Capítulo 5 — A mão de Deus
O vento sibilava na escuridão da floresta enquanto passos apressados cortavam a noite.
Maldições ecoavam e galhos eram quebrados. Os menos afortunados que não conseguiam manter um ritmo constante na fuga, caíam.
Apenas os gritos eram ouvidos em seguida.
O clima era frio e o terreno irregular cansava o corpo.
— Filho da puta! — Uma figura cuspiu as palavras, virando-se, em desafio. — Venha entã…
“O quê? Por que minha voz não sai? Por que o chão parece tão próximo…?”, e foi a última coisa que pensou em vida.
Um corte limpo. Preciso.
O baque oco da cabeça rolando no chão veio logo em seguida, pintando a mata de carmesim.
— Droga! Não parem, seus desgraçados. Continuem correndo! – Uma voz madura ordenou.
Suor acumulava-se na testa. Boca seca. Mesmo assim, continuavam em fuga — a morte no encalço.
Silhuetas iluminadas pela pouca luz da lua passavam entre as frestas da folhagem densa.
Pulavam de galho em galho, brotavam do chão ou apenas surgiam das sombras.
Riam. Zombavam de suas presas.
— Preparem o ritual. — um dos perseguidores disse, uma voz fria que causava arrepios.
“Quantos são?! Esses desgraçados são da elite”, um homem pensou, mas a situação não lhe dava o luxo de raciocinar.
— Não, não, não! — Outro do grupo gritou, em desespero. — Me larga, me larga, porra!
Foi arrastado para dentro da escuridão antes de suas súplicas desaparecerem.
— Inferno, levaram o Keth!
— Vamo morrer! Não deveríamos ter aceitado essa missão! — Um jovem gritou, a voz trêmula. Corria desengonçadamente.
— Cala boca, caralho! Continua correndo!
— Não consig…
Um projétil. Rápido. Silenciou-o para sempre.
Sangue foi espirrado, pintando-lhe a face. Amaldiçoou sua má sorte por estar tão próximo ao companheiro caído quando tropeçou em algo antes de cair, e nunca mais levantar.
Darian, um homem ruivo, líder do grupo, apenas viu cada um de seus subordinados tombando, um a um.
Tudo havia sido uma bagunça completa. Estavam acampando. Uns dormiam, outros estavam de guarda. O mesmo de sempre.
A emboscada ocorreu logo em seguida. Não fosse pela perspicácia dele, todos teriam morrido sem perceber.
A perseguição continuou com os homens entrando cada vez mais fundo na floresta.
O restante do grupo se viu completamente emboscado.
“Merda, merda, merda! Eles nos trouxeram aqui de propósito! Isso foi calculado!” Darian entendeu.
Do grupo de vinte e dois, mais da metade foram eliminados.
Restavam cerca de dez homens. Todos exaustos. Pedir para eles entrarem em combate parecia uma piada de mau gosto.
O cheiro metálico do sangue cobria o ar. Uma pressão esmagadora espreitava nas sombras.
Mesmo assim, era melhor cair lutando.
— Saquem suas espadas, malditos! Se vão morrer de qualquer jeito, que sejam levando pelo menos um pro inferno com vocês!
Uma voz cortando a escuridão veio logo em seguida.
— Hahahaha… Não. — Uma figura disse, se aproximando .
— Quer dizer… — Continuou, balançando o dedo indicador de um lado e para o outro — Não aconselho. Sim, isso é melhor…
Mesmo tendo se revelado, não era possível vê-lo. Os trajes trabalhavam junto com as sombras do local, como se o próprio mundo não quisesse expô-lo.
— Vai se fuder! — O líder do grupo encurralado esbravejou. — Vamos, rapazes, saquem suas espad…
Quando ele olhou para seu grupo, todos estavam tremendo.
Não era um medo que palavras pudessem contornar.
Era terror. Absoluto.
— Não há escapatória… — Um líquido escorria pelas pernas, molhando o chão.
— Não quero morrer! — O outro soltou as palavras, soluçando.
Apenas lamentações. Se esses homens um dia tiveram vontade de lutar, essa noite estava morta e enterrada.
— Foco! Levantem suas espadas! — Ordenou.
Sem resposta.
Acima das árvores, risadas eram ouvidas.
— É disso que eu estou falando! — A figura misteriosa disse, apontando o dedo para o grupo. — Esse tipo de medo… é prazeroso.
O indivíduo andava de um lado para o outro. Sem pressa. Uma criança entediada.
— Vou ser misericordioso com vocês. — Continuou. — Larguem suas armas e eu lhes darei uma morte rápida e indolor… ou quase.
Um por um, caíram ao chão — espadas, escudos, punhais — como notas de uma canção de morte.
O homem riu alto.
