Capítulo 1 | Terra à vista (1)
O mar era um espelho de obsidiana polida sob a luz de uma lua minguante. Cada ondulação suave parecia um suspiro lento do mundo, um ritmo hipnótico que há dias embalava o pequeno veleiro de pesca em sua travessia para o norte.
A brisa, fria e salgada, era a única companheira constante naquela imensidão silenciosa, um sussurro que prometia terras que nunca pareciam chegar.
No leme, Hermes sentia o peso de cada hora de vigília. A exaustão era uma inimiga nova e tenaz, uma âncora mortal que se arrastava em sua alma. Seus ombros, agora apenas carne e osso sem o sustento do néctar, doíam com a tensão de manter o curso.
Seus olhos dourados, que um dia puderam varrer continentes em um piscar, agora ardiam, focados na linha escura do horizonte, procurando não por um destino, mas por ameaças que se moviam nas sombras de sua mente.
O sono era um luxo negado, uma espaço que permitia que seus pesadelos tomassem forma e tivessem o poder de importuná-lo. Dormir não era mais sinônimo de repouso, mas sim de perturbação.
Atrás dele, duas outras figuras completavam a tripulação fantasma. Magno, o ladrão de Therma, estava encostado no mastro, os braços cruzados.
Seu rosto, geralmente uma tela de astúcia e sorrisos de raposa, parecia abatido sob o luar. Ele tentava manter a fachada de um homem despreocupado, mas a melancolia em seu olhar era uma ferida aberta, um luto silencioso por uma família de órfãos que já existia somente em suas memórias.
A terceira figura era apenas uma silhueta, um vulto encapuzado e imóvel na popa do barco. Não se movia, não falava, mas sua presença era, em parte, razão da insônia de Hermes.
O som de passos suaves na madeira fez Hermes se enrijecer por um instante, antes de relaxar ao ver Magno se aproximar.
— Noite longa, desbotado? — A voz de Magno era um esforço para soar casual.
Hermes não se virou. Seus olhos permaneceram fixos na escuridão à frente. — Todas elas são.
— Não sabia que viagens deixavam um cara tão durão quanto você ansioso assim. — Magno zombou e sorriu largamente, apertando levemente o ombro de Hermes de forma amigável.

Uma pausa. Hermes olhou de relance para a figura encapuzada na popa. — É o velho.
Magno ergueu uma sobrancelha, a curiosidade genuína quebrando sua máscara de zombaria fingida. — O velho? Ele fala muito dormindo?
— Mais do que você imagina. — A resposta de Hermes foi seca, cortante, carregada de um peso que Magno não podia compreender.
O gatuno soltou uma risada baixa, um som que não alcançou seus olhos. — Deve ser para compensar o tempo em que passa acordado.
O som daquela alegria forçada irritou Hermes. Ele se virou, os olhos dourados fixos em Magno que sorria de canto olhando pro horizonte, a paciência finalmente se esgotando. — Magno, até quando vai fingir que-
— TERRA À VISTA!
O grito de Magno foi súbito, alto, cortando a pergunta de Hermes e o silêncio da noite.
Ele apontava para um contorno escuro que se desenhava contra as estrelas.
Thasos.
O refúgio. A próxima etapa. Hermes cerrou o maxilar, a conversa interrompida, e se virou de volta para o leme, guiando o barco em direção à ilha e às preocupações que, ele sabia, os aguardavam.
A chegada ao porto de Thasos foi como emergir de um sonho silencioso para um pesadelo febril. A cidade, aninhada na base de uma montanha coberta de florestas, era um emaranhado de atividade, mas a energia que pulsava em suas ruas era doentia.
O trio encontrou um cais abandonado para atracar, escondendo o barco e a figura imóvel encapuzada das vistas curiosas. Enquanto Hermes cuidava das amarras, Magno, em seu elemento, desapareceu nas sombras da cidade sem dar quaisquer satisfações.
Quando Hermes procurou pelo companheiro e não o encontrou, um suspiro pesado pareceu tomar todo o seu corpo. Ele fez o trabalho sozinho, orientou o companheiro encapuzado a permanecer no veleiro e saiu em busca do gatuno aventureiro.
A vila portuária era como uma obra de arte das dualidades. Havia a agitação normal de um porto comercial: estivadores com torsos nus e suados carregando sacos de grãos, o cheiro de peixe fresco e sal marinho misturado ao aroma adocicado do vinho famoso da ilha. Mas, por baixo dessa camada de normalidade, havia uma corrente de medo.
Alguns cidadãos passavam apressados, os rostos tensos, os olhos baixos, puxando seus filhos para perto. Sussurros nos cantos, olhares furtivos para as colinas que se erguiam sobre a cidade.
E havia os outros.
