Capítulo 4 - Se eu cair, tudo bem.
O despertador tocou.
Pela primeira vez em semanas Isabel não apertou o botão de soneca.
Abriu os olhos devagar, encarando o teto branco do quarto. Ainda era cedo, o sol nem tinha começado a entrar pelas frestas da cortina, mas havia algo diferente no ar. Dentro dela. Uma espécie de firmeza estranha, como se o mundo tivesse mudado de posição durante a noite.
Ou fosse ela que tivesse mudado.
Sentou-se na cama e disse para si mesma:
— Hoje vai ser diferente.
Foi até o espelho e encarou a própria imagem. As olheiras ainda estavam lá, os cabelos ainda bagunçados. Mas havia algo nos olhos. Um brilho discreto. Uma centelha de algo que ela não sabia explicar, mas sentia no todo o corpo. Poder.
Vestiu um moletom com calma, arrumouu o cabelo e desceu para a cozinha. A casa estava silenciosa como sempre. A mãe dela não estava. Provavelmente já havia saído para o trabalho. Ou simplesmente decidiu não estar ali. Não fazia diferença.
Comeu um pedaço de pão seco, bebeu um gole de água e saiu de casa, segurando a mochila que agora parecia muito mais leve do que era antes.
O céu estava limpo. O ar fresco da manhã batia no rosto e, por um segundo, Isabel se sentiu livre. Como se pudesse correr até o fim da rua e não parar nunca mais. Mas, claro, não fez isso.
Ainda era ela. Em parte.
Ao chegar na escola, notou os olhares.
Alguns curiosos. Outros, debochados. A maioria, apenas indiferente.
O portão pareceu mais pesado do que nunca, mas ela respirou fundo e entrou. Sentia cada passo como uma batalha em silêncio, mas não recuou.
No corredor, escutou risos antes mesmo de ver de onde vinham.
— Olha quem voltou do além. — disse uma voz feminina, aguda e cheia de veneno.
Isabel continuou andando, sem olhar.
— Ela deve ter se machucado. Quem levanta ilesa depois de ser atropelada por um caminhão?
— Vai ver é robô e ninguém sabe. — outro zombou.
As risadas se espalharam, como um rio.
Ela apertou os punhos, sentindo as unhas contra a palma da mão. O mesmo impulso de ontem voltou, o desejo de reagir, de esmagar o metal do mundo em resposta. Mas se conteve. Ainda não era hora.
Chegou na sala, que já estava um caos de vozes e risadas, e foi direto até sua carteira. Largou os livros com um baque firme e abriu a apostila. O estalo seco do plástico ressoou mais alto do que ela esperava, chamando atenção por um segundo.
Foi então que ouviu a voz dele, leve e familiar.
— Você tá diferente hoje.
Ela virou o rosto devagar. Davi estava ali, meio jogado na cadeira ao lado, com a mochila pendurada só por uma alça e aquele sorriso torto que ela já começava a reconhecer como típico dele.
— Diferente como? — perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— Sei lá… — ele coçou a nuca, meio sem jeito. — Não sei explicar direito. Mas você tá… com outra vibe. Mais… Energética e animada, talvez?
Ela soltou um riso breve, quase sem querer.
— Antes eu parecia o quê, um zumbi?
— Não! — ele riu também, balançando a cabeça. — Quer dizer… não assim. É que hoje você tá mais presente. Parece até que você mudou.
Ela olhou pra ele por um segundo, em silêncio, como se as palavras tivessem encostado em algo mais fundo do que ele imaginava.
— Talvez — murmurou, sem sorrir dessa vez, mas sem tristeza na voz.
Davi a observou com atenção, como se quisesse entender mais, mas resolveu respeitar o silêncio.
— Bom… só queria dizer que foi bom ver você assim. — E deu um leve tapa na própria coxa antes de se recostar na cadeira, como se encerrasse o assunto, mas com um sorriso discreto nos lábios.
A primeira aula passou devagar, e mesmo tentando se concentrar, Isabel sentia o corpo inquieto. A cadeira parecia apertada, os movimentos das pessoas ao redor, lentos demais. Tudo parecia mais nítido, mais intenso. Era como se os sentidos tivessem sido ligados de um jeito novo.
O intervalo finalmente chegou.
Isabel saiu da sala sem dizer nada, ignorando os olhares e sorrisos abafados. O sol batia forte no pátio, mas ela buscou o canto mais afastado, sob uma árvore quase esquecida nos fundos da escola.
Sentou-se no banco de concreto e soltou um suspiro longo. O mundo parecia mais barulhento do que o normal. Mas dentro dela… havia silêncio.
Ela só queria ficar ali. Só por alguns minutos.
Mas a paz não durou.
— Tem um ditado ótimo, sabia? — disse uma voz aguda. — Coisa ruim não morre fácil.
