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    “Naquele final de tarde, condenou sua alma a se dividir.”

    Izandi, a Oniromante


    Observando; guardando a princesa sentada à mesa poucos passos de distância, Cei Bert percebia que ela não se decidia se dava mais atenção para os garranchos nas folhas de papel e nos livros ou para detrás do ombro. Seus ombros delicados e pescoço delgado estavam à mostra pelo longo e decotado vestido das cores da primavera, com as costas bem cobertas pelos cabelos tricolores bem penteados, e os olhos tinham uma luz suave que fazia um sorriso surgir no canto da boca do homem.

    — Cei Zwaarkind — ela sussurrou, pois estavam na biblioteca. Apesar de que quase sozinhos, senão pelo velho bibliotecário que dormia apoiado no braço de uma cadeira de carvalho. Ela exibiu suas duas tranças com um movimento exagerado do pescoço, enquanto tamborilava sobre seus garranchos com a mão direita.

    A forma indiferente como o chamou deixou o Bert irritado.

    Por isso, fez questão de aproximar vagarosamente sua cabeça por trás do ombro dela, quase tão branco quanto o resto da pele. Desta vez, nenhum toucado com longos véus de seda ocultavam as cores do seu cabelo ou protegiam o pescoço.

    — Por favor, fale, minha princesa — falou, perigosamente perto, com o pescoço inclinado e olhos quase encostados nos dela.

    — …Aqui… — Sua voz entrava mais do que saia. — Olhe para o maldito mapa!

    Bert arregalou os olhos.

    — Não sabia que conseguia xingar, princesa — zombou, com as sobrancelhas arqueadas.

    — No entanto, eu já que tu conseguias ser irrisoriamente sem graça! — Fez um muxoxo, fechando os olhos.

    — Ah, mais uma palavra que não conheço. — Tocou em uma das tranças dela, que era mais vermelha do que loira e castanha, moveu para frente do seu rosto e beijou na ponta dos cabelos. — Por favor, traduza.

    — …Significa… que você não é engraçado — cruzou os braços. Bert quase não conseguia conter a vontade de rir sem nenhum controle. Ela estava vermelha, totalmente vermelha!

    Nem parecia que tinha o rejeitado. “A primeira mulher que me rejeita”, pensou ele “ me olha como se eu fosse um monstro. Ser bonito é realmente uma graça, não?”

    — Hoje, descubro mais uma irritante faceta da vossa personalidade degenerada — falou ela.

    — Espera, isso é um mapa?

    — E o que mais seria?! — Deu uma leve batida na mesa; mal conseguiu desviar o olhar do homem que beijava sua trança esquerda. “Ameaça!”, gritou ela consigo, mordendo o meio dos lábios. O idiota rapaz bonito à sua frente estava quase rindo enquanto ela agonizava de constrangimento! — É um mapa! Não consegue perceber nem isso?

    — Se serve de consolo, olhando de longe deve parecer… — mentiu. A ele, parecia um monte de garranchos meio retos com uma dúzia de anotações em letras pequenas e quase igualmente ilegíveis.

    Bert deixou a madeixa tricolor e se apoiou na mesa, fingindo prestar atenção no pequeno mata desenhado sobre uma folha de couro de ovelha. Apontou para um lugar aleatório, piscou com um sorriso para a princesa e perguntou:

    — Isso aqui é onde, então?

    — É o salão central debaixo das cavernas — sussurrou. Na sua voz, um tom de segredo lhe dizia para abaixar o tom de voz. Bert o fez, mas também aproximou o rosto. — …Era… onde… Meevel deveria dormir…

    “De novo ela falou o nome de um dragão-real pra um qualquer”, zombou Bert. “Mulher maluca.”

    Salile suspirou, fechando os olhos e lançando olhos sérios em direção de Bert. O rapaz sentiu um arrepio eriçar os pelos no seus braços. No entanto, logo ela exibiu um rosto sutilmente cansado e triste. Não conseguiu se conter. Aqueles olhos meio turvos fizeram seu peito gritar.

    — Desculpa — ele falou, soltando os lábios dela.

    — …Está perdoado — sussurrou ela, avermelhada como um rubi. “Graças aos Deuses”, pensou ela, olhando para o dorminhoco bibliotecário. — Só… não faça isso de novo…

    — Aqui? — sussurrou.

    — Em qualquer lugar — ela respondeu. Com graça, ela erigiu sua postura e fez um movimento para empurrar a cadeira para trás. Bert entregou seu braço para servir de apoio, um não aceito. — Me fez esquecer o que queria te mostrar — murmurou, olhando os punhos cerrados.

    — É um talento meu — riu. Bert ajustou a capa amarrada à brigantina ornamentada de vermelho e traços dourados, recheada com camadas de cota de malha, então deu passos calmos e vagarosos ao lado da donzela que acelerava seu coração. “Estou cheio de desejo por ela”, refletiu “, e é a primeira vez que não é mútuo. Ou ao menos ela diz.” Fitou o ombro desnudo; a primeira vez que utilizava um vestido com tanta pele, sem gola ou mangas longas.

    “Aquele beijo foi mútuo, sim, e todos os outros também.”

    A princesa dava passos resolutos, que emitiam pequenos ecos abafados pela chuva primaveril que molhava o piso. Os servos dispersavam-se pelo corredor, alguns para fechar as janelas, outros, para continuar a grande organização dentro do castelo. O príncipe regente ordenava mudanças estranhas, tinha ouvido de Betha.

