dos Caídos.

    O chão estremeceu. E então, surgiram.

    Dezenas… não. Centenas. Esqueletos armados até os dentes, alguns com lanças longas, outros com espadas quebradas, escudos corroídos, e até alguns com armaduras completas de eras passadas. Um deles carregava uma corneta e, para meu espanto, a soprou, como se anunciando minha sentença.

    — Isso é sério? — perguntei, ainda arfando.

    — É claro que é sério! — exclamou Oliver com uma risada. — A magia verdadeira não serve apenas para iluminar corredores ou esquentar água pra chá. Um apóstolo deve purificar enquanto age, sente, sobrevive. Um mago comum pode purificar parado. Você, Hades, tem que fazê-lo enquanto desafia a morte. Literalmente.

    — Isso é loucura. — sussurrei.

    — Isso é Chaia. — respondeu Pers, e com um gesto simples, os esqueletos avançaram.

    A primeira onda foi fácil. Eu havia enfrentado coisa pior nos treinos. Mas à medida que lutava, cada feitiço conjurado queimava como fogo em minhas veias. Era como se cada passo, cada movimento, arrancasse uma parte do que ainda havia de impureza no meu corpo. Eu podia sentir a purificação forçando caminho pelas fibras dos meus músculos enquanto me movia, desviava, bloqueava.

    A dor voltava. Mas era diferente agora. Ela vinha com propósito.

    — Não pare! — gritava Oliver do alto da escadaria da torre. — Mantenha o fluxo, circule a mana enquanto respira, enquanto pensa, enquanto corta!

    Eu obedecia. Eu continuava. Mesmo quando os braços tremiam. Mesmo quando o chão sob meus pés se enchia de ossos despedaçados. Pers continuava invocando. A cada novo inimigo derrotado, dois mais surgiam. Era como se eu estivesse lutando contra o próprio infinito.

    E no fundo… era exatamente isso.

    Purificar em movimento era aceitar que nunca haveria descanso. Era viver em meio à morte e ainda assim permanecer de pé. E enquanto eu girava a adaga, arremessava feitiços, canalizava trovões escuros que contornavam minha pele como serpentes negras, sentia que pouco a pouco, a morte não era mais uma inimiga.

    Ela era minha companheira de treino.

    E ela tinha um sorriso encantador e olhos cor de sangue e rubi.

    A purificação não era mais um processo. Era uma batalha. E eu… estava começando a vencê-la.

    Os dias iam passando.

    O som de ossos se partindo, os gritos vazios dos esqueletos invocados por Pers e o estalar constante da mana escura vibrando pelos meus dedos tornaram-se tão naturais quanto respirar. Meus pés já sabiam o trajeto da arena improvisada, meus olhos liam os movimentos dos inimigos como se fossem palavras, e minha mente — entre o cansaço e a determinação — já não via diferença entre lutar e existir. Era como se cada batalha fosse apenas mais uma batida do meu próprio coração.

    Eu estava ficando realmente bom nisso.

    E foi aí que começou a frustração.

    Não por medo. Não por dor. Mas por estagnação. Eu sentia que estava no limite, no topo da montanha e, ainda assim, o sexto grau não vinha. A purificação parecia ter encontrado uma parede invisível dentro de mim, e por mais que empurrasse, ela não cedia. Eu me olhava no espelho de mana e via um guerreiro mais forte, mais rápido, mais preciso. Mas por dentro… ainda era o mesmo nível.

    Durante uma pausa entre os treinos, enquanto limpava o sangue seco da testa e ofegava sentado no chão de pedra da torre, virei-me para Oliver.

    — Por que não acontece? — perguntei, sentindo a raiva trêmula nos dedos. — Eu continuo lutando. Continuo treinando. Morrendo. E ainda assim… nada. O quinto grau é um teto que não quebra.

    Oliver, que moldava uma escultura com uma mão e mantinha o cachimbo equilibrado na outra, nem me olhou.

    — Frustrante, não é?

    — Isso é tortura.

    — Hades, o sexto grau… — disse, finalmente me encarando com os olhos cansados, mas cheios de fogo — … é um milagre. Poucos magos humanos o alcançam antes dos oitenta anos. Alguns nunca chegam lá. E você está… com o quê? Vinte? Trinta? — ele deu de ombros. — Você está correndo contra séculos de tradição mágica. Está quebrando regras que o mundo levou milênios para estabelecer.