Isabel ergueu os olhos devagar.
Letícia estava ali com duas amigas. As três riam, como se tivessem acabado de ouvir a melhor piada do mundo.
— E olha só — Letícia continuou, cruzando os braços — Você tá vivinha da silva. Que milagre.
— Deve ter sete vidas igual a um gato — disse uma das amigas, zombando.
— Ou uma barata — completou a outra.
As três gargalharam, como se tivessem ensaiado o número. Isabel apenas as encarou. Não disse nada. Não precisava.
Mas Letícia se incomodou com o silêncio.
Deu um passo à frente. A expressão já não era só de deboche tinha algo mais fundo, algo quase raivoso.
— Tá se achando agora, é? Depois de dar um showzinho na escola toda? — Ela inclinou a cabeça, os olhos duros. — Fala alguma coisa. Vai ficar muda é?
Nada.
O sorriso de Letícia desapareceu. Em um movimento rápido, ela ergueu a mão, e o tapa veio.
Mas Isabel viu.
Ela viu antes de acontecer. Tudo parecia mais lento. O braço vindo… o movimento… o deslocamento do ar.
E antes que a mão de Letícia encostasse em seu rosto, Isabel já tinha reagido.
Sua mão se fechou em torno do pulso da Letícia.
Firme.
Letícia arregalou os olhos, surpresa.
— Me solta. — disse, puxando o braço.
Mas Isabel permaneceu em silêncio e só se levantou de onde estava.
— Solta, sua louca! — tentou de novo, mas nada acontecia.
As amigas estavam paradas, chocadas.
— O que… o que é isso? — murmurou uma delas.
Num movimento desesperado, Letícia levantou a perna e desferiu um chute direto no abdômen de Isabel.
Acertou.
Mas Isabel… não sentiu nada.
Nenhuma dor. Nenhum impacto real. Só o som abafado do tênis contra o corpo. Como se fosse um golpe contra uma parede.
Ela olhou para Letícia.
E por um instante, algo dentro dela escureceu.
O braço ainda preso. A raiva cresceu.
Se lembrava do soco na caçamba de lixo. Do barulho metálico. Da força que não fazia sentido. Do calor nos dedos. Do impulso.
Seu punho se fechou, devagar, levantando seu braço…
Ela ia socar.
Ia mostrar, por todo esse tempo que sofreu…
— ISABEL! — a voz cortou o ar como uma lâmina.
Ela piscou.
Davi estava ali, entre elas. Tinha surgido do nada, o rosto tenso, o peito ofegante.
— Solta ela. Agora.
Isabel hesitou por um segundo. O mundo pareceu voltar ao normal, o som, o ambiente e o peso do momento.
Acabou soltando Letícia, que caiu de leve para trás, tropeçando um pouco. Levantou o braço, ofegante. Um roxo começava a se formar onde Isabel a segurou.
— Você… você tá maluca porra! — gritou. — Olha isso! Olha o que essa vagabunda fez!
— Vai embora, Letícia. — disse Davi, encarando-a. — Antes que a escola toda veja o resultado da sua gracinha.
Letícia tremeu, os olhos ainda cheios de medo. As amigas a puxaram, e as três se afastaram, olhando para trás mais vezes do que deviam.
Isabel ficou parada, o coração martelando.
Davi se virou para ela, a expressão suavizando.
— Tá tudo bem? — perguntou, com a voz mais baixa agora. — Elas te machucaram?
Ela respirou fundo. Os olhos ainda estavam fixos onde a Letícia estava.
— Não… não me machucaram.
Davi assentiu devagar, aliviado. Não perguntou mais nada.
Sentou ao lado dela no banco. Silêncio.
Davi assentiu devagar. Não perguntou mais nada. Ela abraçou os próprios joelhos, a respiração ainda um pouco trêmula. Davi olhou para frente, depois de novo para ela.
— Você… quer falar sobre isso?
Isabel hesitou, depois balançou a cabeça, quase imperceptivelmente.
— Não agora.
— Tudo bem. Tô aqui, tá?
Ela soltou um pequeno suspiro, sem encará-lo diretamente, mas parecia aceitar a presença dele. Como se aquele silêncio entre os dois fosse… seguro.
O sinal tocou, agudo e abrupto, quebrando o momento. Isabel se encolheu levemente com o som.
— Vamos? — Davi perguntou, se levantando.
Ela assentiu, se erguendo devagar. Os dois seguiram pelo corredor lado a lado, sem pressa. Sem dizer mais nada. Mas Isabel não se sentia sozinha.
À tarde, ao chegar em casa, sua mãe não estava. Andou até o quarto e, antes mesmo de sentar na cama, foi até o seu guarda roupa e pegou o papel que Davi tinha entregado no hospital.
Leu o número.
