O som ainda ecoava em sua cabeça.

     O estalo da pia quebrando, um pedaço de mármore no chão… tudo parecia irreal. Isabel olhava para as mãos como se não fossem suas. Nenhum arranhão e nenhum corte, apenas aquela sensação quente e pulsante, como uma energia viva debaixo da pele.

     Ela recuou, os olhos arregalados, o peito subindo e descendo com força. Por um momento, pensou em sair correndo, mas… para onde?

    Olhou de novo o espelho, agora mais rachado do que antes. Seu reflexo a encarava com uma mistura de medo e algo novo. Determinação?

    — Isso não pode… — murmurou, levando uma das mãos ao peito, tentando acalmar o coração disparado.

    O mármore parecia ter trincado de dentro pra fora, como se algo tivesse pulsado nela… e escapado. Ela engoliu seco. Aquilo não era normal. Mas também, ela nunca se sentiu normal.

    Uma batida na porta do banheiro fez seu corpo inteiro enrijecer.

    — Tá tudo bem aí dentro? — uma voz feminina chamou. Era uma professora, talvez atraída pelo barulho.

    Isabel limpou rapidamente o rosto com a manga do moletom, pegou a mochila e respondeu o mais firme que conseguiu:

    — Foi só um tombo. Tá tudo bem.

    Silêncio…

    — Certo. Se precisar de ajuda, procure a diretora.

    Ela esperou os passos se afastarem. Só então saiu. O corredor estava quase vazio,  todos já deveriam estar em sala. Respirou fundo e se obrigou a caminhar em direção à sala de aula.

    Cada passo parecia mais pesado que o anterior.

    Quando entrou, a sala já estava em silêncio, todos voltados para a lousa. A professora lançou um olhar rápido, mas não disse nada. Isabel se encolheu no fundo, tentando desaparecer. Sentou-se na fileira do canto, onde ninguém costumava reparar muito.

    Mas, dessa vez, alguém reparou.

    Um garoto na carteira ao lado de Isabel, virou discretamente o rosto em sua direção. Tinha olhos escuros, cabelo levemente bagunçado e um olhar que parecia… calmo. Não era o tipo de olhar que tentava invadir. Era como se ele só estivesse ali, observando de verdade.

    — Ei… você tá bem? — ele sussurrou, inclinando-se um pouco.

    Isabel arregalou os olhos. Ninguém falava com ela assim, ainda mais durante a aula.

    — O quê?

    — Seu rosto… tá meio vermelho. Parece que você tava chorando. Você tá bem?

    Ela hesitou. A pergunta veio tão simples, tão natural. Mas ela ficou desconfiada. Parte dela queria recuar, morder a resposta e seguir ignorando como sempre fazia.

    Mas havia algo na voz dele… algo que não parecia falso.

    — Eu caí… no banheiro — disse, baixo, com o olhar voltado para a mesa.

    — Sério? Você se machucou?

    Ela balançou a cabeça.

    — Não, eu só… tropecei e caí.

    Ele assentiu com um gesto leve e voltou o olhar para frente, respeitando o silêncio dela. Isso surpreendeu Isabel. Quase ninguém fazia isso, sempre davam um jeito de continuar puxando, forçando, zombando. Mas ele não.

    Durante o resto da aula, vez ou outra ela notava o olhar dele voltando. Rápido e discreto. Um olhar que não pedia nada, só acompanhava.

    Na segunda aula, a professora propôs uma leitura em duplas. Isabel encolheu-se automaticamente na cadeira, certa de que ninguém a escolheria. Como sempre. Já estava pronta para fazer sozinha, mas um dia normal no ensino médio. Mas então:

    — Quer fazer comigo? — o garoto ao lado perguntou, com um sorriso leve.

    Ela piscou, confusa.

    — Você… quer?

    — Por que não?

    — É que… ninguém nunca… — ela parou, sentindo-se idiota.

    — Eu nunca entendi isso — comentou, enquanto arrastava a cadeira e a mesa para mais perto. — Você parece legal. Só quieta. Eu gosto disso.

    Ele sorriu de leve. — Aliás, me chamo Davi.

    Ela sentiu as bochechas esquentarem.

    — Isabel — disse, envergonhada. Não estava acostumada com uma conversa tão casual.

    Durante a leitura, Davi dividiu o livro entre os dois. Era um conto antigo, sobre um garoto que tinha uma caixa que guardava todos os sentimentos que ele não conseguia lidar. A cada vez que colocava algo ali dentro, tristeza, raiva e até alegria, a caixa ficava mais pesada.

    — Você já fez isso? — Davi perguntou, de repente.

    Isabel virou o rosto, confusa.

    — Fez o quê?

    — Guardar coisas demais. Fingir que tá tudo bem só pra não incomodar ninguém.

    Ela ficou em silêncio por um segundo. Depois, olhou para o parágrafo que ele estava lendo.

    — O tempo todo — sussurrou. — Às vezes parece que, se eu falar qualquer coisa… a caixa explode.

    Davi assentiu devagar. A expressão não era de pena, era de alguém que realmente entendia.

    — A minha quase explodiu mês passado — ele disse, com um meio sorriso sem graça. — Aí eu comecei a escrever. Não resolveu tudo, mas… aliviou um pouco. Fez o peso ficar mais leve, sabe?

    Isabel mordeu o canto do lábio. Quis dizer algo, mas só conseguiu sussurrar:

    — Eu não escrevo nada.

