Capítulo VIII - Comitiva
Apesar dos protestos de Jiahao, vesti meu uniforme. Não me sentia à vontade usando as roupas tradicionais daquele povo. Preferia o meu casaco negro, as botas militares e a calça larga, excelente para mobilidade e conforto. Guardei meu saco de moedas, e Jiahao trocou umCapítulo VIII – Comitiva
Apesar dos protestos de Jiahao, vesti meu uniforme. Não me sentia à vontade usando as roupas tradicionais daquele povo. Preferia o meu casaco negro, as botas militares e a calça larga, excelente para mobilidade e conforto. Guardei meu saco de moedas, e Jiahao trocou uma das peças de ouro por algumas de prata e cobre, mais discretas e adequadas para lidar com os comerciantes locais.
Estava pronto para sair. Meu destino era a prefeitura da cidade, onde eu teria que relatar o que ocorrera no beco. Mas, antes disso, pretendia almoçar em algum restaurante local. Song me acompanharia pelas ruas.
Estávamos na porta da frente, quando notei uma pequena comitiva subindo as escadarias para o interior da loja. À frente, vinham alguns serviçais. Logo atrás, um rosto familiar: o garoto com quem eu havia me desentendido no mercado no dia anterior.
Franzi a testa, desconfiado, mas continuei caminhando.
— Espere — disse Song, atrás de mim, em tom firme.
Parei no topo dos degraus, e senti não só os olhos da comitiva, mas também de todos os transeuntes na rua, se voltarem para nós. O garoto me encarou sereno, sem demonstrar nenhuma emoção externa. Ao lado dele, estava um homem mais velho, talvez em seus trinta anos, de porte atlético e postura impecável. Seus cabelos negros, longos e bem cuidados, estavam presos em um coque tradicional, e ele vestia túnicas de seda branca.
— Então você é o famoso estrangeiro de quem todos falam — disse ele com um sorriso leve.
— Sou eu. Thomas Nyrzyr. Perdoe minha ignorância, mas… com quem tenho a honra de falar? — respondi com uma breve reverência. Não era hora de testar os limites da minha sorte.
— Meu nome é Hua Yuling Kai. Sou o lorde governante desta cidade, e chefe da casa e da seita Hua Yuling. — Para minha surpresa, ele retribuiu com um leve aceno de cabeça. — Como líder desta região, serei eu quem julgará pessoalmente seu caso. Se desejar, nos encontraremos mais tarde na prefeitura.
— Quero resolver esse mal-entendido o mais rápido possível.
— Então espere aqui, irei conversar com você mais tarde. — Ele subiu as escadarias, acompanhado do resto da comitiva, e entrou na loja.
— Por favor, fique aqui… — Song me encarou preocupado, e entrou logo atrás da comitiva.
Obedeci à ordem, porém eu não iria ficar ali na porta, só a espera de Song, eu teria que me distrair um pouco.
— “O mágico” — proclamei ao retirar a carta correspondente do bolso.
No mesmo instante, uma garrafa de vidro se materializou na minha mão. Dentro dela, um líquido rosa borbulhante. Retirei a tampa com a boca e comecei a beber. O sabor era doce, com notas de cereja e açúcar, familiar e reconfortante. Refrigerante, uma das poucas mordomias do meu mundo natal, junto com café, que consegui trazer comigo. E para minha alegria, eu tinha trazido um grande estoque.
Estava na metade da garrafa quando percebi um garoto ao longe, correndo na minha direção com visível pressa. Reconheci de imediato: Lingxin, o mesmo que havia me “salvado” no beco na noite anterior. Quando me viu, aliviou a expressão com um suspiro.
— O senhor Hua Yuling e o filho dele já chegaram? — perguntou sem fôlego, e parou no íncio da escadaria, a poucos passos de mim.
— Primeiro, me cumprimente. Você me deve uma — disse, e depois levei a garrafa de volta aos lábios.
— Eu? Mas fui eu quem te salvou! — protestou indignado com a minha afirmação.
— Me meteu numa confusão desnecessária. Agora provavelmente acham que eu sou algum cultivador lendário que matou cinco homens com um único golpe.
— Mesmo assim, eu ainda te salvei! — insistiu uma segunda vez.
Lancei-lhe um olhar carregado de sarcasmo, com um meio sorriso nos lábios.