Grupos de pessoas vagavam pelas ruas com uma euforia artificial, os olhos vidrados, sorrisos vazios em seus rostos. Eles não pareciam bêbados, mas… ausentes. Como se seus corpos estivessem ali, mas suas almas tivessem sido levadas para outro lugar.
Hermes observou um homem, um ferreiro a julgar por suas mãos calejadas, parar no meio da rua e começar a rir para o céu, um som oco e sem alegria, antes de continuar seu caminho como se nada tivesse acontecido.
Em meio à sua busca, com o pouco que havia observado, algo se fazia claro para Hermes. Esta vila estava doente, dividida por uma praga invisível que separava os lunáticos dos temerosos.
Sem conseguir achar o colega, Hermes notou que as pessoas já começavam a se recolher para suas casas e voltou ao cais.
“Ele é grandinho e bem treinado. Sabe o caminho de volta.” Pensou, tentando se convencer de que não estava tão irritado com toda a situação.
Magno retornou ao cais abandonado como uma sombra se desprendendo da parede, seus movimentos ágeis desmentindo a preocupação que agora marcava seu rosto. Hermes, que observava a estranha calmaria da cidade da proa do barco, virou-se ao ouvi-lo pular a bordo.
— Você demorou — afirmou Hermes, o tom uma mistura de repreensão e alívio.
— Eu vi umas coisas estranhas, desbotado. Muito estranhas — disse Magno, a voz baixa, a fachada de despreocupado completamente esquecida. — As pessoas aqui… elas não agem certo. Metade da cidade parece um rebanho assustado, a outra metade, um bando de lunáticos sorridentes.
Hermes o encarou, o maxilar cerrado. — Você sumiu de maneira descuidada. Poderiam ter te seguido.
— Ninguém me segue nesta ou em qualquer outra cidade — retrucou Magno, ofendido, mas a convicção em sua voz vacilou. — Escute-me branquelo, o ponto é que há algo grande e podre acontecendo aqui.
Hermes suspirou, passando a mão pelo rosto cansado. — Pode haver um milhão de coisas podres acontecendo em Thasos, Magno. Nenhuma delas nos levará a Circe.
Magno se aproximou em alguns passos ansiosos. Seu sorriso habitual não estava no rosto. Em seu lugar, uma expressão preocupada. — Hermes, o que eu vi-
— Precisamos descansar, esperar que o comércio reacenda com o nascer do sol para arranjar os suprimentos e partir. Nossa jornada é longa. Não podemos nos distrair. — Hermes o interrompeu com um gesto, virando-se para a cabine e se afastando. — Todos tem problemas Magno… Vamos nos ater aos nossos. Certo?
A pergunta acompanhou um último olhar do rapaz de cabelos brancos. Um olhar cansado, desesperançoso.
Magno, embora contrariado, assentiu. Eles se ajeitaram para uma noite inquieta. O ladrão, vencido pelo cansaço do dia, adormeceu quase que instantaneamente, seus roncos suaves se juntando ao som das ondas que batiam preguiçosamente contra o casco.
Mas para Hermes, o sono não veio.
Deitado em uma rede improvisada, ele ouvia. Não o mar, não o vento. Eram os murmúrios. Vindos da figura encapuzada que jazia imóvel como um cadáver.
Palavras desconexas, fragmentos de frases em um grego arcaico, nomes de estrelas e lugares que Hermes não ouvia há séculos. Era como ouvir o sonilóquio de um fantasma, e aquilo manteve o deus caído em um estado de vigília torturante.
Sua mente, privada do descanso, tornou-se um terreno fértil para seus próprios demônios.
Visões de Circe e Ágatha se misturavam.
Viu o sorriso enigmático da feiticeira e, em seguida, o rosto choroso de Ágatha, a dor da traição e do sacrifício em seus olhos. A imagem da menina, sua lealdade trocada pela vida de seus amigos, era uma ferida que se recusava a cicatrizar.
Ele se sentia responsável por ela, por Teseu, por Magno. Um fardo que ele, um deus, nunca imaginou carregar, mas que agora o acorrentava mais firmemente do que qualquer grilhão do submundo jamais seria capaz.
Incapaz de suportar o confinamento do barco e os sussurros do andarilho, ele se levantou e foi para o cais.
A noite em Thasos era fria. A névoa rastejava do mar, envolvendo os mastros dos navios adormecidos em mortalhas fantasmagóricas. Ele olhou para o acampamento improvisado de Magno no porão e, com uma pontada de irritação, percebeu que o ladrão havia sumido de novo.
Hermes suspirou, o hálito formando uma nuvem branca no ar. A ausência de Magno o fez lembrar das crianças, do cheiro de carne queimada na pira, do som dos soluços de Magno na câmara do Arconte. Do que ele teve que fazer. A ordem que dera para matar os guardas rendidos… teria sido justiça ou apenas vingança?
