Narrado por Aisha 

    O som da armadura pressionando o gelo sob meus pés parecia mais alto do que deveria. 

    O ar na arena estava denso. Não frio, não apenas. Parecia preenchido por algo que não era só mana, mas presença. Como se o lugar guardasse cada passo dado ali, cada queda, cada decisão final. 

    Ele me observava. 

    O Guardião. O homem que havia derrotado todos os outros com facilidade… e agora me olhava como se me estudasse, não como adversária, mas como um quebra-cabeça. 

    A couraça deixava minha postura rígida, mas quando retirei o elmo, senti que o peso havia mudado de lugar. Estava nos olhos dele agora. 

    Mas ele não reagiu com choque. Nem com desprezo. 

    Ele apenas se ajustou. 

    Ele sorriu brevemente e disse: 

    — Que curioso, uma guerreira de Ignaris… parece que as coisas mudaram com o tempo. 

    Estávamos frente a frente. Ele sem sua espada. Eu sem minha armadura, apenas protegida do frio pelo gambeson. 

    No início da troca, tentei manter distância e ritmo. A espada era minha extensão, e meus músculos, mesmo livres, pediam por cautela. Mas o que me surpreendeu, o que me desestabilizou da batalha, foi a forma como ele lutava com o corpo. Não como um bruto, nem como um artista. Era como… quem havia dançado com o vento por anos e aprendido a fazer disso um estilo. 

    Cada golpe, cada rotação, parecia improvisado…, mas acertava exatamente onde precisava. 

    “Como alguém consegue lutar assim?” pensei, bloqueando uma investida com o antebraço e rolando para o lado. 

    — Você pensa demais — ele comentou, girando em torno de mim. 

    “E você… fala demais”  

    Quando contra-ataquei, usando uma sequência curta reforçada com mana nos tornozelos para impulsionar, ele recuou com naturalidade. Cada vez que eu tentava algo direto, ele desviava, fazia uma observação e não me deixava concluir a própria linha de pensamento. 

    — Está usando reforço muscular nos pontos certos…, mas só nos momentos óbvios — ele comentou após meu último giro. — A surpresa vem do que você não faz com frequência. 

    Ele parecia saber exatamente como eu iria me mover. 

    Depois de uma troca intensa, ele recuou pela primeira vez, respirou e comentou: 

    — Você luta como alguém que treinou com disciplina…, mas sem um tutor e com mais rancor do que deveria. 

    Essa frase me atingiu com mais força do que qualquer golpe dele até então, ele ainda me olhava como se eu fosse um quebra cabeça interessante. 

    Durante os segundos de pausa, a memória da corte veio à mente. O príncipe, o convite, Lucian. A vergonha silenciosa. Tudo o que me fazia lutar com o rosto escondido por tanto tempo, a frustração de finalmente ter a chance de fugir de tudo isso e no momento decisivo… ser entregue a morte. 

    Então ele retomou o avanço, mais sério. 

    Sua velocidade aumentou. Os golpes vinham em ângulos estranhos, quase quebrando meu fluxo. 

    Bloqueei dois. Errei o terceiro. Recebi um impacto no ombro… nada grave, mas suficiente para me fazer dar dois passos para trás. 

    — Agora está me ouvindo — ele disse. 

    Não respondi. Mantive a postura. 

    — Você é rápida. E até que tem Técnica… — ele continuou girando o punho, preparando-se para mais. — Mas… 

     Junto com a pausa da fala ele desacelerou o ritmo, me desestabilizou deixando uma abertura que ele aproveitou com um soco, o impacto me jogou para trás e me fez perder o ar. 

    Ele ergueu a mão. 

    Do chão, a espada de gelo que ele havia deixado antes emergiu, reconstruída em segundos. 

    A luz azul pulsava na lâmina. 

    Ele a segurou casualmente. Como quem faz isso todos os dias. E de fato… talvez fizesse. 

