Seco”, foi a única coisa que Elian conseguiu pensar.

    Um pão seco e duro.

    Mesmo assim, alimentava — sendo grato por isso. Ainda mais considerando a situação do vilarejo.

    O clima matinal entrava sutilmente nas frestas do barraco. O ar frio fazia os pelos de seus braços levantarem. As paredes rudemente remendadas da estrutura vez ou outra rangiam, compartilhando de seu incômodo.

    Croco, enrolado em uma pilha de panos velhos, parecia não se importar — acostumado. O jovem de cabelos desgrenhados, tampouco.

    Os Pães? Croco havia engolido assim que abocanhou, o garoto não tinha ficado para trás, deglutindo com igual facilidade.

    Elian ficou impressionado. Mesmo machucado, não imaginaria competir com nenhum dos dois quando se tratava de comida.

    Ele ainda estava na metade.

    Desde a última troca de palavras, não se falaram. Não parecia necessário para nenhum dos dois. Havia espaço apenas para o desjejum.

    Croco olhava-o com o rabo abanando. Não por interesse nele, mas no que segurava.

    Logo, um pão cruzou o ar como um projétil — e desapareceu na boca do cão, que nem sequer mastigou.

    — Vai deixar Croco mal acostumado. — disse o jovem do outro lado do cômodo. — Um pão por dia é suficiente.

    Assim que terminou de comer, foi até a entrada. Estava sentado, amolando uma faca.

    O barulho do metal passando na pedra atrapalhava a melodia dos pássaros que estavam do lado de fora.

    E então, parou. 

    Os raios de sol entravam pela cortina que improvisava uma porta, iluminando suas feições.

    Seus olhos, duros, perderam a inocência de um simples garoto, contrastando com o rosto juvenil. A luz revelava a cor: âmbar. Lhe davam uma aparência sábia além da idade.

    — O que foi? — Enquanto falava, deixava a faca e a pedra no chão.

    Elian não respondeu.

    Coçou os cabelos, desconcertado.

    — Olha… não é como se eu não quisesse dar mais pão pra ele ou algo assim. Só que o alimento de cada dia é difícil de conseguir.

    — Não é isso. — Elian rapidamente negou. — É apenas eu que não consigo entender.

    Silêncio.

    — Por que me ajudou? — Continuou.

    Confusão estampava o rosto dele.

    Para ele as pessoas eram esquisitas. Sua avó sempre o alertava sobre elas.

    Ele confiava nela. O acontecimento de ontem reforçou isso ainda mais.

    Então mesmo que se esforçasse para entender, não conseguia. Seria apenas mais fácil ignorar alguém na situação em que ele se encontrava naquele beco. Por que se dar ao trabalho?

    A atitude que o seu salvador lhe mostrou ia contra as regras não escritas daquele lugar.

    Um momento se passou.

    Elian ainda olhava para ele.

    — Eu não sei, tá legal? Mesmo eu não entendo. — A brisa suave que entrava batia nos cabelos da figura. — Talvez não era seu momento de morrer.

    O ar passava, refrescando o arredor.

    — Eu só não consegui te deixar jogado lá. — Continuou. — De repente no meio da noite Croco saiu correndo. Achei estranho a atitude dele e corri atrás. Depois só te vi lá, abandonado.

    Croco reagiu ao seu nome. Latindo.

    — Se você tem algo a dizer, diga pra ele. — em seguida apontando para o cão. — Sua vida foi salva por causa dele.

    Elian começou a ver o cão com outros olhos.

    “Então foi você também?”

    — Obrigado, Croco. — disse, depois de um momento.

    Mais um latido.

    — Meu nome é Elian. — Voltando sua atenção ao jovem, continuou. — Qual é o seu?

    Os olhos de ambos os rapazes se encontraram.

    — Kael. — respondeu, como se lembrasse de algo distante. — Apenas Kael.

    Após isso, o silêncio voltou ao lugar.

    Elian não queria se aproveitar da boa vontade de seu anfitrião.

    “Preciso ir”

    Apesar de machucado, estava preocupado. Ele precisava voltar para casa. Não a de outra pessoa, mas a sua própria.

    Ele tinha alguém pra quem voltar.

