Capítulo 3 - O que não quebra.
Escuridão.
Mas não a de um sono comum, e sim um silêncio fundo, como se o mundo estivesse em pausa. Isabel sentia-se presa nesse espaço entre o tudo e o nada. Sem dor, sem som, sem tempo.
Até que uma sensação quente, quase reconfortante, percorreu seu peito. Como se algo lá dentro… tivesse protegido ela inteira.
O som agudo do monitor cardíaco foi a primeira coisa que Isabel ouviu quando abriu os olhos. A claridade das lâmpadas fluorescentes a fez piscar algumas vezes, tentando entender onde estava. O teto branco, o cheiro de álcool, os lençois ásperos contra sua pele… Um hospital.
— Você acordou… — disse uma voz aliviada ao lado dela.
Virando o rosto devagar, Isabel viu Davi sentado em uma cadeira desconfortável, com os olhos marejados e um sorriso pequeno e nervoso nos lábios. Ele estava com as mesmas roupas da escola, amassadas e o cabelo bagunçado.
— Davi…? — ela murmurou, a garganta seca.
— Sou eu — ele assentiu, inclinando-se um pouco. — Você… você tá bem? Quer dizer… — ele soltou uma risada sem graça — isso é estranho de perguntar depois do que aconteceu.
Ela piscou, confusa.
— O que aconteceu?
Davi hesitou. Engoliu seco e olhou para a porta, como se não quisesse falar.
— Você… foi atropelada por um caminhão. Bem na frente da escola, você saiu correndo e… foi tudo muito rápido. Eu vi tudo, eu queria te ajudar. — Ele fez uma pausa longa, os olhos se enchendo de novo. — Achei que você tivesse… morrido, Isa.
Ela levou a mão ao peito, como se quisesse comprovar que ainda estava inteira. E estava. Nenhuma dor, nenhum arranhão, nenhum osso quebrado.
— Mas eu tô… bem?
Davi riu, nervoso.
— Bem? você não tem nem um roxo. Os médicos tão achando que foi erro de diagnóstico. Falaram que talvez o caminhão tenha freado a tempo, ou que te jogou pra longe sem impacto direto. Mas eu vi. Eu juro que vi. Ele te acertou em cheio, você foi arremessada.
Isabel se calou. O coração acelerou, mas não de medo mas sim de estranheza. Aquilo não fazia sentido.
— Eu só… apaguei — murmurou ela, mais para ela mesma do que para ele.
— Sim, você desmaiou na hora. Mas, felizmente, não teve nenhum ferimento — respondeu com a voz serena.
— Quanto tempo eu fiquei inconsciente?
— Acho que três horas.
Isabel franziu levemente a testa, tentando juntar as peças soltas na própria mente. Depois de um instante, murmurou:
— Minha mãe… ela não veio, né?
Davi hesitou por um segundo — Não. Assim que tudo aconteceu, fui eu quem ligou pra ambulância e vim com você. O hospital avisou ela depois.
Isabel encarou o teto, os olhos vidrados. Uma pontada fria cresceu no peito.
Devagar, virou o rosto na direção dele. Os olhos de Davi estavam cansados, mas presentes. Firmes. Reais.
Ele respirou fundo, fez uma pausa, e disse com suavidade:
— Mas agora não precisa pensar nisso. Só… respira. Se dá um tempo. Você é importante, sabe?
Ele sorriu, com uma gentileza que aquecia mais do que qualquer palavra.
Isabel sentiu o rosto esquentar. Olhou para as mãos. Sem nenhum arranhão.
— Você é diferente, Davi.
— Eu? — ele riu, de leve. — Você que sobrevive a um caminhão. Eu só… fico aqui, nervoso e tentando parecer calmo.
— Mesmo assim, obrigada — ela disse, sincera. — Por ficar.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, a porta do quarto se abriu com força.
— Isabel. — A voz firme e seca da mãe ecoou pelo quarto.
A mulher caminhou até a filha com passos decididos. Não havia lágrimas nos olhos, nem desespero. Apenas um cansaço misturado com algo difícil de identificar. Ela analisou a filha com um olhar clínico, quase impessoal.
— Levanta. Você tá bem, não tá? — perguntou, mas não como quem duvida. Era como se já soubesse a resposta.
— Sim… eu tô bem. — Isabel respondeu.
— Ótimo. Vamos pra casa.
Isabel olhou para ela, hesitante.
— Você… — sua voz saiu quase num sussurro — …você não liga, né?
A mulher desviou os olhos para o Davi por um segundo, talvez incomodada por ele ainda estar ali, e então voltou a encarar a filha. O olhar era duro, frio, como sempre.
— A gente resolve isso em casa.
Isabel apenas assentiu. Não havia gritos. Não havia consolo. Só aquele silêncio pesado que sempre vinha antes da tempestade.
— Ah… — Davi se levantou, meio desconcertado. — Eu… é melhor eu ir também.
Isabel olhou para ele com urgência.
— Espera. Obrigada por ter me ajudado! E por ter ficado aqui comigo.
— Eu não ia conseguir ir embora sem saber se você tava bem. — Ele sorriu, sem jeito.
Ela sorriu, emocionada, mesmo com o coração com uma mistura de sentimentos.
— Obrigada, Davi.
Ele hesitou por um segundo, como se estivesse pensando se deveria ou não fazer aquilo. Então enfiou a mão no bolso, pegou um papel amassado e estendeu para Isabel, quase com pressa.