— E é assim que se faz pros homens obedecerem!
Menos uma. Um ainda segurava sua espada firmemente.
— Olha só… ainda quer lutar. Vê isso, rapazes? Seu líder ainda quer lutar! — A zombaria em sua voz era afiada. — Talvez ele queira honrar o que tem no meio das pernas…
A figura olhava o homem à frente. Nada novo, apenas mais do mesmo. Já viu muitos como ele.
Um olhar de desafio. Não era o de alguém que desistia. Dava trabalho lidar com estes tipos.
Um sondava o outro.
— Eu achava que vocês eram religiosos… que piada.
Não era possível ver nada a respeito de seu oponente, entretanto, aquele colar que ele ostentava no pescoço era conhecido.
Uma cruz envolvida por uma mão.
— Manus Dei, não é? — Continuou. — O que a igreja quer com a eliminação de um simples grupo mercenário?
“Eu só havia ouvido rumores, mas imaginar que a igreja seria assim…”
O ar pesava. Mesmo os sons da floresta haviam cessado. O farfalhar das folhas da copa das árvores estavam mudos.
— Um homem morto não precisa entender os grandes planos divinos. — A voz, antes benevolente, agora, fria como uma lâmina.
— Diga-me seu nome. — Continuou. — Farei o favor de criar uma lápide em sua cova rasa.
— Heh… — O sorriso morreu tão rápido como veio. Quase não acreditando em seus ouvidos. — Cova, você diz?
— Tanto faz… — Suspirou, olhando para o céu.
Uma linda noite estrelada. Não imaginava que as estrelas seriam tão bonitas. Mesmo o toque de seu cabelo no rosto parecia agradável.
Não sabia que iria sentir falta dessa sensação algum dia.
— Meu nome é Darian.
Apertou fortemente a espada em mãos. Avançou logo em seguida.
Em poucos passos encurtou a distância. O chão por onde pisava restavam apenas as crateras.
Um amplo golpe ascendente foi realizado.
Subiu com violência, rasgando o ar… mas não encontrou carne. Como se o inimigo tivesse evaporado no instante anterior. Apenas o vazio o encarava de volta.
“O que? Como? O chão engoliu ele?”…, olhos arregalados.
Um ataque. Pela esquerda.
Clang!
Rápido demais. Um segundo mais lento e estaria morto.
“Muito forte!” , as mãos tremiam com o impacto do golpe.
A troca de golpes deixou claro. Seu oponente estava em um nível diferente.
Um, dois, três — todos bloqueados com esforço.
Faíscas voavam enquanto o cheiro de ferro queimado inundava as narinas de Darian.
Em determinado momento perdeu o equilíbrio. Uma raiz o derrubou.
O golpe que ceifaria sua vida não chegou.
— Levanta. Não terminei com você. — O sujeito falava, com altivez.
O corpo doía além do que as palavras podem descrever, mas a maneira como o chão o acolhia, como uma mãe abraçando um filho, e a maneira como seu oponente o esperava…
Era humilhante.
— Maldito do caralho! Isso é divertido pra você?!
O homem não respondeu de imediato. A mão apoiava o queixo, como se pensasse seriamente em algo. — Talvez seja. E daí?
A indiferença, o descaso — tudo contribuia para a raiva de Darian.
Levantou-se em um salto. Se o oponente queria uma luta, a teria. Mas dessa vez era diferente.
Os dedos formigam — tremiam. Sangue escorriam pelos olhos à medida que seu corpo ficava quente.
“É… agora não tem mais volta.”
A figura em frente a ele já havia recuado alguns passos. A perturbação da mana era palpável.
— Vou te levar pro inferno comigo, miserável!
Outra figura havia se revelado, surgindo da floresta e pousando calmamente em solo. Um dos companheiros do misterioso indivíduo.
— Isso é perigoso. Consegue lidar sozinho?
…
— Sei lá… talvez? — Respondeu, dando de ombros.
Mesmo ele não se sentia confiante em suas palavras. Não poderia mais brincar agora.
“E pensar que recorreria a heresia… É isso o que dizem sobre não tirar tudo de um homem?”, estalou a língua com o pensamento.
Sacrifício de sangue, uma arte que sacrifica a própria força vital em troca de poder. Uma força absurda, mas momentânea, e com um preço alto. Um que poucos estavam dispostos a pagar.
Criada por um demônio há muito tempo. Banida para sempre. O mero pensamento de comercializar ou passar essa técnica adiante era punível com a morte.
E então, sumiu de vista.
Simples assim. O homem que estava sob seu controle desapareceu.
— Quê?…
Um chute. Sem técnica. Apenas brutalidade pura e verdadeira. Atingiu precisamente as costelas do sujeito.
Doloroso. Sem tempo para reação.