Respirou fundo. Os dedos hesitavam sobre a tela do celular. Abriu o aplicativo de mensagens e adicionou o contato.
Depois de alguns segundos, escreveu:
“Oi… Davi, Aqui é a Isabel. Eu te adicionei agora.”
Quase apagou.
Depois de mais uns segundos de dúvida, apertou “enviar”.
A resposta veio pouco tempo depois, junto de um emoji de alívio:
“Isa! Que bom que mandou mensagem. Tava torcendo pra você fazer isso.”
Ela sorriu de leve. Os dedos demoraram mais um pouco pra digitar de novo.
“Eu só queria dizer que… tô bem. De verdade.”
“Me deixa feliz saber disso. Eu fiquei um pouco preocupado.”
“Desculpa…”
“Ei, não precisa pedir desculpa por nada. Só queria que soubesse que tô aqui.”
Ela demorou um tempo para continuar. O celular ficou apoiado no peito por alguns minutos. As palavras dele giravam na cabeça.
Então ele mandou mais uma:
“E, de verdade… você é incrível.”
Isabel travou.
A palavra “incrível” parecia grande demais pra caber nela. Mas, estranhamente… não soava errada. Era como se ela quisesse muito acreditar naquilo. Como se, mesmo sem entender tudo o que estava acontecendo, houvesse uma parte dentro dela tentando nascer. Algo novo. Algo forte.
E talvez… essa fosse a primeira vez que alguém via isso nela.
Deitou-se por um instante na cama, olhando para o teto. O mundo lá fora continuava barulhento, complicado, injusto. Mas algo dentro dela estava mudando.
Será que era isso que pessoas “incríveis” faziam?
Ela apertou o celular contra o peito e deixou escapar um pensamento em voz baixa:
— Será que… eu devia usar isso? Pra ajudar? Tipo… um herói?
O pensamento parecia meio bobo. Mas não saía da cabeça.
Porque agora… ela podia.
Mais tarde, quando o céu já começava a escurecer, saiu de novo. Dessa vez, com um propósito.
Foi até o terreno baldio nos fundos da rua, onde a terra era seca, rachada, e os galhos retorcidos lançavam sombras finas no chão. Ninguém passava por ali àquela hora. Apenas o som do vento, assobiando por entre as folhas secas, acompanhava seus passos.
Isabel caminhava como se cada passo fosse necessário para manter o controle, como se uma força nova, estranha, pulsasse dentro do peito, pedindo para sair.
Parou diante de um tronco grosso, caído entre pedras e raízes. Parecia pesado, abandonado ali há anos. Ela se aproximou devagar, como quem encara um desafio.
Agachou-se.
Passou a mão pela madeira fria e áspera, sentindo as farpas sob a ponta dos dedos.
Inspirou.
E, com um só movimento, ergueu o tronco acima da cabeça.
Sem esforço.
O silêncio ao redor pareceu mais denso por um segundo.
Então Isabel sorriu. Um sorriso curto, surpreso, quase infantil, como quem se deu conta de algo impossível.
— Eu tô ficando forte mesmo…
Deixou o tronco cair ao lado, levantando poeira, e olhou ao redor. Seus olhos pousaram num muro baixo, que separava o terreno de uma construção.
Ela escalou e subiu.
No alto, sentiu o vento mais gelado no rosto. Olhou para baixo. Era alto, não demais, mas o suficiente para dar medo e machucar alguém se caísse.
Ficou ali por alguns segundos. Silenciosa.
Olhando o chão.
— E se…?
A ideia era absurda. Mas não saía da cabeça.
“Será que… eu posso voar?”
Ela soltou um riso nervoso. Um daqueles risos que vêm junto com um aperto no estômago.
— Que ideia idiota…
Mas não desceu. Ao invés disso, respirou fundo e fechou os olhos.
“Se eu pular… será que vou me machucar? Não devia. Eu sou diferente agora, né? Forte. Resistente…”
Abriu os olhos.
O coração batia rápido. As mãos suavam.
Deu um passo à frente.
E pulou.
O vento soprou contra o rosto, forte. Por um instante, quase acreditou. Quase sentiu. Como se o mundo tivesse parado. Como se algo estivesse prestes a acontecer.
Mas a gravidade veio. Rápida e inquestionável.
Ela caiu no chão com um baque seco, os pés afundando levemente na terra fofa. Os joelhos dobraram. O corpo ficou parado.
Silêncio.
Isabel abriu os olhos, esperando dor.
Mas… não havia nada. Nem arranhões. Nem hematomas.
— Eu tô… bem?
Se olhou de cima a baixo, depois tocou a própria perna, como quem testa se aquilo é mesmo real.
E sorriu.
Dessa vez, foi um sorriso sincero. Cheio de alívio e espanto ao mesmo tempo.
— Ok. Não dá pra voar… ainda. — murmurou.
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