    Colocou-se sentado de lado, os pés já no chão — o corpo protestava. Não se importou, continuando.

    Com muita dificuldade eventualmente se pôs de pé. Suas pernas tremiam pelo esforço. Sentia- se muito fraco. Não imaginou que seu estado seria tão ruim.

    Mas estava vivo e podia ficar de pé, o que lhe aliviava. 

    “Vó Alzira deve estar muito preocupada. Já fiquei aqui por tempo demais”, pensar nisso, de alguma forma, lhe dava força.

    Do outro lado do barraco, Kael estava impressionado.

    Ele não era nenhum curandeiro. No máximo sabia de algumas coisas que aprendeu por conta própria por causa da necessidade, mas mesmo ele sabia que os ferimentos do jovem não eram simples.

    Ontem ele achou o garoto quase à beira da morte. Muito machucado. Sua consciência oscilando entre se manter acordado ou apagar de vez — talvez pra sempre.

    Ele pensou que iria acordar e ver um corpo.

    No entanto, ali estava Elian: não apenas acordado e lúcido, mas em pé.

    Estava atordoado — embora sua expressão não transparecesse. “Que tipo de monstro é esse?”

    Croco não era tão sutil quanto seu dono.

    Se sacudiu de um lado ao outro, tirando a poeira dos pelos. Logo se dirigiu em frente aos dois, parando em frente a Elian. Cheirava-o e o lambia.

    Elian não esperava isso, mas aceitou o gesto amigável do animal. Retribuiu com um pouco de afago na cabeça do cão, que em resposta balançou a cauda.

    Um latido. 

    — Parece que ele gostou de você. — Comentou Kael. — Difícil ele gostar de alguém — continuou.

    Elian apenas assentiu.

    — Acho que sim. — Respondeu, continuando a fazer carinho em Croco. — Ou talvez só esteja com pena.

    Ele não sabia o que pensar a respeito de animais. Nunca foi apegado ou teve aversão a eles. Mas o Croco era diferente: salvou sua vida. 

    Kael parecia aprovar a situação.

    Elian então parou e, com dificuldade, começou a caminhar.

    — Vai cair. — Kael, ainda sentado, disse.

    Croco parecia concordar, andando ao redor do jovem debilitado com olhos atentos.

    — Preciso ir. Já sumi por tempo demais.

    Ainda cambaleando ele tentava, por conta própria, andar.

    Croco continuava a olhar aquela situação, como se entendesse a dificuldade do jovem e sua dor.

    Latiu então, mas dessa vez, olhava para Kael. Olhos suplicantes.

    Os dois se olhavam. Uma conversa silenciosa que apenas eles conseguiam compreender.

    Um suspiro.

    — Ok, Croco. — Kael disse, se levantando. — Você venceu.

    O cão correu em direção a Kael, o lambendo. Parecia feliz.

    Embora gostasse do que estava vendo, Elian não entendeu. Kael pareceu notar isso.

    — Vou te ajudar. — Ele explicou.

    — Quê?

    — Eu disse que vou te ajudar. Vamos.

    Elian estava confuso.

    “Me ajudar? Mais do que já ajudou?”

    — Não precisa. Sério. Já fez o suficiente.

    Ao terminar de dizer isso, no entanto, sentiu suas pernas o traírem e seu apoio vacilar.

    Estava caindo.

    Uma mão ágil o segurou.

    — Eu disse que você ía cair. 

    Kael prontamente chegou em seu auxílio. 

    Foi rápido. Eficiente. Parecendo notar o que ía acontecer antes que de fato acontecesse.

    Elian deixou o orgulho de lado. Não o ajudaria.

    Não era burro. Sabia que sua situação estava ruim, mas ainda achava que conseguiria sozinho. Isso, é claro, foi antes de tentar caminhar – a realidade caíu sobre ele igual um balde de água fria.

    Embora estivesse melhor do que ontem, ainda estava ruim. Seu corpo doía em muitos lugares diferentes. A parte mais afetada parecia ser seu abdômen.

    “Eles realmente precisavam ir tão longe?”

    Kael se adiantou. Ajeitou Elian passando os braços do jovem sobre seus próprios ombros. Dessa forma, ele poderia auxiliar o garoto a andar.