    — Tudo bem. Às vezes, só pensar já cansa. Ele deu de ombros, olhando para ela com calma. — Mas se um dia você quiser conversar… ou escrever…

    A frase ficou no ar, sem pressão. Apenas uma possibilidade deixada aberta.

    E, pela primeira vez em muito tempo, Isabel sentiu a vontade de aceitar.

    A aula passou mais rápido do que de costume. Pela primeira vez, ela não estava presa apenas ao relógio, esperando o minuto de sair correndo. Ela queria… ficar. Um pouco mais.

    No intervalo, Davi não insistiu em ficar junto, apenas deu um tchau discreto com a mão e foi para o pátio. Isabel ficou observando de longe. Sentou num banco afastado, onde ninguém a via direito, e ficou só… existindo. O peito ainda pesado, mas com um estranho fio de leveza costurado entre os sentimentos.

    Por alguns minutos, deixou a mente vagar.

    Mas então, a lembrança voltou com força: o barulho da pia estourando, os cacos no chão, o espelho rachado… a vibração estranha que percorreu o corpo dela como se algo tivesse mudado por dentro.

    Franziu a testa, olhando para as próprias mãos de novo, sem corte e nenhum arranhão. Só aquela sensação quente, adormecida sob a pele. Como se algo estivesse esperando para acontecer de novo.

    Ela se perguntou: “e se o mármore já estivesse trincado antes?” Talvez ela só tenha se assustado à toa. Talvez tenha sido só uma coincidência.

    Mas… não era isso que seu corpo dizia. Ela sentiu. Algo mudou.

    E mais estranho ainda, por que não sentiu dor?

    “Se tivesse me machucado, eu teria sentido… né?” pensou, com as mãos agora apoiadas no colo, apertando o tecido do moletom.

    Um pensamento atravessou sua mente, tão absurdo que ela quase riu sozinha: “e se eu tiver poderes?”

    O peito apertou de novo. Ela não queria enlouquecer. Não queria ser diferente, não desse jeito. Mas algo estava errado. Ou talvez, finalmente, algo estivesse começando a fazer sentido.

    Mesmo que ela ainda não entendesse o quê.

    A última aula foi matemática. Difícil manter a cabeça na lousa depois de tudo. Mas Davi não tentou falar de novo. Só mandou um bilhete:

     “Espero que seu dia termine melhor do que começou. :)”

    Isabel sorriu. Dobrou o papel com cuidado e guardou no bolso interno do moletom.

    Então veio o sinal de saída. A multidão se levantando, esbarrando, rindo, correndo pelos corredores. Isabel esperou a sala esvaziar um pouco antes de pegar a mochila.

    Ao passar pela porta, viu Davi encostado na parede do lado de fora.

    — Ei — ele chamou, dando um passo na frente. — Tá indo pra casa?

    — Tô… — ela respondeu, mais tímida do que queria.

    — Posso te acompanhar até o portão?

    Ela hesitou por um momento. Mas assentiu.

    Caminharam lado a lado pelo corredor, sem muita pressa. Ninguém gritando, ninguém jogando coisas nela. Um momento raro.

    — Posso te perguntar uma coisa? — ele disse, quando estavam quase chegando ao portão.

    — Pode…

    — Por que você nunca fala com ninguém? Quer dizer… você parece boa em conversar. Só parece… se esconder.

    Isabel respirou fundo.

    — Porque é mais fácil. Se ninguém te vê, ninguém pode te machucar.

    Davi ficou em silêncio por alguns passos. O portão da escola já estava à frente. Os últimos alunos saíam apressados, alheios à conversa.

    — Eu entendo — ele disse, parando. — Mas… mesmo se você não quiser ser vista por todo mundo… espero que não se incomode se eu continuar te vendo.

    Isabel ficou parada. O vento soprou leve, balançando seus cabelos.

    — E tem mais uma coisa — ele completou, rindo nervoso. — Eu sei que isso parece meio do nada, mas… eu gosto de você. Tipo, de verdade.

    Ela parou. Sentiu o coração tropeçar dentro do peito.

    — O quê?

    — Desde o ano passado. Eu só não sabia como falar. Mas depois de hoje… não queria mais esconder.

    Isabel ficou muda. O calor subiu pelas bochechas, as mãos começaram a suar. Ela tentou dizer algo, mas a garganta travou.

    Ela sorriu.

    Um sorriso pequeno, tímido… mas real.

    Como se, por um segundo, o mundo tivesse feito sentido.

    Só que segundos não duram para sempre.

    E a felicidade… também não.

    Atrás deles, uma gargalhada familiar ecoou. Isabel se virou, e ali estavam elas — Letícia e as outras duas. Gravando com o celular.

    — Ai, que fofooo — zombou Letícia. — A coitadinha agora tem um namoradinho? Isso vai render na escola inteira!

    Isabel sentiu o chão sumir sob seus pés. O calor no peito virou gelo. Ela olhou para o Davi, ele parecia tão surpreso quanto ela.

    Sem pensar, correu.

    Passou por todos, ignorando os gritos atrás dela. As lágrimas voltaram com força. 

    Não queria ouvir.

    Não queria ver. 

    Não queria mais estar ali.

    Saiu do portão da escola sem olhar para os lados. Só queria fugir. Fugir de tudo. Fugir dela mesma.

    — ISABEL! — Davi gritou, atrás dela.

    Foi quando uma buzina soou, alta e próxima.

    E a visão de Isabel escureceu…

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