O despertador tocou pela terceira vez, ecoando no quarto pequeno e abafado. Isabel abriu os olhos devagar. A luz do sol já entrava pelas frestas das cortinas, iluminando o teto de dourado. Não fazia frio, mas o lençol fino ainda era o abrigo mais confortável que ela tinha naquela casa.

    Deitou-se por mais um segundo. Só mais um. Aqueles breves minutos entre o som insistente do relógio e o primeiro passo fora da cama eram os únicos em que se permitia respirar. Porque o resto… o resto era só sobrevivência.

    Hoje vai ser melhor.” Ela mentiu para si mesma enquanto se levantava.

     O piso gelado sob os pés descalços arrancou um leve arrepio. Vestiu o jeans rasgado de ontem, ajeitou os cabelos cacheados e vestiu o moletom escuro de sempre. No espelho da parede, encarou o próprio reflexo. As olheiras estavam lá, como sempre. A expressão cansada também. E, no fundo dos olhos castanhos, aquela mesma pergunta. “Até quando?”

     Desceu os degraus da escada em silêncio, tentando evitar os rangidos. A casa era velha, as paredes úmidas. Molduras tortas de fotos antigas ainda estavam penduradas, uma época que ela mal se lembrava, mas tinha certeza que era melhor.

     Ao chegar na sala, a voz da mãe cortou o ar.

    — Tá viva ainda? — disse, sem sequer desviar o olhar da televisão. O cigarro aceso descansava entre os dedos dela, e uma garrafa de vinho pela metade dormia no chão, ao lado do sofá.

     Isabel parou por um segundo. O peito apertou, mas ela respondeu com a voz mais neutra que conseguiu.

     — Bom dia pra você também.

     — Não começa, garota. Já me enche só de aparecer aqui com essa cara de coitada.

     Ela desviou os olhos, indo em direção ao balcão da cozinha. Havia aprendido a não retrucar, não mais. Cada palavra podia ser uma faísca, e faíscas ali viravam incêndios.

     A mãe bufou, se levantando de repente. Os passos lentos e o estalar do joelho deixavam claro que ela ainda estava de ressaca da noite anterior. Mas o olhar… o olhar era afiado.

    — Olha só pra você — disse, parando a poucos passos. — Acha mesmo que vai virar alguma coisa na vida? Vive enfiada nesse quarto escuro como um rato. Se seu pai visse o que você virou…

    Isabel cerrou os punhos.

    “Não responde. Não responde ela.”

    — …ele teria vergonha. — a mãe completou, com um sorriso triste. — Se ele não morresse por causa dessa merda e idiotice de heróis.

     Um estalo surdo ecoou pela cozinha. Isabel só percebeu que havia derrubado o copo do balcão quando os cacos rangeram em seus tênis.

     A mãe não se assustou. Nem gritou. Apenas sorriu de canto.

    — Viu? Nem pra isso presta.

    Isabel passou por ela sem dizer nada. Pegou a mochila, jogou nas costas e saiu de casa com os olhos ardendo.

     O ar da manhã bateu no rosto como um tapa frio, mas limpo. O mundo lá fora continuava o mesmo, carros passando apressados, pessoas em suas rotinas, fachadas pichadas, postes velhos, fios pendurados como veias negras pelo céu.

    Isabel andava rápido. Cada passo era uma forma de se afastar daquilo tudo.

    “O que eu tô fazendo aqui?”

     Seu mundo era estranho, desigual. Crescer num lugar onde existiam pessoas com poderes parecia coisa de filme, mas era realidade embora distante. Na prática, os “heróis” estavam longe dali. Eram figuras de televisão, de redes sociais. Salvaram cidades? Sim. Derrotaram monstros? Alguns. Mas também vendiam produtos, participavam de entrevistas, brigavam entre si por contratos. Era como se o heroísmo tivesse se transformado em entretenimento.

     E para gente como Isabel, aquilo não significava nada. Nenhum herói ia tirar ela de casa. Nenhum voaria até seu bairro pobre para perguntar se ela estava bem.

    “Nem sabem que eu existo.”

    Ela continuou andando, passando por muros grafitados com frases como “Liberdade é ilusão” e “Não precisamos deles”. E às vezes ela até concordava. Outras vezes, queria acreditar no contrário.

    Caminhou mais alguns quarteirões. Os prédios começaram a parecer menos abandonados. Um cheiro de pão fresco escapava de uma padaria que ela sempre via de longe, mas nunca tinha coragem de entrar.

     A escola se aproximava. A fachada velha, com tinta descascando nas janelas e o portão grande de metal, aberto com pessoas entrando.