    — Ei, Elian.

    — Oi. — respondeu, como se saísse do transe dos seus pensamentos.

    — O que você faria se fosse forte?

    Essa pergunta o pegou de surpresa. Não estava preparado.

    — Eu não sei. — disse,  com sinceridade.

    — Bom… — Kael fez uma pausa, como se tentasse organizar suas próximas falas. — provavelmente você não teria tomado uma surra daquelas, né?

    Os dois começaram a andar juntos em direção a saída. Croco acompanhava.

    — Talvez. — Respondeu seco. — Qual o sentido de pensar nisso, afinal? Eu não sou forte.

    A claridade da manhã machucava os olhos de Elian.

    Uma variedade de experiências o atingiu. O cheiro da grama molhada, o som da água do córrego próximo a barraca — até o barulho das pessoas distantes do vilarejo. Tudo parecia agradável. Sentir tudo isso de novo a alegrava.

    — Estou perguntando apenas por curiosidade.

    Elian deu de ombros.

    Kael não parecia ter terminado seu raciocínio.

    — Ser forte não é sobre bater, é pra não te baterem primeiro. — Continuou, agora olhando Elian nos olhos. — Não há nada de errado em querer ser forte.

    — Entendi. Obrigado.

    Kael tentava confortar ele. Embora com boa intenção, não era bom nisso — mas Elian apreciava o gesto.

    Não demorou muito para se aproximarem do pequeno vilarejo. O barraco de Kael não era muito afastado do local.

    Um badalar de um sino tocava. A capela central de Brumalva.

    — Parece que a missa acabou. — disse Kael.

    Elian apenas assentiu.

    Não entendia os motivos que levavam as pessoas a frequentar aquele lugar.

    A vida das pessoas não melhoravam, não importa quantas vezes ajoelhassem e orassem. Suas preces não eram ouvidas. Ainda assim, continuavam.

    “Talvez eles apenas precisam de um motivo para continuar vivendo…”

    Ele respeitava isso. 

    — Eu gosto da irmã que ministra as missas daqui. — Kael olhava para a igreja. — Já me ajudou muito. 

    — Eu não imaginava que você era do tipo religioso. — Elian comentou.

    — E não sou. Quer dizer… não tenho certeza. — Kael abaixava o olhar. — É só que… é estranho.

    — Estranho tipo?…

    — Nada. Esquece.

    Passavam por meio dos pedestres e da vida cotidiana deles. Barracas e tendas montadas com seus produtos. Apesar do estado dos dois, em especial Elian com seus hematomas, ninguém parecia notar.

    Era terça-feira. Se importar não dava lucro.

    — Estamos chegando. — Elian disse. — Passou aquela viela quebrando a esquerda é a loja de minha avó.

    — Que bom. — disse Kael.

    — Você vai ficar? Ela vai querer te conhecer. — Elian comentou.

    Kael não respondeu imediatamente. Continuava caminhando auxiliando os passos de Elian. — Eu não sei. Talvez eu só te deixe jogado lá.

    Mesmo com dor, Elian riu.

    — Já seria justo.

    Logo avistaram uma loja. Estava aberta. 

    Apesar de desgastada como as construções do local, aquela loja parecia acolhedora. 

    Não era nada demais. Na verdade emanava simplicidade. Feita de madeira enegrecida — talvez pelo tempo ou pelo calor do forno. Na frente do lugar tinha alguns vasos de plantas.

    O cheiro de pão despertava a fome. Um dos únicos aromas agradáveis de Brumalva.

    Tinha algumas pessoas entrando, outras saíndo.

    — É aqui. 

    Kael estava babando.

    — Kael. 

    Foi preciso que Elian desse um pequeno chute na canela do jovem para tirar ele do transe.

    — O que foi?

    — Eu disse que é aqui.

    Ambos se olharam por um momento.

    — Perai, Elian. — Kael parecia organizar seus pensamentos. — Você ta me dizendo que a sua vó é a dona do ‘Forno do Pão’?

    — Sim, ué. Por quê?

    Então voltaram apenas a se olhar.

