Capítulo 6 — Cada um com seu cada qual
A luz das velas iluminavam pouco o ambiente daquela sala. Duas figuras estavam em posição de lótus, orando.
“Nós somos a mão.
O senhor é o pensamento.
Não agimos por vontade própria,
mas pela vontade d’Aquele que é.”
Um estava sobre o chão em um confortável tapete de pele, o outro sobre algo.
“Silenciamos o pecado.
Onde quer que se esconda.
Cegamos olhos rebeldes,
até que vejam a verdade.”
…
“Não pedimos glória.
Não tememos a morte.
Pois a mão que serve,
É a mão que será lavada.”
Um levantou. Este era Magnus Filch, atual reverendo. Um homem acima do peso, com cabelos grisalhos e que parecia cansado pelo esforço de levantar.
— Ah… que desagrado… que desagrado! — A voz rouca carregava desapontamento. — Você, um dos melhores, cometendo tal erro!
Pequenas gotas de suor se acumulavam em sua testa. Ele pegou um pequeno pano limpo de linho branco, secando-se antes de continuar. — Por suas contribuições significativas, sua punição foi branda. Levante-se.
Seus olhos fitavam o rapaz ainda em posição de lótus. Sua aparência era extremamente comum. Cabelo castanho, olhos negros e feições medianas. Nada o destacava.
— Obrigado, Reverendo! — disse, se curvando.
Nos joelhos, marcas de sangue eram notáveis. Ao chão, uma pequena tábua com pequenas agulhas. O lugar onde estava.
A cera continuava queimando.
Magnus não pareceu se importar com o respeito dado a ele, dando a volta sobre uma mesa de carvalho, sentando-se.
A mão gorda fez um gesto, apontando para a cadeira da frente. O rapaz entendeu de imediato, tomando o assento para si.
A luz da vela tremia. Papéis eram folheados.
— Estou vendo aqui… essa missão não era pra ser difícil. — Magnus analisou. — Os relatórios batem com o que foi descrito, então por quê?
A resposta veio depois de uma longa reflexão. — Por que eu brinquei com a presa, reverendo.
— Exatamente!
O ponto alto da conversa tinha chegado. — Rapaz, você é excepcional, de fato. Mas seu sadismo é um defeito. Um que precisa ser erradicado.
A cabeça doía. Os dedos circulavam sobre as têmporas.
“Ah… ele sempre foi assim. Desde pequeno. Onde foi que eu errei?”
Relembrar do passado era inevitável. Tempos mais fáceis traziam boas lembranças.
O sorriso de uma criança parecia claro como o dia em suas memórias. Doce, puro. Um ser de fato inocente.
Sem pais vivos ou família. O destino o empurrou para a igreja.
Ora, como poderia um servo de Deus não se compadecer? Logo ele adotou o menino, assim como fez com vários outros.
Mas as linhas da vida trabalhavam de maneiras tortas. Este, em especial, não poderia se satisfazer com uma vida simples.
As palavras amorosas não pareciam importar. Vida santa? tampouco.
Não demorou muito para perceber a maldade do jovem. Uma curiosidade cruel de descobrir a morte. Como indivíduos se comportavam diante dela e sobre a natureza em si.
Dissecava animais, estudava seus órgãos. Um bibliotecário obcecado por um bom livro.
Magnus tinha um sentimento. Ou melhor, uma certeza. Este menino precisava de doutrina!
O que ele poderia se tornar caso contrário?
Por conveniência, havia uma solução.
Mesmo homens precisavam de ajuda com suas ovelhas, assim surgiu o cão pastor.
Uma organização do submundo com valores religiosos rígidos, focada em treinar e educar aqueles que mantém a ordem contra os demônios.
Essa era a Manus Dei, uma vertente secreta da igreja. Responsáveis por ‘limpar’ o mundo em nome de Deus.
Se não pode controlar a natureza de alguém, controle-o por um sistema.
Uma corrente não precisa ser visível — apenas firme. Imponha regras, conceda migalhas de poder e, com tempo, pessoas até morrem por elas.
E assim foi feito.
A natureza nata de luta do jovem logo o destacou. O combate causava-lhe fascínio. Mesmo entre seus colegas veteranos, ele se sobressaía.
As outras crianças, depois de um sparring, saíam muito machucadas ou traumatizadas. Adolescentes tinham dificuldades em acompanhar, mas ainda ganhavam. Claro, isso durou apenas um tempo, o rapaz também cresceu e superou-os.