    Fiquei em silêncio. E ele continuou, com a voz mais baixa:

    — Está indo bem. Muito bem. Mas até mesmo a morte tem seu ritmo.

    Pers, que observava do parapeito superior da torre com uma perna balançando no ar e o rosto apoiado nas mãos, completou com um sorriso doce:

    — A beleza do poder está no tempo. O que vem fácil, some fácil. Mas o que você está forjando… é eterno.

    Suspirei fundo. Aquela resposta não diminuía a frustração, mas colocava algo quente no peito: esperança. Se até mesmo Perséfone, a Deusa da Morte, dizia que o que eu estava criando era eterno… então eu só precisava continuar.

    Seguir. Lutar. E esperar. Porque até mesmo os Deuses sangram… mas antes disso, eles esperam séculos para nascer.

    Oliver deu uma tragada longa em seu cachimbo, a fumaça púrpura subindo em espirais que lembravam serpentes mágicas tentando escapar da gravidade. Seus olhos se estreitaram levemente, não por cansaço, mas por concentração. Como se meditasse sobre algo que só ele pudesse compreender.

    — Estagnação, meu caro Hades — disse por fim, com a voz arrastada de quem saboreava a própria sabedoria — é o último truque do mundo para fazer grandes magos fracassarem antes da ascensão. A maioria morre aqui. Não por falta de talento… mas por rotina.

    Ele se levantou, o peso do manto esvoaçando atrás dele como uma cortina prestes a revelar um novo ato teatral.

    — Quando o caminho fica reto demais, até a alma se recusa a andar. Então… vamos dobrar a estrada.

    Apontou para mim com sua bengala de prata adornada com pedras lilases que pulsavam com mana condensada.

    — Hoje, meu jovem mártir em formação, vou ensinar alguns feitiços de quinto círculo. Feitiços que poucos ousaram tocar antes de ti. — Ele sorriu como um ator antes da cena principal. — E cada um deles exigirá mais que força: exigirá imaginação.

    A fumaça do cachimbo ondulou pelo ar como um pincel mágico, desenhando runas e círculos flutuantes diante de mim. Oliver estalou os dedos e o primeiro feitiço se revelou.

    Umbrae Caligo — anunciou com pompa. — Um dos feitiços favoritos da linhagem de necromantes do Norte. Invoca uma névoa de sombras tão espessa que cega até a mana alheia. Não é apenas escuridão… é ausência de realidade.

    A névoa tomou a sala por um instante, engolindo tudo como um sonho sem corpo. Pisquei, e ela desapareceu.

    — O segundo… — disse ele, puxando uma ampulheta invertida do bolso — …Tempus Fractum. Dobra o tempo ao seu redor por breves instantes. Tudo desacelera. Tudo exceto você.

    Arqueei uma sobrancelha. — Isso não soa muito… legal.

    — Não é. — Oliver sorriu com os dentes. — Mas por sorte você está morto. E quando os mortos quebram as regras, ninguém liga.

    Pers, do alto, balançava a cabeça com um sorriso contido. — Ele adora bancar o rebelde necromante. Mas admita, Hades… é divertido.

    — E por fim — disse Oliver, com o tom de alguém que guardava o melhor para o fim — Ignis Mortem. O fogo da morte. Uma chama negra que não queima carne, mas consome vitalidade, tempo e memórias. Foi usada por reis traidores para apagar legados inteiros… e por mártires para selar pactos com os próprios ossos.

    Engoli seco. Os feitiços pareciam perigosos. Proibidos. E incrivelmente certos.

    Oliver largou o cachimbo no ar — que flutuou sozinho — e me encarou com uma expressão mais séria do que o habitual.

    — Nada disso te fará alcançar o sexto grau amanhã. Mas vai mover tua alma. Vai despedaçar tua rotina. E quando a alma se move, meu caro, as veias obedecem.

    Estendi a mão, pronto para aprender. E naquele momento, enquanto as runas se acendiam ao meu redor, soube que a estagnação era apenas o prólogo de algo muito maior.

    Era hora de reacender o caos.

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