— Aqui… esse é meu número.
Ele baixou um pouco o tom, a voz sincera.
— Me manda mensagem depois, tá? Só quero ter certeza de que você tá bem. De verdade.
Ela pegou o número e assentiu.
— Pode deixar.
Davi se virou para sair, seus olhos então se moveram para a mãe dela, que permanecia parada na sala, braços cruzados, olhar vazio. Não disse nada. Nem um aceno, nem um agradecimento. Só aquela parede gelada de silêncio.
Davi baixou os olhos, apertou os lábios e saiu.
Isabel continuou olhando em direção à porta por mais tempo do que deveria. O número dele ainda estava amassado em sua mão fechada. Era pequeno, mas pesava como se carregasse algo importante. Algo que ela não sabia se merecia.
Ao lado dela, a voz da mãe cortou o ar como uma lâmina.
— Vamos.
Fria e curta.
Isabel não respondeu. Só levantou devagar, como se nada tivesse acontecido com seu corpo. O papel ainda estava lá, escondido entre os dedos. E por um instante, mesmo sem entender por quê, ela sentiu que precisava guardá-lo como se fosse a última coisa que a conectava com o mundo fora dali.
Naquela noite, em casa, Isabel permaneceu em silêncio. E sua mãe também. Nenhuma palavra foi dita durante todo o trajeto do hospital até a pequena casa onde moravam. Mas o silêncio entre elas era barulhento. Duro. Dolorido.
Assim que trancaram a porta, a mãe finalmente se virou.
— Que ideia foi aquela, Isabel?
— Eu… só queria fugir. Eu não prestei atenção em nada.
— Fugir? — A voz dela tremeu, contida, como se estivesse segurando algo maior. — E se você tivesse morrido?
— Mas eu não morri.
— Esse é o problema! — A mãe deixou escapar, num tom quase de raiva, mas não olhou para ela. Passou a mão pelos cabelos, nervosa. — Você foi atropelada por um caminhão, Isabel! Acha que isso é normal?
Isabel franziu o cenho, confusa.
— O que você quer dizer com isso?
A mulher suspirou fundo, caminhou até a cozinha e abriu a torneira, enchendo um copo d’água como se precisasse de tempo.
— Só… não repita isso. Nunca mais. Nem por um segundo.
— Você sabe o que tá acontecendo comigo, não sabe?
Ela parou por um instante. De costas. O copo ainda nas mãos.
— Nunca mais me pergunte qualquer coisa sobre esse assunto. Você me entendeu?
O tom era frio. Controlado. Como se, a qualquer momento, algo dentro dela pudesse desmoronar.
— Entendeu?!
— Entendi…
— Ótimo.
Isabel permaneceu parada por um instante. Os olhos fixos nas costas da mãe. Havia mil perguntas na garganta, mas nenhuma coragem para soltá-las.
Virou-se em silêncio e foi em direção ao quarto, sentindo o peso de algo que não sabia nomear.
Mas uma coisa ela sentia com certeza.
Sua mãe sabia de alguma coisa.
E não queria que ela soubesse.
Mas teve uma idéia…
Assim que anoiteceu, Isabel saiu de casa pela porta dos fundos, um pouco depois da meia-noite. O céu estava limpo, e a rua, vazia. Descalça, caminhou até a calçada onde havia uma velha caçamba de entulho, enferrujada, esquecida por alguma obra que nunca foi terminada.
Parou diante dela e ficou apenas olhando. O metal sujo refletia a luz pálida dos postes, e o cheiro de poeira e ferrugem enchia o ar. Não havia nenhum motivo real para estar ali. Mas ainda assim… algo dentro dela pulsava, impaciente.
Sentia o corpo leve, elétrico, como se o sangue tivesse sido substituído por alguma coisa mais viva, mais intensa. Seu coração batia rápido. Não por medo. Mas por algo que ela ainda não sabia nomear.
Levantou o punho e encostou de leve na lateral da caçamba, apenas para sentir o frio do metal.
Então, quase sem pensar, deu um soco fraco. Só para testar.
Nada aconteceu.
Fechou os olhos por um segundo. Inspirou fundo. Aquilo parecia ridículo.
Mas então veio o impulso, aquele desejo estranho e urgente que crescia no peito desde aquela manhã. Como se o mundo estivesse esperando.
Ela travou os dedos, firmou os pés no chão e desferiu um segundo soco, agora com força.
Um som seco. A lata vibrou.
O punho dela afundou o metal como se fosse papel. A lateral da caçamba se deformou com um estrondo metálico, e o impacto foi tão violento que o próprio contêiner deslizou alguns centímetros para trás, raspando no asfalto e deixando um rastro de poeira no chão.
Isabel deu um passo atrás, ofegante. Olhou para o próprio punho: intacto, nenhum arranhão.
Olhou ao redor. Nada além de silêncio e nenhuma testemunha. Só ela e o eco daquele estrondo ainda pairando no ar.
O peito subia e descia, acelerado. Os dedos tremiam. Mas não era de medo.
Era… poder.
Uma onda quente percorreu sua espinha. Pela primeira vez na vida, ela se sentia viva. De verdade. Como se até aquele momento tivesse estado adormecida.
— O que foi isso…? — murmurou para si mesma, quase rindo.
Ela já sabia a resposta.
Alguma coisa dentro dela tinha mudado.
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