Magnus sentia que o jovem, sozinho, carregava grande parte da culpa por seu envelhecimento acelerado.
O que o confortava era que o jovem pareceu aceitar o caminho justo, direcionando sua selvageria aos inimigos de Deus.
Mas a atitude arrogante ainda estava lá.
Um suspiro se seguiu. Magnus olhava os papéis
— Um dedo que não obedece o comando da mão não tem serventia.
Baque!
O jovem levantou colocando as mãos sobre a mesa.
— Não, reverendo! — O jovem não acreditava em seus ouvidos. — Por favor, não!
As pálpebras tremiam, incontrolavelmente. Seus dedos transpiravam.
“Não! Tudo que eu fiz… tudo que eu faço… tudo é pela vontade d’Ele! Sem isso… o que eu sou?”
Ele não queria saber a resposta dessa pergunta.
— Ulisses, sente-se, agora!
A voz do reverendo o fez voltar à realidade. As pupilas dos olhos centralizando.
A marca da mesa molhada no formato da mão do jovem ainda estava lá, para os olhos mais atentos.
— Esse seu temperamento. É exatamente isso! — Suspirou, de fato, estava velho. — Escute, você não sairá de operação…
— Recebi ordens de cima. — Continuou. — Vou comentar com você os detalhes do porque você e seu esquadrão teve que lidar com o caso passado.
— Normalmente isso não é algo que um dedo tenha que saber, mas como a situação pede…
Tomou um tempo para si, olhando para um canto da sala — perdido em seu próprio pensamento antes de continuar.
— Aquele ruivo, que você falhou em lidar de maneira adequada, foi-lhe dado a ordem de eliminar ele e seu grupo por causa do sacrifício de sangue. — Explicou. — O que já o condenava à morte, mas tem algo que não bate…
Ulisses estava com as mãos entrelaçadas, os polegares rodeando um ao outro.
Ele via como Magnus estava tentando compreender algo.
Não conseguia entender o ponto. A missão foi concluída. Por que a dor de cabeça?
O mal havia sido erradicado com sucesso. Em seu coração, isso era tudo que importava.
Mesmo assim, deu voz aos seus pensamentos.
— O motivo do alvo em ir para Brumalva, reverendo?
— Sim, mas não apenas isso. — Magnus ponderou. — De acordo com o relatório seu e de sua equipe, a maneira que ele operou foi divergente. Não foi como de costume.
…
— Você, que estava na batalha, percebeu algo além?
— Não. — A resposta veio seca. — … Reverendo, não consigo entender sua preocupação. Foi feito. Sem testemunhas. Morto e enterrado. Me certifiquei disso. — Ulisses falava, gesticulando com as mãos.
— Aqueles que sucumbem às artes demoníacas devem sofrer o expurgo. Demônios são eliminados de acordo com a vontade de Deus.
A sala caiu em silêncio depois desse comentário.
A luz da vela fazia as sombras dos dois tremer entre as paredes rochosas do recinto. A face do homem mais velho estampava o desapontamento.
— … Você ainda é muito, muito imaturo. Demais. — Magnus prosseguiu, quebrando o silêncio.
— Hm, deixe isso de lado. — O homem afastou o assunto com as mãos. — Há também outra questão que eu queria discutir com você. Em brumalva há uma criança, em torno dos seus doze anos.
— Um santo?
Uma risada alta surgiu como resposta.
— Não, mas seria bom se fosse. Existem poucos no mundo — Magnus ainda mantinha um leve sorriso no rosto. O que ele ouviu realmente soou engraçado.
— Uma irmã relatou que este garoto tem potencial para o caminho da espada. Como você foi no passado, ele também é sozinho.
Ajeitando a barba, prosseguiu. — Sua missão é analisar isso. Um talento precisa ser nutrido apropriadamente.
— … E se ele não for um talento?
— Então deixe-o. — Magnus bufou. — Deus é soberano sobre tudo e todos. A vida deste jovem fica à mercê da misericórdia d’Ele.
As estações passaram rapidamente. Logo era primavera.
O sol estava alto no céu azul. Flores desabrochavam, trazendo consigo uma beleza natural. Um tapete floral ao solo mais afastado do centro.
Um canário-da-terra cantava melodiosamente em uma das árvores.
A brisa fresca trazia promessas de um tempo melhor. Fartura.
Um clima que propiciava o comércio. As barracas estavam cheias de mantimentos e artesanato. Os comerciantes exibiam suas mercadorias com sorrisos largos. As ruas estavam cheias e sempre havia clientes.