     Respirou fundo e atravessou o portão.

    Os olhares vieram rápido. Sempre vinham. Grupos cochichavam. Risadas abafadas. Uma garota apontou. Isabel fingiu que não viu.

    Se finge de invisível, você talvez consiga ser.” era isso que ela dizia pra si mesma todos os dias.

     No fundo, só queria alguém que dissesse bom dia de verdade. Que perguntasse se ela estava bem, e quisesse ouvir a resposta.

     Passou por eles com a cabeça baixa. Os passos ecoavam nos corredores frios da escola como um lembrete: você está sozinha. De novo…

     Isabel apertou a alça da mochila no ombro e desviou o olhar dos grupinhos espalhados. Sabia que os cochichos não eram sobre outra pessoa. Sabia que os risos eram sempre na hora certa. O andar rápido a levava direto para o único lugar onde podia desaparecer por alguns minutos.

     O banheiro feminino, no fim do corredor do bloco C, era velho, mal iluminado e cheirava a desinfetante barato. Mas, para ela, era um refúgio. Fechou a porta e encostou as costas contra ela, respirando fundo.

     Deixou a mochila escorregar até o chão e se aproximou da pia. O espelho estava rachado no canto superior, e a luz amarelada piscava de tempos em tempos. Encostou as mãos na pia de mármore, e abaixou a cabeça. O silêncio era quase um alívio.

    Até a porta abrir com um estrondo.

    — Olha só quem a gente encontrou aqui — disse uma voz conhecida, cheia de veneno.

     Isabel girou lentamente e viu três garotas entrarem. As líderes de torcida, do tipo de crueldade que a escola finge não ver. A da frente, Letícia, tinha um sorriso torto e os braços cruzados.

    — Se escondeu aqui por quê? Achou que a gente não ia te achar? — perguntou outra, rindo.

     Isabel não respondeu. Só deu um passo para atrás.

    — Cês viram como ela anda parecendo uma mendiga? — Letícia zombou. — Esse cabelo todo armado, parece uma vassoura velha. Já ouviu falar em xampu, Isabel?

     Risos ecoaram. Uma delas puxou a alça da mochila e jogou no canto. Isabel tentou pegar, mas foi empurrada contra a parede com força. A cabeça bateu leve no azulejo frio, e ela piscou com dor.

    — Vai chorar agora, coitada? — zombou Letícia, se aproximando. — Sua mãe ainda tá viva? Deve tá, né? Pra deixar você sair de casa fedendo desse jeito.

     Um tapa seco veio antes da resposta. A palma estalou no rosto de Isabel, que cambaleou. Outro tapa logo veio, dessa vez mais forte, e depois um puxão de cabelo.

    — Isso nem é cabelo, é uma palha nojenta — disse a outra garota, rindo enquanto puxava mais forte.

     Isabel tentou se soltar, tentou gritar, mas foi empurrada de novo, agora direto no chão. As três riram e saíram como se nada tivesse acontecido, uma delas cuspindo perto da mochila caída.

    A porta se fechou, e o silêncio voltou.

     Por alguns segundos, Isabel ficou ali, caída no chão frio, com o rosto ardendo, os olhos marejados e o coração acelerado.

     — O que eu fiz pra merecer tudo isso! — gritou, o som da sua voz trêmula ecoou pelo banheiro.

     Depois, se levantou devagar, cambaleante foi até a pia.

     As mãos tremiam quando ela se apoiou de novo ali. O rosto refletido no espelho estava ainda mais cansado, ainda mais machucado. As lágrimas começaram a escorrer sem que ela pudesse controlar. Mas agora… junto da dor, havia algo a mais. 

    Raiva.

    Raiva que queimava.

     Ela fechou os olhos com força, os punhos trêmulos apertando as bordas da pia. O coração batia rápido, como se fosse explodir. E então… levantou o punho cerrado e o abaixou com rapidez e raiva.

     Um som seco cortou o ar.

     O mármore da pia estalou sob sua mão. As rachaduras espalharam como raízes, e um pedaço da estrutura simplesmente se partiu, desabando com um estrondo no chão.

    Isabel deu um salto para trás, assustada.

    — O que…? — murmurou, olhando para as próprias mãos.

     Os dedos ainda tremiam, mas não sentia dor alguma. Era… algo diferente. Uma energia quente, pulsando sob a pele. Como se o próprio ar à sua volta vibrasse.

     Ela olhou de volta para a pia destruída, para o mármore quebrado, para o espelho que agora tinha uma nova rachadura.

    E pela primeira vez… não se sentiu completamente impotente.

     Mas também não entendeu. Só sabia que algo dentro dela tinha mudado.

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