Saiu voando até uma árvore o receber com um baque forte, expulsando o ar dos pulmões.
A tontura, acompanhada pelo choque, não lhe deram tempo de pensar no que fazer.
Um vulto em alta velocidade vinha em sua direção.
Os instintos falaram mais rápido. Sobreviver. Era a única coisa que seu cérebro podia pensar.
“Merda!”
As sombras rapidamente o engoliram, tirando-lhe dali.
Onde estava a segundos antes só havia uma cratera e uma figura ensandecida.
O homem chamado Darian não existia mais, dando lugar a uma criatura totalmente desprovida de racionalidade.
Agora ferido, o sujeito de antes, estava ao lado do companheiro.
Apesar da situação, estava calmo. — Heh… então, sobre a ajuda de antes, ainda está de pé?
Um momento se desenrolou enquanto ambos se olhavam. Logo começaram a rir.
— Você é doido.
— Todos nós somos. — A voz carregava dor, enquanto tentava se manter em pé.
— Justo. Recua. Seu estado não é útil aqui.
Sem hesitar o sujeito seguiu as ordens. O outro que havia ficado olhava para a criatura a frente.
A coisa não raciocinava. Cega. Controlada pelos instintos e seu ódio pelo o humano que havia sumido. Vendo que seu alvo havia desaparecido, apenas mudou de foco.
Os humanos próximos. Seus antigos camaradas.
— N-não! Sai… sai daqui, porra!
— Darian, você não faria isso com a gente, né? Somos amigos, caralho!
A resposta veio num rosnado.
O homem ruivo de meia idade não existia mais naquele mundo. No lugar, uma fera.
O branco dos olhos se transformando em um vermelho viscoso. Veias negras, se contorcendo como vermes na pele. O som regular da respiração se tornando um tom bestial. Ele parecia… maior.
O primeiro a cair teve o ombro arrancado junto ao braço. Um grito, depois silêncio. Outro tentou correr — só conseguiu chegar a dois passos antes de ser derrubado e sentir os dentes atravessarem seu pescoço.
Os demais recuaram, tropeçando e implorando. Não adiantou.
A besta avançava usando garras e dentes, rasgando carne como se fosse tecido podre. Sangue respingava no rosto dos sobreviventes.
O aliado que viera em socorro observava em silêncio. Aqueles homens já estavam mortos antes mesmo de Darian encostar neles. Era só questão de tempo.
Coincidência bem vinda.
Ele levantou a mão e fechou o punho. Um sinal breve. Três sombras surgiram quase no mesmo instante.
— Exorcismo. Isolem todas as rotas de fuga.
— Entendido! — Disseram, em uníssono.
Rapidamente se dispersaram e se colocaram em pontos estratégicos. O local era favorável, um pequeno campo aberto e atrás a mata densa. Isolar o perímetro era fácil.
Tudo estava pronto.
— Comecem!
Instantaneamente um pilar de luz foi erguido. Uma estrutura quadriculada precisa que tem como base ensinamentos divinos.
Poder sagrado.
A própria escuridão da noite parecia não se atrever a estar perto, se escondendo para mais fundo da floresta.
Outras figuras foram reveladas. Nada ficaria escondido diante do poder divino.
Duas. Cada um no topo de uma árvore. Uma em pé, recostado nos galhos com os braços cruzados. O outro, ferido, sentado.
— Não importa quantas vezes eu veja isso, é sempre impressionante. — disse, com a mão repousando sobre o hematoma.
O golpe anterior tinha quebrado algumas costelas.
E então, um grito. Gutural.
GhhrAAAKHhhRRRrrrhhhAAAAhhh!
A criatura se contorcia em dor.
Queimaduras eram formadas por todo o corpo, tornando o processo agonizante para o alvo.
Não demorou muito para querer sair dali, correndo e se chocando com uma das paredes da estrutura.
Tremia, mas não rachava. Firme o suficiente. As quatro figuras no local servindo como base não se sentiam minimamente incomodadas pelo sofrimento do ser.
— Rank B… quase rompendo a barreira do rank A. — O sujeito de braços cruzados, disse. — É por isso que essa técnica é tão perigosa. Um homem rank C se transformou nisso.
— Se você não tivesse brincado com ele desde o ínicio, não teríamos esse trabalho.
O ferido não disse nada. Sabia que estava errado.
Seu colega não parecia ter acabado.
— Brumalva fica nessa região. Se ele tivesse escapado, seria uma dor de cabeça. — Os olhos continuavam fixos na criatura ardendo. — Sua imprudência terá consequências.
A fera rugiu mais uma vez, mas o som já não era de ameaça. Era o de um animal que percebia que ia morrer.
O sujeito baixou o queixo, como se desse a sentença.
— Queime até não restar nada.
E a luz engoliu Darian.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.