— Por favor! — Ele colocou as mãos juntas em súplica. — Não conte nada, isso mancharia minha reputação. Não posso ser envolvido em um escândalo como esse.
— Fique tranquilo. Para todos os efeitos, essa é a primeira vez que nos conhecemos.
— Agradeço. — Ele fez uma breve reverência, formal e apressada. — Agora, por favor, responda: o senhor Hua Yuling já fez o pedido?
Pedido? Não entendi muito bem a pergunta, nem a preocupação dele. Deveria ser algum costume local, então nem tentei questioná-lo muito sobre.
— Ele acabou de entrar.
— Obrigado. — Ele se curvou novamente, ainda mais rápido, e entrou na livraria apressado.
Soltei uma pequena risada ao ver o comportamento de Lingxin, e voltei a beber meu refrigerante. Sentei-me nos degraus, e observei a movimentação na avenida. Algumas pessoas me olhavam estranho, para logo então, seguir seu caminho.
Eu estava relaxado, confortável em esperar, até que dois jovens se aproximaram.
— Thomas Nyrzyr, estou certo? — falou um deles, com uma grande dificuldade para falar o meu sobrenome. Vestia os trajes tradicionais locais, composto por uma túnica esverdeada e alguns outros adereços, e seu longo cabelo castanho, liso e bem cuidado, caía até a cintura. Seus olhos eram de um azul vívido, como o mar sob o sol da manhã.
— Sim, como sabe o meu nome? — questionei, um tanto cético sobre suas intenções.
— Você gritou alto o bastante na Rua das Tintas ontem. Metade da cidade ouviu — comentou o segundo jovem. Tinha estatura um pouco menor, cabelos castanhos na altura dos ombros e olhos grandes e sérios, que me analisavam com precisão.
Assenti com a cabeça, sem pressa. Dei o último gole do refrigerante, e fiquei segurando a garrafa vazia.
— E vocês são? Perdoem minha memória… — disse, mantive uma postura relaxada, entretanto, permaneci atento a qualquer hostilidade da parte deles.
— Hua Yuling Jin — disse o primeiro, fazendo uma reverência contida. — Sobrinho-neto de Hua Yuling Kai.
— Yan Hu — disse o outro. — Discípulo interno da Seita Hua Yuling.
— Thomas Nyrzyr — repeti, em uma apresentação formal. — O que querem comigo?
— Nada de mais — respondeu Yan Hu, com um sorriso aparentemente cordial. — Estamos esperando um amigo e vimos você aqui. Achamos curioso. Soubemos do que aconteceu ontem, falaram que o seu ferimento era bem sério, mas você parece estar bem.
— Quem é o amigo de vocês? Lingxin? — perguntei, sem deixar de notar a tensão implícita nas palavras deles.
Ambos riram com desdém.
— Aquele lixo patético? — Yan Hu gargalhou abertamente. — Se você anda com lixo, vira lixo. Um conselho: mantenha distância. Ele pode ter te ajudado uma vez, porém só atrasa quem está perto.
Cruzei os braços, e mantive a expressão séria.
— Vou pensar no assunto. Mas se não é ele, quem é o amigo?
Yan Hu estufou o peito com visível orgulho.
— E quem mais poderia ser? Hua Yuling Renyan, o herdeiro da seita e da casa nobre de Hua Yuling. Você foi bem desrespeitoso conosco ontem. Mas, em sua imensa generosidade, ele resolveu poupar sua vida. — Ele deu um passo à frente, o tom carregado de arrogância. — E se estiver interessado, talvez possamos aceitá-lo como discípulo da nossa seita. Uma oportunidade rara para forasteiros. Parece que você tem talento e potencial.
— Agradeço o convite, mas não tenho interesse — respondi, cauteloso nas palavras. Aquele convite escondia um risco que eu não estava disposto a correr. — O senhor Jiahao, o dono da livraria, já me ofereceu tudo o que preciso. Não seria adequado recusar a hospitalidade dele.
— Ah sim, o senhor Wen Qishu. Não se preocupe tanto assim com ele. Tenho certeza que ele entenderia.
Sua resposta não continha ironia, era carregada com um tom respeitoso.
— Conte-me mais sobre a sua seita, como ela funciona? — Apesar de saber que não aceitaria o convite, eu estava curioso sobre eles.