    Até Croco, que estava com a cabeça um pouco inclinada, parecia chocado.

    — Cara, você tem sorte duas vezes. 

    Elian não entendeu nada.

    — Vamos, vou te deixar lá. — Kael continuou.

    Adentrando no local, ignorando as pessoas em fila, o interior do lugar os acolheu. Quente. Envolviam-os, dando uma sensação confortante. 

    No balcão improvisado com uma pesada madeira em cima de uns barris estava uma senhora. Feições acolhedoras, cabelo já grisalho. Usava um avental gasto, mas limpo. Mãos juntas, em posição de concha, atendendo os clientes.

    Sorria, mas para os olhos mais atentos, escapava uma tristeza entre aqueles lábios.

    Até ver Elian.

    Logo se apressou, chegando até os dois jovens em pouco tempo, envolvendo Elian em seu abraço.

    O jovem não sabia, mas sentia falta daquela sensação.

    — Onde você estava desde ontem?! — A mulher transmitia ternura ,afastando um pouco seu abraço e olhando-o nos olhos por um instante, apenas para voltar a apertar Elian contra si de novo. — Eu estava muito preocupada!

    Ela nem parecia se importar com os clientes na fila.

    Elian, por outro lado, se importava. Estava vermelho. A situação incomum fazia deles o centro das atenções.

    — Estou bem, vó. 

    Os dois sentiam falta um do outro.

    — Depois que você sumiu eu te procurei por toda parte! Não achei em lugar nenhum. Preciso de explicações! — Alzira disse, agora varrendo o corpo do jovem com os olhos. — E o que são esses machucados?

    Kael via a situação com emoções conflitantes. Sentia-se feliz, mas também invejava Elian.

    “Bom pra você ter alguém ainda”. Um sorriso quase imperceptível nos lábios.

    Embora contente, se sentia estranho. Parecia que algo tinha entalado em sua garganta e, em seu coração, havia um vazio. Não gostava da sensação.

    Logo deu uns passos para trás enquanto se dirigia para a porta. Ele tinha percebido que não tinha espaço para ele naquele momento.

    Mas não se afastou muito antes de parar.

    — Espera ai, Kael! — Elian ainda tentava se desgarrar do abraço preocupado de Alzira quando olhou-o saindo. Não o conhecia muito, mas se sentia em dívida com o jovem.

    — Espera, vó — continuou. — Depois te explico tudo com calma, mas vê aquele menino? — disse, apontando o dedo. — Foi ele quem me ajudou.

    As mãos da senhora enfim afrouxaram o abraço, permitindo que o menino olhasse direto em seus olhos. Transbordavam um misto de sentimentos que ele não conseguia compreender, mas olhar sua avó nesse estado lhe deixava com um gosto amargo na boca.

    Alzira então se levantou, recompondo-se. Um suspiro e um momento breve foi o suficiente para voltar a ser a mulher de negócios de antes. Ela tinha clientes ainda esperando na fila, afinal.

    — Muito bem, pessoal! — Prosseguiu a mulher. — Desculpem essa velha por fazer vocês esperarem, vou atender quem já estava aqui, mas vou fechar em seguida. Espero que entendam — Um sorriso amigável no rosto. 

    Se aproximando de Elian ela ainda continuou.

    — Vá pra dentro. Quero ouvir essa história direitinho, viu? — E então, olhou pra Kael. Ele olhava-a nos olhos igualmente. Suspirando, continuou. — E leva seu amigo também.

    Depois disso, voltou para o balcão.

    Elian então gesticulou para Kael entrar mais ao fundo da loja. O garoto parecia hesitante, mas não demorou para prosseguir. Croco sempre ao lado.

    — Ele pode entrar, Elian? 

    Ainda mancando, parou, e então olhou por cima do ombro e olhava Kael como se ele tivesse feito a pergunta mais idiota que ele tinha ouvido em sua vida.

    — Por que não poderia?.

    Kael não sabia o que achar da situação. Ficou sem reação por um momento. Mas então um sorriso brotou no seu lábio enquanto acompanhava Elian para dentro.

    — Minha barriga ta doendo pra cacete. — Elian continuou. 

    Kael conseguiu um amigo além de Croco.

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