    Assumiu uma nova postura. A mesma que usara contra o espadachim cerimonial antes. 

    — Você é boa. 

    Ele apontou a espada para mim, sem agressividade. 

    — Mas infelizmente… não tem o necessário. 

    Eu não soube se ele falava da técnica.   

    Da alma.   

    Da força oculta que todo guerreiro precisa quando a lâmina quebra. 

    Mas naquele instante… 

    Eu senti que precisava descobrir e rápido. 

    Ele ergueu a mão na minha direção e do ambiente ao meu redor. Começou a surgir gelo ao meu redor do chão, do ar, da própria mana ao nosso redor. 

    Como se o Guardião tivesse puxado o gelo do tempo em vez da terra. Não caiu sobre mim como peso assumindo a forma de uma armadura leve. Não me envolveu como restrição. Ela surgiu moldada ao meu corpo, encaixando-se com precisão sem prender, sem travar, sem sufocar. 

    Respirei fundo. E não ouvi o som metálico de antes. 

    Era como se o gelo… estivesse respirando junto. 

    Naquela fração de silêncio, me senti mais livre do que nos últimos três anos. Mas também mais exposta. 

    Ele me observava. 

    E andava em círculos ao meu redor como um falcão prestes a mergulhar. 

    Mas não atacava. Não ainda. 

    — Está melhor assim — disse, sem olhar diretamente nos meus olhos. — O gelo costuma ser honesto. Molda quem o aceita. 

    Silêncio. 

    O Guardião parou. Olhou para mim, finalmente.   

    E ali veio o monólogo. 

    — Três falhas gritantes — ele começou, sem raiva, mas com uma firmeza que perfurava mais que espada. — Três motivos pelos quais você não me venceria, nem agora se fosse 5 vezes mais forte. 

    Tentei manter o pulso firme. Mas meu peito… apertava, eu estava começando a sentir medo. 

    — A primeira — ele levantou um dedo — está na sua determinação. Você luta como alguém que quer sobreviver, não como alguém que veio para me matar. 

    As palavras me atravessaram. Porque eram verdade.   

    Eu não queria matar. 

    Eu nem sabia se conseguiria o matar.   

    Eu queria provar.   

    Queria existir. 

    — A segunda falha está no controle da mana. — O segundo dedo subiu. — Você sabe ativá-la. Reforça o corpo bem. Mas não conversa com ela. Você a usa como ferramenta. Eu a uso como extensão. Ela me ouve. Você só a força a obedecer. 

    Pisquei. Pela primeira vez, não entendi o que ele queria dizer, ela o ouve? Usar a mana como uma extensão?   

    — A terceira — o último dedo — é a mais grave. E mais perigosa.   

    — Você confiou em mim. 

    Engoli em seco. 

    — Você acreditou… por um segundo… que eu estava ensinando por benevolência. Que minhas palavras serviam como ajuda. E isso… isso… — ele girou lentamente a lâmina — me prova que você ainda espera justiça em locais onde ela nunca chegou. 

    Ele parou. Dois passos à minha frente. O mundo inteiro congelou. 

    O ar ao redor parecia mais denso. 

    — O inimigo nunca te avisa que é inimigo. — Ele deu um passo.  

    — Eu luto para preservar o mundo. Não você.   

    — Você é uma peça.   

    — E hoje… estará jogando pela última vez, se não colocar vontade nisso. 

    Meu corpo ficou frio. Mas não por causa da armadura. 

    Era assim que ele limpava os erros dos que tentavam atravessar a barreira? Com palavras que vinham antes do golpe final? eu não tinha como saber. 

    Respirei fundo. 

    Vi ele assumir uma nova postura. 

    Diferente da anterior essa parecia mais firme, mais baixa. A lâmina de gelo ergueu-se paralela ao solo, como se estivesse prestes a cortar não apenas a minha carne… 

    E ali, no fundo dos meus pensamentos, uma frase se formou. 

    “Eu… tenho como vencer?” 

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