— A Seita Hua Yuling — começou Jin, com orgulho evidente na voz — é a instituição de cultivo mais prestigiada de toda a região. Em influência e poder, só se equipara à Casa Fushe, que governa a província.
Yan Hu assentiu, os olhos brilhando com um fervor quase religioso.
— A sede da seita fica numa ilha sagrada, na costa. Foi construída sobre um vórtice natural de Qi, puro e antigo. A energia flui ali como um rio sem fim. Um cultivador iniciante, como você, após alguns dias de meditação, pode romper camadas do primeiro reino com facilidade.
— Interessante — comentei, genuinamente surpreso com as informações. — E vocês têm mestres lá? Uma hierarquia, algum tipo de instrução formal?
— É claro — respondeu Yan Hu, ao estufar o peito. — Existem os discípulos externos, internos e os discípulos diretos dos anciãos. Não quero me gabar, mas eu sou um discípulo interno na décima sétima camada. Em breve, quando iniciar meu treinamento a portas fechadas, atingirei facilmente o terceiro reino.
— Treinamento a portas fechadas? — questionei, ao levantar uma sobrancelha.
— Exatamente. — Jin voltou a explicar. — Após alcançar a vigésima camada do primeiro reino, o cultivador deve entrar em reclusão total para romper a camada e alcançar o segundo reino. E então, começar o processo de refinar o corpo. Essa fase exige foco absoluto. Nenhum ruído, nenhum contato externo. É uma fase de meditação profunda e contínua.
— Quanto tempo isso costuma durar?
— Entre dez e vinte anos, para se romper a camada e ascender para o segundo reino. — Yan Hu disse isso como se fosse algo perfeitamente razoável.
— Tudo isso? Sem nenhum contato com o mundo externo? Apenas meditação o dia todo? — Aquela quantidade de tempo parecia absurda para mim. — E não tem nenhuma outra forma razoável?
— Se você tiver um talento excepcional, talvez consiga ascender para o segundo reino em batalha. É bastante comum para aqueles nascidos nos planos superiores.
— E quanto a você? — virei-me para Jin. — Qual é o seu nível de cultivo?
— Estou no décimo oitava camada, devo conseguir alcançar a vigésima antes dos vinte.
Não sabia muito bem se isso era admirável, e não tinha muito a comentar sobre, decidi então continuar a reunir informações.
— E o quanto a Hua Yuling Renyan, que vocês disseram ser um talento excepcional? — indaguei com curiosidade.
— Meu primo? — Jin abriu um largo sorriso. — Ele acabou de chegar a vigésima camada, e irá iniciar seu treinamento a portas fechadas em breve. É por isso que estamos aqui, na livraria Wen Qishu.
Tentei juntar as peças e arrisquei uma teoria:
— Vieram comprar os preparativos?
— Também — respondeu Jin. — O senhor Wen Qishu Jiahao é um de nossos principais fornecedores. Mas viemos por outro motivo.
Ele fez uma pausa breve, como se buscasse as palavras certas, ou apenas saboreasse o impacto do que viria a seguir.
— É tradição que, antes de iniciar o treinamento de reclusão, um cultivador talentoso como Renyan escolha uma esposa — continuou, com tom cerimonioso. — De preferência, uma cultivadora igualmente promissora, de uma família nobre
— Como é? — perguntei, mesmo já tendo compreendido as entrelinhas. Só queria confirmar se tinha realmente escutado aquilo.
— Viemos iniciar as formalidades do noivado entre Hua Yuling Renyan e Wen Qishu Mei, sobrinha do senhor Jiahao.
Naquele instante, senti o cheiro do problema no ar. Tudo fazia sentido. A pressa de Lingxin para entrar na loja. O comportamento de Mei no dia anterior, e principalmente sua fala de eu ter lhe poupado de arranjar uma desculpa.
Eu não devia me importar. Não era meu assunto. As alianças políticas e os casamentos arranjados daquela cidade não tinham afetavam os meus objetivos ou a minha missão.
Levantei-me devagar da escadaria, sem dizer uma palavra. O corpo já se movia antes da mente dar permissão. A lógica me mandava ficar onde estava. A intuição me puxava para dentro da loja. Para o olho do furacão.
E, naquele momento, escolhi ouvir o instinto. Mesmo sabendo que não haveria volta.
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