Uma caravana mercantil.
Brumalva ficava em uma região de difícil acesso. A economia era sustentada pela própria população pela caça e artesanato, mas a mineração era sua maior fonte de renda.
Minérios é uma fonte monetária forte. O poder de compra de uma moeda pode desvalorizar — o ouro não.
Sendo assim, tudo se baseava em uma troca de interesses mútua.
Martin Nortani sabia disso.
Um homem obeso de nariz largo e cabelo de tigela estava sentado em um dos comôdos da casa Talrick.
Suava profusamente. Talvez pela falta de ventilação local.
Era uma sala fechada que carecia de luz natural. Uma lamparina era necessária para poder prestar atenção na papelada que estava em cima de uma mesa de madeira maciça.
Por vezes ele limpava a oleosidade do rosto na manga já encardida das vestes, mas nunca desfocando do seu trabalho.
Era o tesoureiro encarregado das finanças. Os papéis mostravam valores monetários. Desde entrada e saída de fundos, distribuição, tudo relacionado a verba ele era o responsável.
Sem modos, sem aviso prévio, a porta foi aberta. Revelava a figura de um homem de coque e gibão preto escuro.
Um cheiro rançoso inundou o local.
Assim que entrou jogou de qualquer jeito um saco sobre a mesa. — Tá aí. Pega.
A voz era seca. Exibia algumas cicatrizes no rosto e uma barba rala.
— O- obrigado, senhor Garran. — A voz, uma gagueira sem fim.
Mais suor acumulou-se na testa e mãos do sujeito. Sequer olhava nos olhos ao agradecer.
Garran tinha uma expressão azeda, cuspindo no chão.
— O- obrigado, senhor Garran. — Disse, em completa zombaria, encolhendo o corpo, tentando imitar Martin.
— Você me dá nojo… toda vez que vejo sua cara gorda, me dá vontade de encher de murro.
Aquela frase causou um arrepio em Martin, que permanecia quieto. As pernas estavam juntas, com o pé esquerdo batendo incontrolavelmente no chão.
Por mais que tentasse entender, não conseguia. Ele mesmo nunca tinha feito nada a Garran, mas ainda recebia seu ódio.
Martin apertou os punhos, reunindo alguma bravura.
— V- você está atrapalhando o- o… exercício da minha função! O- o Senhor varn com certeza ficará furioso!
Depois disso, a coragem morreu como uma vela sem oxigênio. Fechando os olhos.
Tsk!
Garran estalou a língua, saindo do local.
Da sua passagem ali, só restou o cheiro ruim. Deixando Martin sozinho.
Demorou um pouco para ele abrir um dos olhos. Quando viu que Garran tinha, de fato, ido embora, relaxou.
Não podia evitar. Tinha um espírito fraco.
O saco de moedas continuava jogado sobre a mesa. Tinha algumas que caíram no chão.
“Mais trabalho…”
O olhar pesava. Há quanto tempo não tinha uma noite de sono decente? Tempos como esse movimentavam muito o capital de giro. Ele, sozinho, mal dava conta.
É claro, ele nunca teria a coragem de reclamar sobre isso com Varn. Apenas pensar naquele olhar afiado e a aura que o permeava, davam calafrios em Martin.
Trabalhava pro sujeito há muito tempo. O conhecia bem o suficiente. Nada de bom viria em reclamar.
Além de que… realmente não queria. Por mais que fosse exaustivo, o salário ainda era bom. Muito melhor do que pensava em receber nos seus sonhos mais loucos.
Fazendo a contabilidade daquelas moedas, ele se lembrava de sua mãe, de seus irmãos, de sua família. Aquela casa apertada que malmente cabia alguém, quem diria dignidade.
Mesmo assim, se ajudavam. Unidos. Sua família sempre o apoiou, mesmo que não fosse bom em nada.
Mas era, e Varn percebeu. Trazendo-o sobre sua casa.
Agora ele podia enfim ajudar seus parentes. Era grato por isso. Ainda se lembra do sorriso caloroso de sua mãe.
— Você conseguiu, filho! Essa sua mãe tem orgulho de você!
Aquele momento estava guardado no coração.
“Eu… eu não posso desapontar eles.”
“Mesmo que seja difícil, tenho que aguentar!”
Aqueles pensamentos, naquela sala abafada, fortaleciam sua convicção, dando-lhe força. O momento de medo que passou com Garran, sumindo de sua mente. O dever chamava.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.