    Queria os quartos em locais mais afastados das entradas, e agora pedreiros entravam e saíam disparados pelo castelo. Queria janelas reforçadas e veletetos mais funcionais, e agora artífices ocupavam o meio dos corredores com suas escadas.

    Queria mais medistas também.

    “Ah”, suspirou Bert na sua mente. “Entendi pra onde ela vai.”

    O marfim imaculado ainda tinha tons de vermelho rubi queimando nas bochechas, que diminuíam e aumentava toda vez que subiam um lance de escada, abafados passos pela água escorrendo. As luzes de uma alcova com janelas brilhantes na parte plana de uma das escadarias quase foram apagadas quando um trovão cruzou os céus. Princesa Silale adentrou a alcova — Bert viu os símbolos dos deuses sendo molhados pela chuva.

    Pondo-se à frente, fechou-as antes que Silale tentasse.

    — Está forte, não acha?

    Ela emitiu um alto suspiro, perdendo a postura. Seus olhos estavam caídos, quase encostando o chão.

    Bert tomou suas mãos e as levantou.

    — Como consegue estar tão alegre?

    “Boa pergunta.”

    — Tenho esperanças?

    “Porque quero que essa guerra comece e o Lobo Branco venha até mim.”

    A princesa exibiu um sorriso no canto dos lábios.

    — Acha mesmo que o senhor meu pai melhorará? — questionou. Bert viu olhos tão sinceros brilhando que mal notou o branco das escleras e o negro do cansaço sombreando o rosto lindo que tanto desejava agora.

    — Acho sim — mentiu. “Aquele velho deveria estar morto há meia década”, falou em silêncio. Uma mentira foi sua resposta à dúvida da mulher quase sem curvas, mas que o revelador vestido o fazia morder os lábios. Uma pequena mentira… — Me disseram que ele tem uma saúde de aço, não? Quebrar aço não é fácil.

    “Mas não é impossível”, ela pensou, mais calma e duas vezes mais triste. Meneou a cabeça. “Pensar no pior não o deixará saudável.” Com um gesto do braço e o rosto caído sobre outra direção, aceitou o braço do cavaleiro, e finalmente andaram pelas escadarias que restavam, até chegarem à triste melodia de uma porta meio aberta e medistas caminhando. As batas brancas e apertadas de seus corpos puíam poeira e deixavam o suor marcado.

    “Papai”, ela pensou, levando a mão à boca. Os homens de cabeça raspada iam e vinham da porta no final do corredor: Duas portas altas de madeira maciça e envernizada em marrom eram fechadas e abertas incessantemente. Princesa!, falou um dos ciles por um segundo, correndo para buscar algum medicamento. Bert o seguiu com os olhos por só um instante; sua protegida o soltou e correu em disparada.

    “Você vai se machucar se for assim”, falou na sua mente. Não entendia… Mas a seguiu. Poderia ficar do lado de fora, como faziam Cei Hilsen e Cei Merzt, no entanto, adentrou o quarto do rei e foi sobrepujado pelo odor de inúmeras ervas ardendo em lareiras, medistas moendo outras e produzindo remédios.

    Irmãs dos Perfumes, usando togas que cobriam até os dedos dos seus pés e toucados sedosos que mal deixavam os olhos visíveis, misturavam unguentos e outros óleos para o senhor seu rei, jazido na cama. “Já morreu?”, questionou-se Bert, entrando calmamente. A cama do rei possuía um longo dossel de sedas rubras, amarradas entreabertas para que miasma não entrasse mais do que já estava entrando.

    Longe da cama, toda a mobília sobre o piso de azulejos marrons e antigos, ricamente lapidados e detalhados, fora transformada em suporte para maquinarias medicinais que Bert não dava a mínima.

    O importante era um príncipe de joelhos, com os braços esticados como se implorando perdão para o pai, pálido e enfaixado. Quando chegara no castelo, Bert já imaginava o que estaria diante dele: um herói de guerra, rei Rheider Bloemennen. Pequeno, o total oposto do real irmão sanguinário que tentou reduzir seu reino a cinzas, mas que reorganizou os leais, retomou um dragão de escamas laranjas e reverteu todo o caminho da guerra que assolou o reino dividido.

    O homem que não se dobrou a lei do reino e, mesmo com as atrocidades cometidas pelo Sanguinário, somente o privou de seus ricos cabelos tricolores e membro e o expulsou do reino. O Flor do Dragão, que assim era chamado por deixar Meevel, o Encouraçado, voar por todo o reino e fazer morada onde bem entendesse.

    Estava lá o Flor do Dragão, coberto até os olhos por faixas encardidas e fedorentas pela oliva. A palidez meandrou sua pele flácida. Deveria pesar mais que cem quilos quando chegou no ducado. Agora, se pendesse entre cinquenta e sessenta, Bert se jogaria de um penhasco — toda a gordura que lhe serviu de escudo quando caiu das escadas havia desaparecido.

    Era ossos, um homem de ossos. Até os cabelos tricolores se renderam à calvície, e o queixo duplo, ao que restava da fraqueza — ósseo, palidamente ósseo. Tinha ido à capital com tantas expectativas… “Quem diria que seriam destruídas tão rápido.”

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