Um ato de um líder protegendo os seus ou o capricho de um monstro pautado apenas na própria dor?
Ele se questionou se estava certo nas decisões que tomou.
Sua mão foi instintivamente para o bolso interno onde a moeda de Tânatos repousava, fria e pesada.
Ele a pegou, o metal escuro parecendo absorver a pouca luz da lua. Sentiu o poder latente nela, o coro de almas aprisionadas, a promessa de uma velocidade e força que quase o destruíram. A frase de Teseu, seu último aviso, ecoou em sua mente: “…se você vier a se tornar um monstro… eu terei que pará-lo.”
Hermes olhou para seu reflexo distorcido na água escura do porto. Viu apenas um homem cansado, com cabelo branco e olhos assombrados. Mas por baixo, sentia a agitação daquela força profana, a tentação de usá-la para rasgar o mundo e encontrar suas respostas.
“E se eu tiver que me tornar um?”, a pergunta se formou em sua mente, não como um medo, mas como uma possibilidade fria e terrível.
Horas depois, o céu começou a clarear, e Magno retornou, mas não sozinho.
A seu lado, caminhava um homem magro e sujo, com cabelos emaranhados e olhos que se moviam com a rapidez assustada de um rato.
Parecia um pedinte, uma figura invisível para a maioria dos cidadãos, alguém sem muita credibilidade, mas cujo olhar continha o conhecimento desesperado de quem vê o que os outros escolhem ignorar.
Hermes observou os dois se aproximarem, a irritação pela ausência de Magno dando lugar a uma curiosidade cautelosa. O homem que o gatuno trazia era um espectro da pobreza.
Seus pés descalços estavam pretos de sujeira, os trapos que usava mal se agarravam a um corpo magro e curvado, e seus olhos não paravam de se mover, dardejando para cada sombra como se esperasse um ataque.
— Onde você estava? — Hermes perguntou, a voz baixa, mas o tom não deixava dúvidas de sua impaciência.
Magno ignorou a pergunta. Ele parou em frente a Hermes e deu um empurrão nada gentil nas costas do homem que trouxera, forçando-o a dar um passo à frente. O coitado se encolheu, quase caindo.
— Repita para ele o que me disse. — Magno ordenou, a voz desprovida de sua sagacidade habitual, substituída por uma urgência sombria.
O homem olhou de Magno para Hermes, o terror em seu rosto era palpável. Ele tremia, a boca se abrindo e fechando sem emitir som por um instante.
— Vamos! — Magno insistiu.
— O Sacerdote… — o homem finalmente engasgou, a voz um sussurro rouco. — O de tapa-olho.
Magno coçou o pescoço, com um olhar irritado que fazia parecer que estava se controlando para não fazer algo contra o pedinte.
Como se entendesse esse olhar, o homem assustado prosseguiu.
— Ele leva as pessoas para o topo da colina e quando voltam, estão diferentes, como se não fossem mais as mesmas. Dia desses à noite ele levou meu único amigo. — O homem choramingou, levando ambas as mãos ao rosto como se fosse chorar. — No dia seguinte, o vi no mercado… ele não me reconheceu. Apenas sorria… sorria como um tolo.
Magno, há pouco irritado, se aproximou e afagou o ombro do homem, confortando-o a uma distância razoável.
— Algo de mal vai acontecer à nossa vila. — O sem-teto completou em um princípio de soluços.
Hermes ouviu impassível. Ele olhou para a figura patética do homem, para o medo genuíno em seus olhos, e depois para Magno, cuja expressão dizia “Viu? Eu te avisei”.
Um suspiro pesado escapou dos lábios de Hermes. Ele se virou, dando as costas para os dois e olhando para o mar, onde o sol começava a pintar o horizonte de dourado.
— Isso não é da nossa conta — ele respondeu friamente, a voz carregada pela exaustão de uma noite sem dormir. — Temos preocupações maiores do que lidar com falsos profetas numa vila no meio do nada. Pegamos os suprimentos e partimos.
— Hermes! — Magno deu um passo à frente, incrédulo. — Você não ouviu o que ele disse? As pessoas estão sendo… apagadas. Isso não é natural. Tem certeza? Um poder que causa tanto medo… não pode ser uma pista?
Hermes se virou lentamente, e a frieza em seus olhos dourados fez o sem-teto recuar instintivamente.
Sem outra palavra, ele se afastou, caminhando de volta para o veleiro, deixando Magno parado no cais, a frustração e a raiva se formando em uma tempestade silenciosa em seu rosto. A decisão estava tomada. Ou assim ele pensava.
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